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Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

sábado, 31 de dezembro de 2016

Editorial Volume 2016-2.


Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 7, Volume dez., Série 31/12, 2016.


Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.


Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.

Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.



Este editorial foi escrito em 02 de julho de 2020 e publicado em data retroativa.

Depois de um período de seis anos inativa, a Revista está sendo atualizada no ano de 2020, com datas retroativas, daí a datação deste editorial em 31 de dezembro de 2016, embora escrito em 02 de julho de 2020.
A partir da edição anterior algumas alterações na diagramação foram realizadas, como o rol dos ex-membros do conselho editorial, antes localizado na coluna à direita após os membros atuais, que desceu para o rodapé da página, na coluna da direita, depois do índice de volumes publicados.
A razão para isto foi a necessidade de reservar espaço para propaganda de patrocinadores, os quais estamos tentando obter.
Caso algum leitor se interesse em patrocinar a Revista, pode entrar em contato através do novo e-mail de contato: submissaoparaentenderahistoria@gmail.com
O antigo e-mail foi descontinuado pelo provedor e, infelizmente, todos os textos submetidos à publicação através dele, os quais aguardavam oportunidade de publicação, forma perdidos.
Aqueles que haviam enviado textos para possível publicação, que aguardavam retorno, caso ainda tenham interesse em publicar, podem enviar o material novamente pelo novo e-mail.
Pedimos desculpas pelo inconveniente, mas não foi possível recuperar o material.
A exemplo do inicio da Revista, cujo nascimento despretensioso em 13 de agosto de 2010 jamais imaginaria a repercussão que alcançaria, para atualizar a periodicidade e preencher as edições atrasadas, foram utilizados textos do editor represados nestes últimos seis anos.
Para preencher as edições descontinuadas entre 2015 e 2020, no entanto, estamos abertos a colaborações.
Ressaltamos que, interessados em publicar artigos retroativos a 2020, podem enviar propostas de colaboração através do e-mail: submissaoparaentenderahistoria@gmail.com


Nesta edição, apresentamos 7 textos de autoria do editor:

1. Formas de proteção ao patrimônio histórico e cultural.

2. Ações práticas, atividades e projetos desenvolvidos pelos museus no Brasil.

3. Realidade Aumentada: possibilidades de aplicação na Educação.

4. Grumetes, órfãos e degredados: cotidiano a bordo das embarcações lusitanas quinhentistas,

5. A localização geográfica favorável de Portugal: fator que contribuiu para o pioneirismo naval.

6. A guerra de reconquista e o contato com os mouros: fatores que contribuíram para o pioneirismo naval lusitano.

7. A guerra contra Castela e sua contribuição para o pioneirismo naval lusitano.


Agradecemos a todos que tornaram Para entender a história... uma referência.

Boa leitura.




quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

A guerra contra Castela e sua contribuição para o pioneirismo naval lusitano.


Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 7, Volume dez., Série 22/12, 2016.


Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.


Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.

Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.



