Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume set., Série 18/09, 2010.
Introdução.
Em O mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II, Fernand Braudel propõe uma história em planos sobrepostos, na qual se distinguem nitidamente três tempos: geográfico, social e individual.
A edição portuguesa da obra é composta por dois volumes de cerca de 700 páginas cada, e por três volumes na edição espanhola e francesa.
Na edição portuguesa, o primeiro volume esta dividido em duas partes: a primeira intitulada “o meio” e a segunda “destinos coletivos e movimentos de conjunto”.
O segundo volume contém uma continuação da segunda parte e uma terceira parte: “os acontecimentos, a política e os homens”.
Esta obra constitui um clássico da historiografia.
Na realidade nada mais é do que a tese de doutoramento de Braudel, orientada por Lucien Febre, então elaborada entre 1923 e 1939.
Uma tese que foi finalizada durante os cinco anos em que o autor esteve preso em um campo de concentração na Alemanha Nazista, quando obras e documentos foram relacionados ao seu conjunto de memória, pois era impossível consultar bibliotecas e arquivos nestas condições.
O texto foi em 1949, quando sofreu algumas modificações.
A segunda edição, em 1963, relacionou e citou mais de trinta trabalhos, desenvolvidos após a primeira edição da obra, de historiadores orientados em sua maioria pelo próprio Braudel, cujos trabalhos terminaram colaborando para a atualização da primeira edição de 1949.
Em 1976, a obra ganhou sua terceira edição, na qual o autor reconheceu as modificações de sua visão histórica, remetendo o leitor para outro trabalho, então recentemente publicado na França: Civilização Material e Capitalismo.
A abrangência de O mediterrâneo é ambiciosa.
Braudel realizou o estudo e a classificação das bases materiais e econômicas dos séculos XVI ao XVIII em escala mundial.
Segundo suas próprias palavras, ele pretendeu realizar um estudo dos homens enclausurados pelas condições econômicas, aprisionadas dentro de fronteiras que marcam o limite do possível e do impossível.
O seu olhar dirigiu-se para a vida das massas, para as quais a onipresença de uma força inerte tornou-se o motor da história.
Em decorrência, Braudel realizou um inventário da materialidade histórica na sua cartografia ecumênica e comparativa.
Daí emergiu um grande painel sobre os alimentos, as habitações, os utensílios, a vida nas aldeias e cidades.
Implicando no estudo do luxo e instrumentos monetários, abrindo as cortinas para vislumbrar os formigueiros humanos e o papel da moeda na vida das pessoas.
Isto nas suas várias gradações: ouro, prata, cobre, etc.
Portanto, a obra marcou o nascimento de um campo de estudo da história: a cultura material.
Esta deixou de ser objeto exclusivo dos historiadores da arte, da arquitetura ou dos etnólogos, dando lugar a duas vertentes:
1. A dos historiadores da economia que buscam amplas explicações para grandes temas, tais como o crescimento econômico ou a Revolução Industrial.
2. Uma linguagem mais sociológica e antropológica que enfatiza os temas relacionados com a estrutura social e os padrões culturais, tais como o estilo de vida, gosto, moda, inovação, difusão, privacidade, vida doméstica e individualidade.
Quem foi Fernand Braudel.
Fernand Braudel nasceu em Meuse, na França, em 1902.
Depois de licenciado em história, em 1937, tornou-se diretor da “Escola Pratica de Altos Estudos”.
Posteriormente, lecionou em Argel, no norte da áfrica, então colônia francesa, retornando a Paris, e, de lá, para a Universidade de São Paulo, onde foi um dos professores que integraram a chamada missão francesa que ajudou a USP.
Foi um dos responsáveis, a partir de 1946, pela revista “Annales”, fundada por Marc Bloch e Lucian Febre, a qual procurava estimular um diálogo inovador entre a história e o restante das ciências sociais e que criou uma nova escola historiográfica.
Em 1949 sucedeu Lucian Febre no “Colégio de França” e, em 1956, na presidência da “Escola Pratica de Altos Estudos”.
Em 1962 foi nomeado administrador da “Casa das Ciências do Homem”, de que foi um dos fundadores e a qual dirigiu até 1985.
Doutor honores causa por Bruxelas, Oxford, Madri, Genebra, Florença, Varsóvia, Cambridge, São Paulo, Pádua, Londres, Chicago, Saint Andrews e Edimburgo, publicou O mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II em 1949, assim como Civilização Material e Capitalismo em 1979 e A Identidade da França entre 1979 e 1981.
Com relação a esta ultima obra, apenas o primeiro volume foi publicado quando Braudel estava vivo.
Cabe aqui um esclarecimento, o autor dos textos deste blog é um seguidor fervoroso de Braudel, portanto, um historiador de linha braudeliana.
A quantidade de homens.
