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Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

História e cultura.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume set., Série 06/09, 2010.


Introdução.

Teorizar sobre a cultura não é uma tarefa fácil, o principal motivo é relativamente óbvio: a amplitude do tema e, portanto, a enorme gama de recortes e perspectivas possíveis que envolvem a própria definição do conceito de cultura.

Neste mesmo sentido, abordar a história cultural pode ser mais complexo do que aparenta.

Entretanto, como lembrou o professor Elias Tomé Saliba, a cultura transformou-se na categoria chave para a compreensão do mundo contemporâneo, tendo em vista que as esferas social, política e ideológica estão emaranhadas ao seu modo primário de representação.

Inclusive, podendo somar-se a estas esferas uma outra vertente aparentemente distinta da história da cultura, a economia.

Na década de 1970, Edward Thompson forneceu um argumento interessante para sustentar esta ligação, acrescentando ao velho ditado marxista de que sem produção não há história, a afirmação de que sem cultura não há produção.

O que levanta uma questão inicial envolta na dificuldade de abordagem da temática em pauta: como delinear com clareza as fronteiras da história cultural?

Pergunta cuja resposta parece essencial para a definição de um objeto de estudo e linhas de pesquisa nítidas, conduzindo, a reboque, a seleção de fontes.

Mas antes de qualquer tentativa de abordagem da problemática inicial, como pretendeu Peter Burke, cabe perguntar: o que é a história cultural?

Questão extremamente pertinente diante da confusão conceitual existente entre a história das mentalidades, a história das idéias, também chamada história intelectual, a história antropológica, a história da cultura material e o que se convencionou chamar história cultural clássica, em oposição à nova história cultural.

Verdadeiramente, conceitos que se cruzam e entrelaçam em diversos momentos, atravessados pela polissêmica noção de cultura, embora distintos, quer considerados como independentes ou desdobramentos de um mesmo campo do conhecimento histórico.


O que é história cultural?

Para Georges Duby, a história cultural estudaria os mecanismos de produção dos objetos culturais, conceituação um tanto vaga, mas que termina por definir amplamente este campo historiográfico, deixando suas fronteiras em aberto.

O que, em um universo dominantemente especializado, poderia soar como desleixo conceitual, contudo, o objeto de estudo da história cultural termina por conduzir naturalmente a sua própria essência, espaço de perpetua transformação e constante adaptação, característica inerente à cultura.



Segundo José D’Assunção Barros, dado sua amplitude, a história cultural observaria desde as imagens que o homem produz de si mesmo, da sociedade em que vive e do mundo que o cerca, até as condições sociais de produção e circulação dos objetos culturais e seus mecanismos de recepção.


Todavia, a despeito da história da cultura constituir um campo interdisciplinar, comportando inúmeras abordagens a partir de suas múltiplas dimensões; teoricamente, pensando no entendimento da realidade contemporânea permeada pela matriz cultural, existe a necessidade de pontuar com maior precisão seu campo de estudo.

Na realidade, o conceito de história cultural é extremamente maleável, circunscrito a contextos específicos, não podendo ser diferente diante do fato de que a cultura encontra-se em perpetua transformação, constantemente se adaptando as novas circunstâncias.

Parafraseando Peter Burke, o trabalho individual do historiador cultural só pode ser localizado em uma das diferentes tradições, geralmente definido em termos de nacionalidade; remetendo a definições diversas de história cultural.

A despeito da história da cultura ter sido redescoberta na década de 1970, o campo de estudo foi fundado pelo menos 100 anos antes.

Insere-se dentro do movimento historiográfico dos Annales, marcado por uma aparente rivalidade circunscrita à França e pela controvérsia contextualizada no âmbito da história das mentalidades.

Uma tendência que se opõem as sensibilidades e representações coletivas de Marc Bloch e Lucien Febvre.

Igualmente distinta da história da cultura material de Fernand Braudel.


O desenvolvimento da história da cultura.