Dentro do contexto medieval, onde apenas o primogênito habilitava-se a herdar o título e as terras de seu pai, restando aos outros filhos homens entrar para o clero; o início de uma cruzada contra os infiéis, instalados na Península Ibérica, foi visto por inúmeros elementos da nobreza como a oportunidade ideal de alcançar títulos e terras pela força das armas e através de atos de heroísmo.
Os cristãos refugiados no norte da península obtiveram um importante reforço à reconquista quando justamente estes nobres, em sua imensa maioria oriundos do sul da França, rumaram como peregrinos aos territórios que viriam a constituir mais tarde Espanha e Portugal.
Depois que Fernando Magno, Rei de Castela e Leão, conquistou definitivamente Coimbra, fixando a fronteira cristã da zona ocidental da península no rio Mondego, após uma disputa sucessória que dividiu o Reino; poucos progressos foram realizados no avanço da reconquista, praticamente se estagnando.
Entretanto, com a subida de D. Afonso VI ao trono de Leão, a guerra contra os infiéis ganhou novo fôlego, Coria foi conquistada em 1079 e Toledo em 1085.
Porém, em 1086, as tropas cristãs foram completamente destroçadas pelos guerreiros almorávidas, comandados por Yusuf bem Tusufin, na batalha de Zalaca.
A reconquista poderia ter sofrido um significativo retrocesso, não fosse à chegada, no mesmo ano, de levas de peregrinos francos a Península Ibérica para lutar contra os mouros.
Entre os cruzados estavam dois nobres da Casa de Borgonha: D. Raimundo e D. Henrique; cavaleiros que terminaram por se notabilizar na guerra de reconquista, recebendo vários privilégios e mercês do Rei de Leão.
Desde a subida ao trono de D. Afonso VI, ao longo da segunda metade do século XI, os ibéricos haviam iniciado uma aproximação junto ao reino franco e o papado, estando na base destes laços à atração exercida pelas riquezas em poder dos mouros.
Ao mesmo tempo, um surto demográfico, visível em todo o Ocidente cristão, contribuiu ativamente para expansão territorial e um movimento de reforma eclesiástica, estimulando a vinda de nobres e de um importante contingente de monges francos que, pela via das peregrinações a Santiago de Compostela, já se deslocavam à península anteriormente. 
Um destes cruzados foi D. Raimundo, senhor de Amous, que esteve integrado nas hostes do Duque de Borgonha, Eudes I.
Ele era filho de Guilherme, Conde de Borgonha, e irmão do futuro Conde Renato II, provinha de um condado de escassa importância.
Partiu, como muitos outros, em busca de melhor fortuna, uma vez que sua condição de filho segundo não lhe permitia aspirar a um grande futuro na sua terra natal.
Outro importante cruzado foi D. Henrique, filho de Henrique de Borgonha e de Sibila, irmão do Duque Eudes I; era neto pelo lado paterno do Duque de Borgonha, Roberto I, sobrinho-neto do abade S. Hugo de Cluny e sobrinho da rainha Constança, mulher de Afonso VI, Rei de Leão. Constança era irmã de seu pai.
Pelo lado materno, D. Henrique era sobrinho do Conde de Borgonha, Guilherme I, o Grande, irmão de sua mãe, e, como tal, primo direto de Raimundo.
Não obstante ao fato de não existirem relatos da atuação de D. Raimundo e D. Henrique como cruzados, seus feitos foram premidos com a mão das filhas do Rei de Leão.
Em 1090 ou 1091, o primeiro casou-se S. Urraca, filha legítima de D. Afonso VI; o segundo uniu-se a D. Teresa, filha ilegítima, em 1094.
Após seu casamento, foi confiado a D. Raimundo o território da Galiza e de Portugal, conquistando ele aos mouros Santarém, Sintra e Lisboa, por volta de 1093; no entanto, Lisboa foi retomada pelos infiéis em 1095.
O que levou, entre outras causas, D. Afonso VI a substituí-lo por D. Henrique no comando da Galiza e do condado Portucalense, em 1096, nascendo já aí à rivalidade que daria origem entre portugueses e espanhóis.
Uma série de retrocessos em batalhas contra os mouros e toda uma conjuntura política fez com que a Galiza voltasse às mãos de D. Raimundo, enquanto por sua vez D. Henrique foi nomeado como o novo conde portucalense.
A fronteira com a Galiza passou a constituir um foco de tensão permanente, dada a rivalidade entre D. Henrique e seu primo.
O único fator a impedir uma guerra feudal entre os dois era a coesão exercida pela luta contra o Islã, dentro do condado portucalense agregando um poder fortemente centralizado na figura do conde D. Henrique, o principal estimulador da criação do Reino de Portugal uma geração depois.
Os primos firmaram um Pacto Sucessório, segundo o qual Henrique reconhecia Raimundo como legítimo herdeiro da coroa castelhano-leonesa, assumindo-se como seu vassalo; em contrapartida, Raimundo deveria conceder ao primo o território de Toledo, juntamente com a terça parte das suas riquezas ou em alternativa a Galiza.
Este acordo foi abalado quando, em 1105, nasceu o infante Afonso Raimundes, filho do Conde Raimundo e de D. Urraca, cuja educação foi confiada ao Conde galego Pedro Froilaz; agora havia um herdeiro para se apossar do que fora prometido a D. Henrique.
D. Raimundo faleceu em 1107 , sendo reconhecido pelo próprio Afonso VI, no ano seguinte, o direito sucessório ao trono de Leão e Castela à D. Urraca; alterando significativamente o cumprimento dos termos do Pacto Sucessório, nada mais obrigava a cessão da Galiza à D. Henrique.
No mesmo ano em que o trono de Castela foi garantido à D. Afonso Raimundes, D. Henrique e D. Teresa assistiram ao nascimento de seu filho, Afonso Henriques, em 1108.
O aparecimento deste herdeiro do condado portucalense no cenário político foi tido como uma ameaça à sucessão de D. Afonso VI.
Depois da morte do marido, D. Teresa conseguiu costurar uma aliança com os barões portucalenses, depois de armado cavaleiro em 1125, aos 17 anos; garantindo ao filho um poder ainda mais centralizado ao seu redor do que havia forjado seu pai, bem como apoio irrestrito da nobreza aos seus intentos de fundar um novo Reino.
Em 1127, D. Afonso Henriques assumiu efetivamente o governo do Condado Portucalense, autointitulado Rei de Portugal em 1139; passando Guimarães a ser a capital do Reino e reiniciando, simultaneamente, o processo de reconquista, uma guerra em beneficio da independência contra o Reino de Leão e Castela.
O que exigiu, já por esta época, o aprimoramento da indústria naval com fins de combate aos espanhóis.
A guerra contra Castela durou vários anos e não fez mais do que intensificar a rivalidade luso-espanhola, criando o anseio entre os espanhóis de um dia retomarem Portugal.
O que seria responsável, no final do século XVI, pelo desejo concretizado de união da Coroa espanhola a portuguesa, levando o poderio lusitano a declinar no Oriente, contribuindo para a mudança do eixo econômico e social português, no século XVII, da Índia para o Brasil.
Todavia, em 1179, uma Bula do Papa Alexandre III terminou por confirmar a independência de Portugal.
Desde que D. Afonso Henriques, chamado pelos cronistas da época como “o melhor cavaleiro do mundo”, proclamara-se rei, as fronteiras do novo Estado haviam expandido muito e, com a subida ao trono de D. Sancho I, dito “o lavrador”, em 1185, continuou a estender-se.
Na realidade, o Estado português nasceu do expansionismo territorial e continuou a guiar-se por esta premissa, em conjunto com o combate aos infiéis.
D. Afonso II (1211-1223), “o gordo”, e D. Sancho II (1223-1248), “o capelo”, deram continuidade à guerra de reconquista e combate aos castelhanos; enxergando no aprimoramento da indústria naval um meio de fazer frente, em termos militares, tanto aos mouros como aos inimigos.
Escaramuças navais e fronteiriças luso-espanholas tornaram-se frequentes, intensifica-se após o reconhecimento da independência de Portugal pelo papado.
Não é de se estranhar que a referência mais antiga ao uso da caravela pelos portugueses date de 1226, sendo já usada no combate aos mouros e castelhanos; embora em sua tipologia primitiva não devesse ser como a que se tornaria famosa no século XV.
Seja como for, com o auxilio do desenvolvimento da indústria naval, a expansão das fronteiras de Portugal continuaram com grande êxito.
A ponto de D. Sancho II, pouco depois de assumir o trono em 1248, assumir o título de Rei de Portugal e do Algarve; este último território em poder dos mouros foi conquistado um ano depois, enquanto combates contra os castelhanos continuaram.
A situação de guerra com Castela só foi parcialmente resolvida em 1297, por conta de tratados que estenderam a fronteira portuguesa para oeste, em detrimento dos interesses espanhóis.
Expulsos os infiéis e garantida a autonomia de Portugal com relação à futura Espanha, a continuidade da cruzada contra os mouros constituiu um segundo passo natural em direção à expansão naval ultramarina.

Para saber mais sobre o assunto.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2006.
RAMOS, Fábio Pestana. O apogeu e declínio do clico das especiarias: 1500-1700. Volume 1: Em busca de cristãos e especiarias. Santo André: FPR/PEAH, 2012.
RAMOS, Fábio Pestana. Por mares nunca dantes navegados. São Paulo: Contexto, 2008.



sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A guerra de reconquista e o contato com os mouros: fatores que contribuíram para o pioneirismo naval lusitano.


Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 7, Volume dez., Série 16/12, 2016.


Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.


Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.

Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.