Braudel inicia a segunda parte de O mediterrâneo afirmando que a quantidade de homens fornece o sentido e a medida do século, enxergando no aumento ou na diminuição do número de homens, o incremento ou retrocesso da economia.
No século XVI, a Europa era um mundo de sessenta ou setenta milhões de homens.
Viviam na parte ocidental da Europa cerca de trinta e oito milhões de habitantes, enquanto na sua parte oriental havia entre vinte e dois e trinta e dois milhões de habitantes.
É interessante notar que Braudel termina admitindo que os números eram seguros para os países europeus banhados pelo mediterrâneo, mas inseguros para o restante dos países que pertencem a este quadro.
Desta forma, sem incorporar o deserto enquanto espaço mediterrânico, ele define a densidade por quilometro quadrado em uma média de 16 habitantes.
Esta densidade populacional é de fato ainda mais fraca do que dizem seus números, sendo o espaço mediterrânico ainda mais vasto do que hoje e, portanto, muito mais despovoado do que se imagina.
Braudel enxergavam o mediterrâneo como um espaço formado por desertos “inospidos e hostis”, difícil de ser dominado, rico em caça, mas também em animais selvagens.
Um lugar onde a agricultura era restrita aos “flancos de colinas arranjados em terraços”, mesmo assim de forma “intinerante”, sendo dominante, como é ainda hoje, a criação de ovinos e suínos.
Demografia.
Afirmando que o movimento demográfico estava sujeito a avanços e recuos, funcionando sempre no esquema dois passos para frente e um para trás, Braudel mostra que a população mediterrânea cresceu de trinta ou trinta e cinco milhões, em 1500, para sessenta ou setenta milhões, em 1600, perfazendo uma taxa anual de crescimento populacional da ordem de 7% por ano.
Graças a este crescimento demográfico da ordem dos 100%, as cidades cresceram e a conquista da América teve garantida a necessária mão de obra.
Não obstante, na contramão, o aumento demográfico observado a partir de 1550, levou as populações excedentes ao “banditismo”, entregues então a marginalidade.
As populações urbanas tornaram-se tão numerosas que os homens começaram a acotovelar-se perambulando pelas cidades.
Examinado alguns exemplos de crescimento e refluxo populacional, Braudel afirma que, no século XVI, em sessenta e um anos, a população castelhana teria simplesmente duplicado, apesar das guerras e da migração para o Novo Mundo.
A economia dos nascentes países europeus terminou condicionada por esta característica demográfica.
Reservas e conclusões.
Braudel levanta a hipótese das taxas de crescimento populacional serem falseadas por uma melhoria na qualidade dos recenseamentos, afirmando que mesmo que tal hipótese esteja correta, sem dúvida não se poderia negar o crescimento demográfico.
No entanto, o aumento do crescimento populacional observado na segunda metade do século XVI, aumentou a criminalidade, lotando as cadeias, fazendo os países envolvidos na expansão ultramarina utilizarem largamente o degredo como forma de onerar o Estado.
Assim, a saída para os custos gerados pela marginalização da população, foi enviar os indesejados para as Américas.
Braudel põe em causa as oscilações populacionais observadas no Antigo Regime, comparando-as, grosso modo, com as flutuações observadas nos países subdesenvolvidos.
Afirmando que a mortalidade infantil foi uma das causas dos refluxos populacionais, e que a longevidade feminina era vulgarmente superior à dos homens.
Ele concluiu falando que a política do degredo, mais intensamente praticada por Portugal e Espanha, esvaziou os dois países, solucionando a questão do banditismo, mas deixando, em contrapartida, as zonas rurais com falta de mão de obra.
Para preencher esta demanda, franceses e italianos rumaram para a Península Ibérica. Eles substituíram aqueles que partiam para a Índia e América.
Por outro lado, com esta migração a França e a Itália ficaram com falta de braços na lavoura, uma questão solucionada com imigrantes do norte da Europa que terminavam ocupando o espaço deixado vago pelos naturais da Itália e da França.
Para saber mais sobre o assunto.
ARRUDA, José Jobson de Andrade. “O império da história” In: Revista de História, nº. 135. São Paulo: Departamento de história da USP, 2º. semestre de 1996.
BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Felipe II. Lisboa: Martins Fontes, 1983.
BURGUIÉRE, André. Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
Texto:
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor
em Ciências Humanas - USP.
MBA
em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado
em Filosofia - FE/USP.
Bacharel
em Filosofia - FFLCH/USP.
ola gostaria de saber um pouco mais sobre o livro
ResponderExcluircivilização material economia e capitalismo do braudel.
Agradecemos as palavras gentis, em breve publicaremos mais artigos que devem atender esta demanda, mas, por enquanto, fica o convite a todos os leitores para colaborarem neste sentido.
ResponderExcluirForte Abraço.