A região marcada pelo conflito entre Igreja e Estado, a qual, no século XVII, o principal palco da Guerra dos Trinta Anos, marcada pelo antagonismo entre católicos e protestantes, tornaria-se conhecida pela chamada guerra pela cultura, inaugurando o que se convencionaria como a fase clássica da história cultural.

Na década de 1870, surgiu na Alemanha, em um período em que se quer existia uma unidade política alemã, constituído mais uma comunidade cultural unida em torno da língua nacional, um conceito de história da cultura muito distinto da definição contemporânea.

A partir da obra do suíço Jacob Burckhardt, surgiu à tradição de estudos que buscaria se concentrar na história dos clássicos, das obras-primas da arte, literatura, filosofia e ciência, investigando as conexões entre as diferentes áreas e seu contexto histórico de produção, visando entender o que Hegel chamou de espírito da época.

Contraposta a tendência prussiana inaugurada por Leopold Von Ranke, centralizada na história política, baseada em documentos oficiais dos arquivos, voltada a auxiliar na construção de um Estado Nacional Alemão, um dos pilares que influenciariam o surgimento da corrente historiográfica cientificista no século XIX; o resto da Alemanha envolveu-se na tarefa de pintar o retrato de uma época, interpretando as obras de arte através da hermenêutica.

Imagens e textos clássicos, a exemplo do exame do quadro da santa ceia por Burckhardt, tornaram-se testemunhas do passado que podiam dizer coisas que nem mesmo seus autores sabiam que sabiam.

Paradoxalmente, uma critica pertinente a análise das fontes, durante este período inicial da história cultural, diz respeito ao fato de que os historiadores ainda não exerciam um questionamento coerente sobre a intencionalidade implícita nas imagens e textos.

Neste sentido, a historia cultural poderia ser definida como um mergulho intuitivo na arte e literatura do período estudado, para produzir uma visão ampla e generalizada de uma época, apresentada em uma prosa vigorosa, em si mesma, também quase uma forma de arte.

Conceito que se modificou no inicio do século XX, a partir dos estudos do sociólogo Max Weber.

Quando, inversamente, o sistema econômico passou a ser visto como reflexo das raízes culturais.

Originando, em 1929; depois da obra fundadora do holandês Johan Huizinga, O outono na Idade Média (1919); pesquisas que procuraram descrever pensamentos e sentimentos de uma época, explorando o estudo de símbolos e temas, em busca de padrões culturais que explicassem comportamentos e, conseqüentemente, a influencia cultural sobre outras esferas.

Um método usado nas faculdades norte-americanas no começo do século XX, antes de ser adotado, na Segunda Guerra Mundial, como forma de obter informações dos boletins de noticias alemães, passou a constituir uma maneira de questionar as fontes textuais acerca de sua intencionalidade.

O procedimento consistia em contar a freqüência de referências a um dado tema e analisar sua variação e a associação com outros temas, tratando-as como reflexo consciente ou inconsciente do autor.

Metodologia que representou um avanço na abordagem das fontes, mas que, constituindo uma quantificação, mostrava-se mecânica e insensível à variação que as palavras poderiam adquirir em contextos distintos.

Pouco depois, Aby Warburg transformou a história cultural em uma ciência da cultura, voltada para uma análise sintética, cujo objetivo deveria ser encontrar as fórmulas perceptivas, visando construir esquemas que permitissem sua aplicação sobre outras esferas da realidade.

Um grupo de estudiosos que costumava se reunir na biblioteca privada de Warburg, em Hamburgo, os quais comporiam o núcleo do Instituto Warburg, modificaria sensivelmente o foco analítico da história cultural, depois que seus membros migraram para os EUA e a Inglaterra, por conta da ascensão do nazismo, em 1933.

Este grupo incorporou a hermenêutica cultural a analise da iconografia, despertando o interesse dos historiadores para o mundo da publicidade e dos nascentes meios de comunicação de massa.

Imagens e Panfletos tornaram-se fontes da intencionalidade ideológica, o meio publicitário finalmente mostrou aos historiadores que, mais do que uma atitude inconsciente, a produção de documentos e imagens tinha muitas vezes uma intenção consciente.