Atraídos pela riqueza hídrica, os árabes atravessaram o Estreito de Gibraltar em 711, o domínio muçulmanos sobre a Península Ibérica fez parte da expansão da fé islâmica pregada desde 612 por Maomé.
O relativo sucesso e rápida penetração árabe deveu-se, sobretudo, ao antagonismo entre judeus e cristãos, o que criou espaço para que em muitos locais a população judaica oprimida recebesse os mouros como libertadores.
Embora os muçulmanos tenham permanecido oito séculos na Península, o domínio efetivo teve duração muito variável de região para região, nunca foi exercido nas terras mais setentrionais, onde várias cidades estiveram em poder dos cristãos por breves períodos.
As variações fizeram com que houvesse um intenso intercâmbio cultural e comercial entre cristãos e mouros, apesar de inimigos civilizacionais por excelência.
Os judeus, principalmente dentro do contexto da reconquista, adquiriram a posição de intermediadores culturais.
Graças ao contato com o mundo islâmico, em muitos casos, intermediado pelos judeus, os lusos se depararam com realidades totalmente inéditas.
Neste sentido, a análise das palavras de origem árabe, que migraram para o português, expressa a aquisição de produtos e tecnologias até então desconhecidas; uma vez que uma palavra nova adota-se para exprimir uma realidade nova.
Entre as inúmeras palavras importadas do árabe, a que se destacar as usadas para designar novos produtos como: alfarroba, alface, alfazema, laranja, limão, açafrão, acelga, cenoura, cherivia, alfobre, estragão, albarrã, maçaroca, azeitona e azeite.
Isto, para não mencionar o açúcar, especiaria que assumiria fundamental importância dentro da economia portuguesa.
No que diz respeito às inovações ligadas ao comércio, poderíamos ainda destacar as palavras: almoeda, armazém, almude, arroba, arrátel, fanga, quilate, calibre, quintal, rima, resma, maravedi, ceitil, mitical e fardo.
Todavia, a mais importante de todas as inovações trazidas pelos muçulmanos esteve ligada ao aprimoramento da arte náutica.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, segundo uma das explicações para a origem da palavra caravela, esta teria derivado de “cáravo-à-vela”, embarcação de origem árabe característica do norte da África.
Embora nunca possamos saber com certeza até que ponto o desenvolvimento da caravela esteve ligado ao saber adquirido dos mouros, é certo que ao menos em parte o contato com os muçulmanos influenciou o aprimoramento da indústria naval, assim como diversos instrumentos náuticos que se fariam essenciais à empreitada marítima lusitana foram adquiridos através dos árabes.
É certo que, por volta do século XII, os muçulmanos intensificaram o comércio marítimo desenvolvido pelas cidades do litoral Ocidental, devido as mais estreitas relações que mantinham com os portos marroquinos.
Estas rotas comerciais, dentro do contexto da reconquista, a serem cobiçadas pelos cristãos, ao mesmo tempo em que se fez necessário aprimorar a indústria naval lusitana visando fazer frente aos navios árabes nos seus aspectos militares e comerciais.
Ocorre que, para além deste estímulo à expansão ultramarina portuguesa, pela mesma altura; os mouros haviam iniciado um movimento rumo a exploração da navegação Atlântica , aventurando-se pelo oceano muito antes dos lusos, experiência que seria absorvida pelos portugueses.
Segundo um relato de um geógrafo, datado em 1154, uma destas explorações rumo ao Atlântico, levada a cabo por marinheiros árabes, teria sido realizada pelos chamados “Aventureiros de Lisboa”, na primeira metade do século XII:

“Eram oito marinheiros, aparentados entre si, que embarcaram em Lisboa rumo ao oceano, abastecidos com água e víveres para muitos meses. Ao fim de 22 dias atingiram uma ilha deserta. Regressaram ao mar e, mais tarde, encontraram outra ilha, desta feita habitada e agricultada, onde foram feitos prisioneiros. Interrogados, através de um intérprete árabe, pelo rei local acerca do significado da sua viagem, informaram-no que apenas pretendiam saber quais os extremos limites do mar e o que nele poderia existir de singular e maravilhoso, ao que o rei confessou ser também esse um dos seus desejos. São depois libertados e transportados a um barco, no qual prosseguem a sua navegação. Ao fim de três dias e três noites, aportam a Safim e aí contam sua história” .

Apesar da veracidade deste relato ter sido contestada, não é improvável que os árabes tenham atingido, em suas explorações, a Ilha da Madeira, o arquipélago dos Açores e das Canárias.
Embora, com toda certeza, não tenham se interessado em ocupar estas ilhas, como fariam dois séculos depois os portugueses.
Também não é improvável que os lusos tenham obtido a notícia da existência desta série de ilhas ao Oeste por meio do seu contato com os árabes e, neste sentido, o início da expansão europeia não resulta apenas de um mero acaso, constituindo um processo longamente amadurecido e gerado por uma série de fatores agrupados.
Mais do que o sentimento de continuidade da cruzada contra os infiéis, conduzido, por sua vez, pela guerra de reconquista, tido como estímulo à expansão ultramarina, o contato com os mouros criou condições não só mentais como técnicas que dariam origem a exploração do Atlântico.
Entretanto, no que diz respeito à guerra de reconquista em si, embora o antagonismo religioso tenha sido um grande estimulador da cruzada contra os infiéis; não se pode negar suas razões econômicas e sociais.
As quais, agregadas aos motivos que deram impulso à guerra de reconquista, tal como, a posse de rotas comerciais controladas pelos mouros, serviram de válvula de escape às tesões políticas entre a nobreza e os camponeses empobrecidos do norte da Península Ibérica e da França.
Em outra vertente, como lembrou Raymundo Faoro, em 1958, na obra Os donos do poder, “a guerra, a conquista e o alargamento do território que ela gerou, constituiu a base real, física e tangível, sobre que [se assentaria] o poder da Coroa”; este sim, devido a sua forte centralização, uma das condições básicas que permitiram a primazia lusitana nas navegações ultramarinas.
Retornando a questão da guerra de reconquista, devemos ter em mente que muitas das inovações técnicas no campo da náutica nem sempre foram obtidas por meios pacíficos, muitos segredos registrados em livros escritos em árabe foram roubados durante a pilhagem das povoações ocupados pelos mouros.
Este conhecimento, depois, foi guardado nos mosteiros cristãos, como demonstra o extenso acervo de livros em árabe hoje em poder da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Os quais, justamente devido a barreira linguística, ainda não foram devidamente aproveitados pela historiografia, cuja tradução certamente mostraria que não só os lusos aprenderam com os invasores, como também eles (muçulmanos) se beneficiaram com o intercruzamento cultural.
Uma afirmação que poderia levantar a seguinte questão: teria o saber acumulado nestes livros em árabe, durante os séculos em que a guerra de reconquista foi travada, sido devidamente aproveitados, ou, como hoje, a barreira linguística impediu que fossem decifrados?
Nunca poderemos ter certeza, mas tudo indica que boa parte destes livros foram decifrados à época.
Hoje, a barreira à interpretação do árabe arcaico é realmente incrível, porém, entre os séculos X e XV, os chamados moçárabes e judeus serviram como intérpretes devidamente qualificados.
Cabe esclarecer que os moçárabes eram cristãos que tinham permanecido, sob o domínio islâmico, em suas terras em troca de um tributo anual, pago aos invasores.
Os mouros costumavam agregar, aos seus súditos, aqueles que aceitavam seu domínio; em alguns casos, forçando cristãos à conversão e, em outros, respeitando a fé do outro.
Nas terras dominadas pelos árabes, funcionarem simultaneamente mesquitas e igrejas convivendo pacificamente.
Todavia, embora a tolerância religiosa por parte dos muçulmanos, ou como ficariam mais conhecidos, mouros; nome latino derivado da província islâmica do noroeste da África, a Mauritânia; tivesse sido até certo ponto grande, o mesmo não se repetiu do lado cristão.
O combate aos infiéis começou quase imediatamente depois da invasão muçulmana, mais especificamente em 718, e, rapidamente, ainda antes de 914, um terço da península havia sido reconquisto pelos cristãos.
A guerra avançou rápido, a reconquistada foi iniciada por levas de peregrinos do sul França, justamente onde o avanço muçulmano havia sido barrado pelos francos em 736.
Gradualmente a península foi sendo tomada, em ondas delimitadas, respectivamente entre: 914 e 1080, quando ganhou maior força a reconquista, por conta do lançamento pelo papado, em 1096, da primeira Cruzada contra os infiéis, com fins a libertação da cidade santa de Jerusalém; 1080 e 1130; 1130 e 1210; 1210 e 1250; 1250 e 1480; sendo os territórios remanescentes conquistados pouco depois de 1480.
A pilhagem das povoações ocupadas pelos mouros e a doação das recém conquistadas terras aos nobres participantes, autofinanciou e estimulou a continuidade da guerra de reconquista, criando um poder fortemente centralizado em torno do Rei e dois Estados que iriam tornar-se pioneiros na navegação Atlântica: Espanha e Portugal.
Especialmente o nascimento deste último, é indissociável da guerra contra os infiéis, pretexto que seria retomado ao término da dita reconquista, a fim de direcionar a belicosidade da nobreza em função da exploração ultramarina, sob a égide do Infante Dom Henrique, chamado pelos cronistas portugueses da época e mesmo de períodos posteriores de o navegador.

Para saber mais sobre o assunto.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2006.
RAMOS, Fábio Pestana. O apogeu e declínio do clico das especiarias: 1500-1700. Volume 1: Em busca de cristãos e especiarias. Santo André: FPR/PEAH, 2012.
RAMOS, Fábio Pestana. Por mares nunca dantes navegados. São Paulo: Contexto, 2008.



quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

A localização geográfica favorável de Portugal: fator que contribuiu para o pioneirismo naval.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 7, Volume dez., Série 15/12, 2016.



Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.

Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.

Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.