Na década de 1930, um seguidor de Weber, o também alemão e sociólogo, Norbert Elias, focalizando a história dos modos à mesa, entre os séculos XV e XVIII, tentando entender o desenvolvimento do autocontrole sobre as emoções, terminou por utilizar conceitos freudianos, ampliando a penetração da análise cultural.

Este fator, somado aos avanços produzidos pelo grupo do Instituto Warburg, fez os historiadores norte-americanos e britânicos tomarem consciência da relação entre cultura e sociedade.

A cultura popular tornou-se objeto de estudo da análise histórica acadêmica, a despeito dos amantes da antiguidade e folcloristas alemães valorizarem as canções, danças, rituais e artes populares desde o século XVIII.

Portanto, os componentes de cunho popular passaram a ser estudados também como fontes para entendimento da cultura.

Imbuídos deste espírito, começaram a pipocar, na década de 1960, os estudos sobre a história da cultura popular e suas implicações econômicas, políticas e sociais.

Foi em meados desta década que Eric Hobsbawm, sob o pseudônimo Francis Newton, escreveu a História Social do Jazz, analisando o ritmo musical como negócio e forma de protesto.

Também na década de 1960, Edward Thompson publicou o clássico A formação da classe operária inglesa, examinando o papel da cultura popular diante das mudanças econômicas e políticas aplicadas à formação de classe.

Obra precursora da analise dos valores dos grupos em detrimento dos esquemas generalizantes.

A abordagem serial passou a ser empregada no estudo de testamentos, escrituras, panfletos políticos e uma diversidade de outras fontes, como, por exemplo, imagens sacras, para, através da organização cronológica das representações, permitir o entendimento de sua composição.

O caminho para a chamada virada cultural da década de 1970 estava aberto.


A virada cultural e seus desdobramentos.

À medida que os historiadores culturais começaram a perceber o engano de supor a existência de uma unidade de época, iniciou-se o que muitos passaram a chamar de virada cultural, uma guinada da história da cultura em direção a antropologia.

O conceito de hegemonia cultural de Antonio Gramsci influenciou fortemente a virada, segundo ele as classes dominantes exerceriam poder não apenas diretamente, através da ameaça e do emprego da força, mas igualmente pela imposição de suas idéias.

Uma realidade, segundo Roger Chartier, somente observável depois do século XVII, quando as elites deixaram de participar ativamente da cultura popular.

Na década de 1970, as explicações culturais para fenômenos econômicos e políticos começaram a se tornar cada vez mais freqüentes, originando, inclusive, um desdobramento em evidencia na atualidade: a história das relações internacionais.

Quando a preocupação com o entendimento do desenvolvimento civilizacional tornou-se terreno comum entre historiadores, com a adição de expressões como ascensão e declínio.

Cujas obras de Kenneth Waltz, Samuel Huntington e Paul Kennedy fornecem exemplo emblemático.

Paradoxalmente, a virada cultural trouxe consigo um novo desdobramento creditado a um pequeno grupo de historiadores italianos, dentre os quais esteve incluído Carlo Ginzburg.

Opondo-se a tendência da narrativa grandiosa das civilizações, uma reação a um estilo de história social que seguia o modelo da história econômica, empregando métodos quantitativos e generalizações; surgiu à micro-história, propondo um modelo alternativo de estudo de caso.

A micro-história tentou resgatar o espaço das experiências individuais e locais para o entendimento da cultura, buscando analisar a relação entre a comunidade e o mundo externo, inspirando o nascimento de novas linhas de pesquisa como a história das festas, das mulheres, das crianças e uma infinidade de outras temáticas extremamente debatidas nos meios acadêmicos atualmente.

Tanto a tendência de análise ampla, circunscrita às civilizações, como a prática de pesquisa da cultura de grupos ou contextos específicos da micro-história, terminou sendo sensivelmente influenciadas pelo estruturalismo de Claude Lévi-Strauss.

O que conduziu a estudos baseados na chamada analogia do drama, cujo pressuposto central é a idéia de que toda cultura tem um conjunto dramatúrgico, adotando um modelo cerimonial, protocolos culturais, fato que, inclusive, também abrindo espaço para a chamada história oral.