Dentre os fatores que criaram condições favoráveis, para além de várias razões que levaram os lusos a buscarem no mar a expansão da fé e o enriquecimento; a localização geográfica esteve na gênese do pioneiro nas grandes navegações do século XV e XVI.
Todavia, como cantou Camões, foi graças a estar situado quase no cume da cabeça de Europa , onde a terra se acaba e o mar começa, que Portugal pôde lançar-se à aventura ultramarina.
O território, na antiguidade, era considerado, principalmente no período romano, uma região periférica, situada nos limites do mundo conhecido, concepção herdada dos gregos.
A Odisseia, de Homero, retratava o Estrito de Gibraltar como a entrada do submundo, nomeado como um lugar para além das Colunas de Hércules.
Nem por isto o território era desprovido de valor, em suas terras podiam ser encontradas ricas jazidas de ouro e prata e os melhores ourives de todo o mundo greco-romano.
Na História, Heródoto utilizou pela primeira vez o nome Tartessos, narrando o caso de um mercador grego, Colaios de Samos, que teria comercializado com o rei Argantonio.
Este nome carregava um simbolismo de como a Península Ibérica era vista pelos gregos, pois na versão arcaica deste idioma significa “o homem da montanha de prata”, sugerindo a riqueza mineral.
Uma característica que explica, posteriormente, a criação de núcleos populacionais romanos, no atual Portugal, de grande importância no mundo antigo, tal como Conimbriga, a 17 Km a sul da atual Coimbra.
Uma cidade cujas ruínas, em bom estado de conservação, foram em grande parte já escavadas, dando provas da importância da colônia da Lusitânia, dentro da amplidão do Império Romano desde pelo menos 83 a.C.
Portanto, desde a antiguidade, localizado no extremo Ocidental da Europa, contido em suas fronteiras Orientais pela Espanha, graças aos ventos e correntes que levam ao mar aberto, Portugal esteve condicionado a buscar uma saída pelo Atlântico.
Possuía ancoradouros naturais ao longo da costa e uma tradição de deslocamento por via fluvial, o que estimulou a entrada das primitivas embarcações lusas cada vez mais em direção ao alto mar.
O condicionante geográfico conduziu ao aprimoramento da indústria naval, chamada na época de arte náutica.
Não obstante, embora a posição geográfica explique a intimidade do povo com o mar, não justifica de todo seu pioneirismo, questão mais complexa.
Uma vez que os ingleses, tendo seu país situado em uma ilha, também poderiam ter se lançado ao pioneirismo naval, dado sua posição no globo, até mesmo antes dos lusos.
No caso das terras que iriam formar a Grã-Bretanha, uma série de questões internas retardou até tardiamente a entrada dos ingleses na corrida do expansionismo colonial, iniciado na Idade Moderna.
Já no caso português, a tradição cultural, herdada da mistura eclética entre povos de origens diversas, durante a proto-história do território Ibérico; somada a uma série de circunstâncias políticas e militares; levou Portugal a ser deslocado de zona periférica para território de passagem obrigatória, remetendo novamente a geografia.
Sendo já ponto de passagem obrigatório durante a antiguidade, no contexto das cruzadas, a abertura de rotas comerciais de especiarias, via as cidades italianas, contribuiu enormemente para o pioneirismo lusitano.
Novamente, a geografia condicionou Portugal a servir de escala e entreposto comercial italiano, intermediando produtos Orientais para o norte da Europa.
Em 1947, Jaime Cortesão foi um dos primeiros historiadores a chamar a atenção para predestinação geográfica e política de Portugal.   
Braudel, em seu O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II, também alertou para os laços entre a história e o espaço.
Não obstante, poderia ser objetado que Portugal sempre esteve situado no mesmo lugar, o que daria margem a perguntar por que então não se lançaram os lusos a aventura marítima antes.
Para compreender este aparente enigma, é necessário ter em mente que núcleos populacionais só se formam onde recursos naturais propiciam a manutenção da vida, ao passo que no território onde se estabeleceria Portugal não foi diferente.
Embora algumas regiões do futuro Estado português não se mostrassem muito atrativas, devido à baixa fertilidade do solo, o potencial hídrico e mineral constituiu, desde cedo, um chamariz, ao mesmo tempo em que o mar e os rios foram sempre uma excelente reserva alimentícia.
Assim, conforme o volume populacional manteve-se estável, não houve necessidade de avançar mar adentro em busca de recursos, inclusive se encarregando o próprio imaginário popular de impedir qualquer ação neste sentido.
O crescimento da densidade populacional nas cidades a partir do século XIV, aliado ao esvaziamento do campo, obrigou os lusos a buscarem no mar os recursos que o solo não podia suprir.
Justamente em um momento em que outros fatores se somaram a este, valorizando a posição estratégica de Portugal.
O que impulsionou sua população para a aventura marítima, constituindo a solução mais óbvia aos problemas que se impunham no período.
Deste modo, caso a geografia de Portugal ou um dos fatores do contexto da época fosse diferente, poderiam os lusos nunca ter adotado a solução Atlântica.
Provavelmente teriam buscado outra resposta aos problemas enfrentados ou mesmo migrando para outro local em busca de recursos, algo que não seria novo na história da humanidade.
Uma possível resposta à falta de braços no campo e a superlotação das cidades no século XV, terminaria certamente tendo um desfecho natural, não fosse à posição de Portugal no globo.
Não houvesse a opção de ir buscar no mar a solução, a própria falta de alimentos teria se encarregado de equilibrar a densidade populacional rural e urbana, fazendo os elementos urbanos buscarem por si fugir das cidades.
No entanto, devemos ter presente que a localização favorável de Portugal, em si, não foi à única mola impulsionadora do pioneirismo naval.
Este pioneirismo só fez cumprir-se devido a uma somatória de fatores.
Onde se insere o ideal cruzadístico, que levaria os lusos a dar continuidade à guerra contra os infiéis no norte da África, por sua vez, gerado pela guerra de reconquista.
O próprio contato com os mouros, advindo da guerra de reconquista, traria inovações técnicas vitais ao aperfeiçoamento de embarcações, este também um fator entrelaçado com a geografia.
Aliás, somando-se a este fator, a carência do solo e a indústria da pesca, foi igualmente uma força impulsionadora ligada à localização geográfica.
A solução Atlântica, aparentemente ideal aos problemas que se impunham, nasceu do condicionante geográfico; a despeito deste estar entrelaçado com outros, os quais analisaremos em separado em outros textos.

Para saber mais sobre o assunto.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2006.
RAMOS, Fábio Pestana. O apogeu e declínio do clico das especiarias: 1500-1700. Volume 1: Em busca de cristãos e especiarias. Santo André: FPR/PEAH, 2012.
RAMOS, Fábio Pestana. Por mares nunca dantes navegados. São Paulo: Contexto, 2008.



sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Grumetes, órfãos e degredados: cotidiano a bordo das embarcações lusitanas quinhentistas.


Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 7, Volume dez., Série 09/12, 2016.


Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.

Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.



Com o incremento da epopeia marítima portuguesa a partir de 1497, quando Vasco da Gama abriu a rota da Índia, em um momento em que o Brasil não teve grande importância econômica, constituindo mero ponto de passagem para os navios da Carreira da Índia[1], cresceu também a demanda de mão de obra para construir e tripular as naus lusitanas. 
Abundaram homens a se oferecerem para imigrar às novas possessões da Coroa no Oriente, pois esta ao seu ver constituía uma excelente oportunidade de enriquecimento rápido e fácil que no Reino nunca poderia ser alcançado.       
Em contrapartida, a carência de mão de obra se fez sentir agudamente nos escassos navios que começaram a rumar a Terra de Santa Cruz, obrigando a Coroa a adotar soluções paliativas.
A muito, nos grandes centros urbanos de Portugal os vagabundos e crianças abandonadas a perambularem pelas ruas constituía um grande problema, fato agravado por um crescente êxodo rural, sendo que a imensa maioria dos adultos haviam migrado para as cidades exatamente em busca da oportunidade de servirem na rota da Índia, justamente em um momento em que os postos abertos não podiam absorver toda a mão de obra desocupada, ao mesmo tempo, o número de crianças abandonadas só tendia a aumentar proporcionalmente ao número de camponeses empobrecidos a rumarem para as cidades.
Durante o século XV o recrutamento de forçados havia se mostrado útil ao preenchimento de navios para os quais ninguém queria se oferecer para servir como marinheiro, pois, no período temia-se o confronto com o desconhecido oferecido dia-a-dia aos navios que se aventuravam cada vez mais ao sul. 
Assim, a resolução da questão da falta da mão de obra na rota do Brasil pode ser facilmente contornada através do emprego daqueles que haviam sido excluídos pelas circunstâncias da Carreira da Índia.
Inicialmente, o emprego de crianças a bordo foi restrito, isto porque ainda não se fazia necessário, pois o rapto de vagabundos e o uso de degredados dava conta de suprir a carência de braços. Fazendo-se sentir a falta de marinheiros, conforme a “necessidade”, os “privilégios” eram quebrados e “vadios e desobrigados”[2] eram compulsoriamente embarcados nos navios que deles necessitassem, vagabundos e ciganos eram pura e simplesmente raptados ou presos sob algum pretexto, ao passo que as cadeias eram esvaziadas, sendo os criminosos obrigados, através de degredo, a migrarem para o Brasil ou servirem por determinado período em embarcações da Coroa e ou de particulares[3].
Não obstante, com o crescimento da demanda de navios e homens na Carreira da Índia, já pela altura da terceira década do século XVI, cada vez mais o uso de degredados e desocupados, estes últimos a tornarem-se escassos, precisou ser canalizado para os estaleiros portugueses e para os navios das rotas Orientais, ao que um índice de mortalidade alto na Índia exigia um envio constante de mais e mais homens, tornando difícil novamente suprir os navios que participavam do caminho do Brasil com marinheiros, mais uma vez o problema foi solucionado através do recrutamento dos excluídos, daqueles que causavam problemas nos centros urbanos ou representavam custos para o Estado, ou seja, por meio da utilização daqueles que hoje chamaríamos de crianças de rua como grumetes.
Apesar de muitos considerarem os ibéricos como possuidores de uma grande afetividade para com seus pequenos, o quadro das sensibilidades quinhentista era bem diferente. 
Na verdade, entre portugueses ou outros povos da Europa a alta taxa de mortalidade infantil, verificada ao longo de toda a Idade Média e mesmo em épocas posteriores, interferiu na relação dos adultos com as crianças. 
A expectativa de vida das crianças portuguesas entre os séculos XIV e XVIII rondava os “14 anos”[4], enquanto “cerca de metade dos nascidos vivos morria antes de completar sete anos”[5]
Isto fazia com que, principalmente entre os estamentos mais baixos, as crianças fossem consideradas como pouco mais que animais cuja força de trabalho deveria ser aproveitada ao máximo enquanto durassem suas pequenas vidas.
Um conto infantil português do século XVI, recolhido da tradição oral, classifica os “dois filhos” recém-nascidos de um rei como um “macho e outro fêmea”[6]
Esta forma de referir-se às crianças permite deduzir que, dentro do quadro das sensibilidades, as crianças não passavam de animais, sendo categorizadas do mesmo modo que o seriam os negros escravizados, vistos então como meros “instrumentos vocais”.
Este sentimento de desvalorização da vida infantil incentivou a Coroa a recrutar crianças como mão de obra justamente em um momento em que os homens adultos eram cada vez mais escassos e os poucos existentes procuravam de toda maneira fugir a vida no mar, pois sabia-se que a mortalidade era alta e as privações cotidianas a bordo. 
Assim, compulsoriamente a Coroa procurou alistar meninos de 9 a 16 anos, procurando-os em meio às famílias pobres das áreas urbanas, uma vez que neste meio eram muitos os órfãos de pai falecido na Índia e de mãe decorrente das mais variadas doenças, sendo alta a taxa de mortalidade e o envelhecimento precoce de mulheres à época, ao passo que as crianças camponesas não podiam ser utilizadas por serem necessárias na faina agrícola.
Entretanto, não tardou para que mesmo os órfãos se fizessem escassos, forçando a Coroa a buscar preencher as vagas de grumetes com crianças cujos pais ainda estavam vivos, em meio às famílias lusitanas pobres e numerosas e a judeus, estes últimos tidos como dispensáveis pelo poder régio. 
Enquanto para os pais de crianças pobres elas eram consideradas um meio eficaz de engordar à renda da família, constituindo seu alistamento sempre um bom negócio, já que mesmo que estes viessem a perecer no além-mar, podiam receber os soldos de seus miúdos. 
Para os pais das crianças judias, em geral arrancadas a força de seus pais, em um período no qual o rapto significava, simultaneamente, um meio de obter mão de obra barata e manter sob controle o crescimento da população judaica em Portugal[7], constituía uma grande perda afetiva, pois as implicações econômicas, neste caso, eram descartadas em vista da maioria esmagadora dos judeus ser possuidora de recursos consideráveis.
Às crianças era imputada a tarefa de servir a bordo das naus como grumetes ou pagens. 
Aos grumetes cabiam os mesmos serviços prestados pelos marinheiros, enquanto os pagens, por sua proximidade junto aos oficiais, desfrutavam de vários privilégios, realizando trabalhos leves, assemelhando-se a pequenos “mandaretes”[8].
Uma lista dos soldos pagos aos tripulantes de uma nau portuguesa permite observar que, em meio a uma tripulação composta por 106 homens, “20”[9] eram grumetes. 
Ou seja, exatamente a metade do número de marinheiros a servirem na embarcação. 
A população composta pelos mesmos girava em torno de 18% do total de tripulantes. 
Assim, em uma nau composta por 150 tripulantes - média de homens empregados nas naus portuguesas do século XVI e XVII - pelo menos 27 crianças estariam servindo como grumetes, número que comprova a importância da presença infantil na aventura transoceânica.
Ainda a respeito da presença desses pequenos marujos, cabe notar que a partir da segunda metade do século XVII e, principalmente, de meados do XVIII, o número de grumetes nos navios lusitanos chegou a ser o mesmo que o número de marinheiros e, algumas vezes, até superior devido a falta cada vez maior de profissionais adultos. 
Estes últimos tornaram-se mais escassos do que já o eram, pois as “elevadas taxas de mortalidade” no Reino e nas possessões ultramarinas - ocasionadas pelas “deficientes condições sanitárias e econômicas”, quando não “eram as epidemias e as fomes que matavam mais gente”[10] - haviam causado uma drástica redução da população adulta. Enquanto os ingleses procuraram suprir a falta de mão de obra adulta livre em seus navios através da utilização de escravos negros alforriados, os portugueses optaram pela utilização de crianças[11].
Entre os séculos XVI e XVIII, apesar dos grumetes não passarem de frágeis crianças realizavam a bordo todas as tarefas que normalmente eram desempenhadas por um homem. Recebiam de soldo, contudo, menos da metade do que um marujo, pertencendo à posição mais baixa dentro da hierarquia da marinha. 