Nesta altura, a história cultural terminou se cruzando com a história das mentalidades, por alguns considerada um desdobramento, por outros uma linha autônoma de pesquisa, envolvendo uma grande confusão, a ponto de Ronaldo Vainfas afirmar que a história cultural, apesar de muito diversa, reedita a história das mentalidades.

Embora, especialmente na França, a história das mentalidades, junto com sua variante, a história do imaginário social, em oposição à história das idéias, esta ultima vinculada mais às letras e a filosofia, sejam consideradas quase totalmente independentes da história cultural.

Uma das razões da dificuldade de penetração desta última no país, já que na realidade, abordam objetos semelhantes de forma distinta.

A história das mentalidades, aparentemente, com raras exceções, em desuso na atualidade, pretendia estudar modos de pensar e sentir, sendo atravessada pelo conceito de imagem, base comum e constitutiva da cultura.

Estando presente na França desde o século XIX, mas, diante do que Vainfas chamou de nó da era Braudel (1956-1969), quando esteve marginalizada, terminou rivalizando com a história cultural apenas a partir da década de 1960.

A verdade é que a história cultural é sem dúvida mais ampla e antiga que a história das mentalidades, predominantemente associada a estudos sobre a história medieval e moderna.

Ambas pretendem fornecer uma visão etnográfica, muitas vezes se confundindo, como fica explicito nas definições de abertura do clássico O grande massacre de gatos de Robert Darnton.

Entretanto, como ressaltou Jacques Le Goff, em um artigo publicado em 1974, são tendências distintas.

A história das mentalidades pretendeu trabalhar o inconsciente coletivo, compondo uma história psicológica, singular, enfatizando o estudo do cotidiano, sendo legitima herdeira dos Annales.

A história da cultura, da década de 1970, vinculada a antropologia, não recusou o papel das mentalidades, nem tampouco da longa duração braudeliana e sua pretensão totalizante, constituindo uma história plural.

Neste sentido, tanto uma vertente como a outra, trouxeram consigo a ampliação da gama de fontes consideradas históricas, convertendo quase toda produção humana em documento, embora passível de critica e questionamento, ampliando as linhas de pesquisa possíveis.

A partir do final da década de 1980, a nova história cultural terminou incorporando a história das mentalidades, a qual, no Brasil, ainda encontra terreno fértil e autônomo, por conta de sua chegada tardia no país, mas que no âmbito mundial está em desuso.

Hoje é raro encontrarmos um historiador que admita ser um especialista em história das mentalidades, a despeito do imaginário ainda constituir instrumental valioso para as mais diversas tendências historiográficas.


A nova história cultural e a consolidação das linhas de pesquisa contemporâneas.

Em 1989, a historiadora norte-americana Lynn Hunt publicou a obra Nova História Cultural, cujo titulo terminou sendo adotado para expressar a nova tendência que havia surgido alguns anos antes.

Na realidade era uma tentativa de distinção da história da cultura de suas irmãs: a história social e a história política; tendo como centro uma legitima preocupação com o aspecto teórico.

Dentro deste âmbito, as teorias de Mikhail Bakhtin, Nobert Elias, Michael Foucault e Pierre Bourdieu foram incorporadas ao conhecimento histórico.
Particularmente, as idéias de Bakhtin, um teórico da linguagem e da literatura, foram incorporadas à análise da cultura visual.

Enquanto o conceito de pressão social pelo autocontrole, do sociólogo Nobert Elias tornou-se uma ferramenta de pesquisa, ao lado da teoria do controle de Foucault, cuja obra Vigiar e Punir, foi adotada como modelo de análise.

Já o filosofo, tido também como sociólogo e antropólogo, Pierre Bourdieu, contribuiu com o conceito de campo, a teoria da prática, a idéia de reprodução cultural e a noção de distinção.

O que transformou o estudo da linguística como instrumental da história, quando historiadores adotaram a literatura como fonte para o entendimento da história cultural.