Sofriam ainda inúmeros maus tratos e apesar de pelas regras da Coroa estarem subordinados ao chamado guardião (cargo imediatamente abaixo do contramestre, ocupado em geral por um ex-marinheiro) tinham que prestar contas aos marinheiros e até mesmo aos pagens, que costumavam explorar seus pares mais pobres, a fim de aliviar sua própria carga de trabalho.
Encarregar os pequenos grumetes dos trabalhos mais pesados e perigosos era um hábito corriqueiro e exemplos não faltam nos documentos de época. 
A compilação de relatos de naufrágios realizada por Bernardo Gomes de Brito no século XVIII, reunidos no seu História Trágico-Marítima, dá conta que em 1560, na nau São Paulo, que haveria de naufragar no ano seguinte, um grumete foi colocado de serviço na gávea, caindo de lá e “desfazendo a cabeça em pedaços” no convés, espalhando “os miolos”[12] por todo canto. 
Apesar de todos a bordo, inclusive os oficiais, terem plena consciência de que “os acontecimentos e perigos do mar” eram sempre “súbitos e estranhos” e de “que a todas as horas e momentos” estavam a eles “sujeitos”[13], não havia hesitação em colocar as pobres crianças para atuar nos trabalhos mais arriscados. 
Quando um dos habituais acidentes ocorreu, apesar do “muito temor e espanto” causado entre os tripulantes, tudo que os outros grumetes ouviram é que o morto era um “mancebo valente”, ao que justificou-se sua escolha para vigia na gávea, por ter ele, apesar de criança, um corpo “grosso” e temperamento “bem disposto”, nem sendo tão criança assim, pois estava até “despojado de no[i]vo”[14] no Reino.
De todos os embarcados, os grumetes eram os que tinham as piores condições de vida. 
Enquanto cada marujo tinha ao menos direito a um catre - uma cama de viagem - e um baú para guardar seus pertences, os grumetes eram alojados a céu aberto no convés, próximo aos “amantilhos (cabo que sustenta às vergas) e às curvas d’ante a ré dos amantilhos”[15], ficando expostos ao sol e a chuva e vindo a falecer, aliás, como outros tripulantes mais debilitados, vitimas de pneumonia e queimaduras do sol.
Condicionados ao mesmo tratamento dos tripulantes adultos, os grumetes tinham direito a uma ração de “uma libra e meio de biscoito por dia (...) e um pote de água, uma arroba de carne salgada por mês e alguns peixes secos, cebolas e manteiga”, pois o alimento nas embarcações portuguesas era “distribuído igualmente a todos”[16]
Não recebiam, todavia, a ração diária de “um pote de vinho” que cabia aos marinheiros. 
Em muitos casos, como por exemplo nas viagens de volta da Carreira da Índia, devido a falta de espaço causado pelo armazenamento de mercadorias, recebiam “senão biscoito e água”[17].
Embora a situação fosse um pouco mais amena na Carreira do Brasil, os miúdos eram sistematicamente acometidos de inanição e escorbuto. 
Esse último, chamado também de mal de Luanda, era provocado pela falta de vitamina C, resultando no apodrecimento das gengivas. 
Como os médicos eram raros a bordo, as crianças eram entregues aos cuidados de barbeiros que serviam como cirurgiões nas embarcações; estes costumavam aplicar-lhes as temidas sangrias, método de cura para todo e qualquer mal, que na maior parte das vezes, terminava por exauri-los ou matá-los.
Visando enriquecer a dieta de bordo, os tripulantes tinham permissão para tentar pescar, mas estando sempre sobrecarregados pelos trabalhos diários e vigiados de perto pelo guardião, não sobrava tempo para que os grumetes participassem desta forma corriqueira de melhoria das refeições. 
Recorrer então aos “muitos ratos”[18] e “baratas”[19] era a única saída que lhes restava.
Entregues a um cotidiano duro e cheio de privações, os grumetes viam-se obrigados a abandonar rapidamente o universo infantil para enfrentar a realidade de uma vida adulta. 
Muitos marujos inescrupulosos, aproveitando-se da fragilidade física dos grumetes, sodomizavam-nos, porém, quando grumetes eram estuprados, quer por medo ou vergonha, dificilmente iam se queixar aos oficiais, até mesmo porque muitas vezes eram os próprios oficiais que praticavam a violência.
Diferente dos grumetes, os pagens dificilmente eram importunados por marinheiros, sendo respeitados, principalmente porque eram originários de famílias da baixa nobreza ou relacionadas com estas. 
A eles eram confiadas tarefas leves como arrumar as camas dos oficiais ou servir a mesa, além do que, para eles, a possibilidade de ascensão social dentro da hierarquia marítima era muito maior do que a dos grumetes. 
De qualquer modo, fosse pagem ou grumete, a vida no mar proporcionava um rude aprendizado a estas crianças.
Enquanto os meninos pobres menores de 16 anos eram embarcados como grumetes e pagens nas naus portuguesas e alguns dos filhos dos oficiais, mesmo não sendo pagens, embarcavam simplesmente como acompanhantes de seus pais a fim de aprender seu ofício, as meninas órfãs de pai e pobres eram arrancadas a força de sua família e embarcadas sob a categoria de “órfãs do Rei”, sendo destinadas a casarem-se com elementos da baixa nobreza presente no Brasil e na Índia.
Muitas prostitutas e ciganas eram encerradas nos orfanatos de Lisboa e Porto como se órfãs fossem, mesmo na maior parte dos casos tendo pai ou mãe vivo, e junto com órfãs verdadeiras causavam verdadeiro alvoroço a bordo das embarcações onde predominavam os homens, sendo caçadas por grupos de marinheiros mau intencionados que ficavam dias a espreita a espera da oportunidade ideal, terminando por freqüentemente serem vitimas de estupros coletivos que garantiam a impunidade aos agressores, sendo que dificilmente as vítimas iam se queixar pelo medo de sofrerem retaliações[20].
Em uma época em que meninas de 15 anos eram consideradas aptas para casar e meninos de 9 anos plenamente capacitados para o trabalho pesado, o cotidiano infantil a bordo das embarcações portuguesas era extremamente penoso para os pequeninos. 
Os meninos não eram ainda homens mas eram tratados como se fossem e ao mesmo tempo eram considerados como pouco mais que animais cuja a mão de obra deveria ser explorada enquanto durasse sua vida útil. 
As meninas de 12 a 16 anos não eram ainda mulheres, mas em idade considerado casadoura pela Igreja católica, eram caçadas e cobiçadas como se o fossem. 
Em meio ao mundo adulto, o universo infantil não tinha espaço: as crianças eram obrigadas à se adaptar ou perecer.
Se por um lado foram poucas as crianças embarcadas nas naus quinhentistas rumo ao Brasil, por outro lado, a mão de obra infantil na falta de adultos tornou-se indispensável à epopeia marítima. 
Neste sentido, seriam os grumetes e pagens considerados crianças ou eram vistos como adultos em corpos infantis? 
Ao que parece, embarcavam em Lisboa crianças que ao longo de sua primeira viagem, antes de chegar ao Brasil, tornavam-se adultos calejados pela dor e pelo sofrimento.
Não obstante, poucas crianças, quer embarcadas como tripulantes ou passageiros, conseguiam resistir à insalubridade das embarcações portuguesas, a inanição e às doenças; e um número ainda menor sobrevivia em caso de naufrágio. 
Se eram poucas as crianças embarcadas, o número de pequenos que chegavam vivos ao Brasil ou mesmo a Índia era menor ainda, e com certeza nenhum conseguia chegar ileso ao seu destino. 
O menor mal que podia sofrer após viver alguns meses no mar, quando tinha sorte, era o de sofrer um grande trauma e deixar de ser criança; ver seu universo de sonhos, esperanças e fantasias desmoronar diante da cruel realidade do cotidiano das naus do século XVI; perder sua inocência para nunca mais recuperá-la.
Os grumetes e pagens, órfãos ou não, juntamente com os degredados, vagabundos e desocupados, excluídos das rotas mais lucrativas e ao mesmo tempo de uma participação nos proveitos obtidos com o comércio da pimenta, constituíram o grosso da mão de obra empregada na rota do Brasil quinhentista, quando a atenção dos adultos voluntários estava voltada para a Carreira da Índia. 
No entanto, a partir do inicio do século XVII esta situação começaria a se inverter, e, depois da criação da Carreira do Brasil, na metade de seiscentos, mudaria quase completamente, embora crianças, bandidos e vadios tenham continuado a serem empregados na nova Carreira em número reduzido, a Carreira da Índia passou a ser então o principal destino dos excluídos, mas esta já é outra história.

Texto originalmente apresentado como Comunicação livre-CL131 no XV Encontro Regional da ANPUH (Associação Nacional de História), no ano 2000, com o título "Grumetes, órfãos e degredados:a história dos excluídos a bordo das caravelas e naus dos descobrimentos".

Na ocasião apenas o resumo foi publicado nos anais do evento.

Resumo: A reboque das comemorações em torno dos 500 anos do descobrimento do Brasil, pretendemos reconstituir o cotidiano dos excluídos a bordo das caravelas e naus do século XVI e XVII, quando: os grumetes, em geral crianças entre 9 e 16 anos, sofriam constantemente maus tratos e abusos sexuais por parte dos marinheiros e oficiais; órfãos eram embarcados compulsoriamente e obrigados a migrar rumo as colônias de além mar; prostitutas eram encerradas nos orfanatos de Lisboa e Porto para depois serem também obrigadas a migrar para o Novo Mundo como se fossem órfãs, sendo obrigadas a casarem-se com elementos da pequena nobreza no Brasil e na Índia; ciganos e judeus eram condenados a servirem nos navios como degredados unicamente pelo crime de pertencerem às minorias. 





[1] LAPA, José Roberto do Amaral. O Brasil e a Carreira da Índia. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Editora da Universidade de São Paulo, 1968.
[2] ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa). Cartas dos Governadores de África e de outras pessoas para el-Rei (maço único), Núcleo Antigo 877, documento 134.
[3] COATES, Timothy J. Degredados e Órfãs: colonização dirigida pela coroa no império português. 1550-1755. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.
[4] SERRÃO, José. “Demografia portuguesa na época dos descobrimentos e da expansão” In: ALBUQUERQUE, Luís de (direção) & DOMINGUES, Francisco Contente (coordenação). Dicionário de história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Caminho, s.d., volume 1, p.349.
[5] MICELI, Paulo. O ponto onde estamos: viagens e viajantes na história da expansão e da conquista. São Paulo: Scritta, 1994, p.49.
[6] COELHO, Adolfo. Contos populares portugueses. Edição gramaticalmente atualizada por Ernesto Veiga de Oliveira a partir do original de 1879, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993, p.177.
[7] HERCULANO, Alexandre. História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Lisboa: Aillaude Bertrand/Francisco Alves, 1852, Tomo 1, p.137-155.
[8] DOMINGUES, Francisco Contente & GUERREIRO, Inácio. “A vida a bordo na Carreira da Índia (século XVI)” In: Revista da Universidade de Coimbra. Coimbra: Separata da Biblioteca Central da Marinha Portuguesa, s.d., p.201.
[9] BARCELLOS, Christiano (org. e compilação). Construções de Naus em Lisboa e Goa para a Carreira da Índia no começo do século XVII. Lisboa: Separata da Biblioteca Central da Marinha Portuguesa, 1898, p.38.
[10] SERRÃO. Op. Cit. In: ALBUQUERQUE & DOMINGUES. Op. Cit., p.349.
[11] WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. Tradução do inglês e notas de Carlos Nayfeld, Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1964.
[12] “Relação da viagem, e naufragio da Nao São Paulo, que foy para India no anno de 1560. Escrita por Henrique Dias, Criado do S. D. Antonio Prior do Crato” In: BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima (fac-símile da edição original de 1735/36). Lisboa: Edições Afrodite, 1971, volume 1, p.290.
[13] Idem, Ibid.
[14] Idem, Ibid, p.291.
[15] “Relatório do Almirante João Pereira Corte Real, datado em 12 de setembro de 1619, a Felipe II da Espanha” In: BARCELLOS. Op. Cit., p.24.
[16] Histoire de la navigation de Iean Hvgves de Linschot Hollandois...” In: MICELI. Op. Cit., p.15.
[17] Idem, Ibid.
[18] “O triste sucesso da nau São Paulo (1560)” In: SÉRGIO, António (organização e adaptação). História Trágico-Marítima. Lisboa: Sá da Costa, 1991, p.122.
[19] Idem, Ibid, p.130.
[20] RAMOS, Fábio Pestana. “A História Trágico-Marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI” In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p.19-54.