Foi dentro deste contexto que uma discussão iniciada por Antonio Candido, em 1965, ganhou força: a verossimilhança presente na narrativa literária ficcional não seria comparável à ficção construída pelos historiadores em suas obras cientificas?

O que, em si, representou o questionamento da cientificidade da história.

Buscando resgatar a história como uma ciência confiável, muitos historiadores iniciaram, na década de 1990, um retorno à cultura material braudeliana, inserida no seio da história cultural, tendo como base de sustentação a materialidade arqueológica, forjando novas linhas de pesquisa envolvendo a história da alimentação, do vestuário, da habitação e, posteriormente, do corpo, da cultura do consumidor, etc.

Em especial a história do corpo, cujo precursor, Gilberto Freyre, havia iniciado estudos ainda na década de 1930, reforçou os estudos de gênero, criando, simultaneamente, inúmeros desdobramentos como, por exemplo, a história das crianças ou da infância.

A aquisição dos vestígios materiais como fontes históricas, somada a própria evolução da abordagem historiográfica propiciada pela história da cultura, consolidou diversas linhas de pesquisa.

O que fez com que, no Brasil, segundo Sandra Jatahy Pesavento, atualmente, 80% da produção historiográfica, expressa não só na forma de livros publicados, como também no formato de monografias, dissertações, teses, artigos, ensaios e trabalhos apresentados em congressos, simpósios e conferencias, esteja inserida no âmbito da história cultural, o campo, também, mais destacado pela mídia


O conceito de representação.

Não é necessário ser especialista em teoria da história para perceber que a historiografia, dentro do âmbito da história cultural, vem passando por uma profunda modificação na última década.

O estudo das mentalidades, enfatizando o estudo do cotidiano, tem sido substituído pelas pesquisas em torno das representações.

Roger Chartier, historiador que poderia ser enquadrado como pertencente à geração contemporânea ao declínio das mentalidades na França, define as representações como algo que permite ver uma coisa ausente e que, portanto, seria mais abrangente que o conceito de mentalidades, uma vez que o ausente em si não poderia mais ser visitado.

Representar seria, fundamentalmente, estar no lugar de, seria a presentificação de um ausente, um apresentar de novo, que possibilitaria ver uma ausência.

A ideia central é a da substituição, o recolocamento de uma ausência que tornaria sensível uma presença.

O objetivo central do conceito de representação seria, portanto, trazer para o presente o ausente vivido e, dessa forma, poder interpretá-lo; tornando a apropriação.

Segundo Chartier, um “construir uma história social das interpretações, remetidas para suas determinações fundamentais” que são o social, o institucional e, sobretudo, o cultural.

Este conceito pertence à proposta da Nova História Cultural, a tentativa de decodificar a realidade do já vivido por meio das suas representações, desejando chegar àquelas formas pelas quais a humanidade expressou-se a si mesmo e o mundo.

Idéias que transformam a passagem das mentalidades para as representações uma reação crítica, quase um processo teórico evolutivo.


A idéia de representações enquanto critica ao conceito de mentalidades.

A despeito do surgimento da Nova História Cultural e da tendência de pesquisas em torno das representações, não se pode negar que os trabalhos centrados nas mentalidades continuam presentes, embora em menor volume e destaque.

A discussão em torno da oposição entre mentalidades e representações ainda é relevante, encontrando terreno fértil no âmbito da teoria da história.

Segundo Vainfas, muitas críticas vão se insurgir contra os defensores da História das Mentalidades.

A mais comum e corrosiva dessas críticas é de que a História das Mentalidades torna multi-fragmentado o seu objeto de estudo.

Isto é, “a chamada História das Mentalidades abriu-se de tal modo a outros saberes e questionamentos que, no limite, pôs em risco a própria legitimidade da disciplina”.

A Nova História Cultural, tendo como centro o conceito de representação, negou as concepções de viés marxista, que entendiam a cultura como integrante da superestrutura, como mero refluxo da infra-estrutura, ou mesmo da cultura como manifestação superior do espírito humano e, portanto, como domínio das elites.

Ao mesmo tempo, o conceito de representações, inaugurou uma nova forma da história de tratar a cultura, abordando o estudo do pensamento não mais através de nomes ou correntes, mas sim como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo.

A Nova História Cultural faz ressalvas ao conceito de mentalidades, classificado como ambíguo e excessivamente vago, estabelecendo uma postura critica, sem, no entanto, negar a aproximação com as outras Ciências Humanas.

Assim, admiti o conceito de longa duração e aceita os temas do cotidiano, não chega propriamente a negar a relevância dos estudos sobre o mental.

O estudo das representações tentou se aproximar das massas anônimas, revelando uma especial afeição pelo informal, por análises historiográficas que apresentem caminhos alternativos para a investigação histórica, indo onde a abordagem das mentalidades não havia penetrado, estabelecendo, neste sentido, uma critica.

Na realidade, mesmo na França, a história das mentalidades já nasceu envolta em criticas, a maioria centradas na alegação de que exprimiria um equivoco teórico, supondo erroneamente uma coerência fictícia de sentimentos e idéias pertencentes a uma sociedade.

A ideia de representações ultrapassa o conceito de mentalidades, embasando sua análise na pluralidade de sistema de crenças e racionalidades que coexistem no interior de uma mesma cultura, tornando possível ao historiador captar somente o que significam em dado contexto, servindo ao entendimento de fenômenos contemporâneos que se apropriam do passado.

A representação não mostra o que foi de fato, mas aquilo que se apresenta àqueles que observam o que passou.

Expressa como os homens do presente enxergam o passado, diante de uma série de referenciais e das necessidades próprias de um tempo que, sendo o agora, nunca poderá dizer como realmente foi aquilo que já passou, devido a sua ausência e incapacidade de demonstração, apropriando-se de significados múltiplos.


Concluindo.

A relatividade existente na interpretação dos fenômenos históricos e culturais, bem como os variados conjuntos teóricos que sustentam estas interpretações, levam a concluir que a narrativa histórica que se pretende cientifica, neutra e técnica, na realidade, talvez não passe da construção de enredos compatíveis com a verdade, meramente verossímeis e não concretamente reais.

A narrativa histórica seria, tanto do ponto de vista documental como historiográfico, uma verdade que reflete a verdade para quem escreveu ou descreveu.

O que remete ao conceito de escrita intransitiva de Roland Barthes, segundo o qual ‘um autor não escreve para fornecer acesso a algo independente de ambos, autor e leitor, mas escreve a si mesmo”, fazendo a escrita tornar-se, “para o escritor que escreve a si mesmo, (...) os meios de visão ou compreensão, não um espelho de algo independente, mas um ato e um compromisso”.

Um conceito que nega a distância entre o escritor, seu objeto, o texto que escreve e o leitor.

Real ou não, aquilo que é narrado quase sempre é verdadeiro para quem escreve e quem lê a narrativa, dado que cada qual possui sua própria interpretação dos fenômenos narrados.

Em outras palavras, a realidade possui múltiplos níveis de entendimento e percepção.

Como ressaltou Paul Veyne, os fatos não existem isoladamente, só passam a existir a partir de uma mistura humana e muito pouco cientifica em que, o historiador, recorta a seu bel-prazer e estabelece conexões.

É isto que constitui o material que compõem o que o historiador chamou de intrigas, contadas, através de uma narrativa que segue um enredo lógico e inteligível, dentre tantos outros possíveis e também legítimos.

Mesmo se fosse possível recontar o passado tal como ele foi, não seria operacional fazê-lo diante de sua amplitude, fazendo a narrativa histórica constituir sempre uma narrativa de um passado mutilado, de uma memória parcial.

O que significa dizer que, circunscrito ou não a temática cultural, mesmo que o historiador escreva de forma literária, ele não faz literatura, pois trabalha com vestígios, reminiscências, embora o componente imaginativo também esteja presente.

Esta afirmação, em si, poderia, inclusive, conduzir ao questionamento da base documental como fonte destes vestígios, já que seriam as fontes, justamente, a ponto que ligaria o discurso histórico com a verossimilhança e a possibilidade da construção de um discurso potencialmente verdadeiro, dentro, obviamente, de uma imensa gama de potenciais verdades paradoxais.

Na realidade, observando as principais correntes historiográficas, dentro do âmbito cultural, embora este conclusão pudesse se estender a outros contextos; é obvio que as linhas de pesquisa são fruto, cada qual, de seu próprio tempo histórico.

As conclusões dos historiadores expressam uma maneira de enxergar o presente e o passado em cada época.

Podemos notar nitidamente que cada reestruturação da narrativa histórica constituiu uma critica das abordagens anteriores ou contemporâneas, envolvendo intenso debate.

Ao contrário do que poderia ser imaginado, a discussão não chegou ao fim, antes, torna-se cada vez mais intensa.

Envolve hoje, por exemplo, o academicismo das narrativas presentes nas Universidades, representadas pelas teses, dissertações e artigos, com um público leitor especializado e restrito; opondo-se a narrativa jornalística dos livros de divulgação, escritos muitas vezes por não especialistas, em muitos casos se quer por historiadores, destinados a um publico mais amplo.

Terreno fartamente explorado pelos jornalistas, os historiadores do agora, as narrativas não especializadas, nem por isto deixam de estarem corretas, desde que embasadas cientificamente, são apenas visões distintas de uma mesma realidade; o que acontece também dentro do âmbito acadêmico, onde várias teses oferecem respostas distintas para uma mesma problemática.

Assim como a leitura do passado nunca poderá ser moldada em uma forma definitiva, a discussão em torno da narrativa histórica da cultura estará sempre na pauta do dia, será sempre objeto acadêmico de discussão.

Não poderia ser diferente, para o bem da própria história, é saudável que tenhamos versões diferentes para os mesmos fatos, com narrativas as mais diversas, para que o leitor, também ele sujeito da história, não fique a mercê de conclusões prontas, tendo disponíveis um arcabouço que lhe permita extrair suas próprias conclusões.


Para saber mais sobre o assunto.

BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004.

BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

BURKE, Peter. A Escola de Annales. São Paulo: Unesp, 1997.

BURKE, Peter. O que é história cultura? Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

CHARTIER, Roger. A História Cultural. São Paulo: Unesp, 2007.

DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Edições 70, 1971.

ELIAS, Norbet. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

GINZBURG. Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Elsevier, 1989.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução as lições sobre história da filosofia. Porto: Editora Porto, 1995.

HOBSBAWM, Eric. História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

HUIZINGA, Johan. El otono de la Edade Media. Madrid: Alianza, 2001.

HUNT, Lynn. Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.

MELLO E SOUZA, Antonio Candido. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

RANKE, Leopold Von. Historia de los Papas en la epoca moderna. México: Fondo de Cultura, 1993.

SALIBA, Elias Thomé. “Cultura Modernista em São Paulo” In: Estudos Históricos, Nº. 11: 1993, p.128-132.

THOMPSON. Edward. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

THOMPSON, Edward P. “Folclore, Antropologia e História Social” In: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001, p.258-259.

WALTZ, Kenneth. Teoria das relações internacionais. Lisboa: Gradiva, 2002.

WARBURG, Aby. El renascimiento del paganismo. Madrid: Alianza, 2005.


Texto:
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.

Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.







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3 comentários:

  1. para hobsbawm o que explica essa mudança.livro de historia

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  2. Senhores: Boa Tarde!
    Gostei do texto, até porque por força da seleção do Mestrado que me submeterei pela UFRO, tenho que me aprofundar na Nova História Cultural. Mas o meu desafio é tentar estabelecer o diálogo entre essa história e a história oral de vida proposta por José Carlos Sebe. De acordo com o ponto de vista de vocês, isso é possível?
    Sim, como é que faço para meu Blog ser também indexado como o de voçês?
    Grato.
    Prof.Peixoto

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  3. Estou fazendo pós graduação em historia e este texto me ajudou muito. Ameeei o Blog...continuem assim. Obrigada!!

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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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