Publicação brasileira técnico-científica on-line independente, no ar desde sexta-feira 13 de Agosto de 2010.
Não possui fins lucrativos, seu objetivo é disseminar o conhecimento com qualidade acadêmica e rigor científico, mas linguagem acessível.


Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

As ruínas do Engenho de São Jorge dos Erasmos: pesquisa histórico-arquitetônica e estrutural do engenho.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 12, Volume jul., Série 23/07, 2021.


Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

Líder do Projeto.

Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.

Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.
Graduado em Pedagogia - UNICSUL.


COAUTORES: Claudiano de Santana Alves, Denison Valdez Felix, Denner Lima dos Santos, Diego Sanchez Limeira, Gabriela de Castro Soares, Geiel Bernardes da Silva, Igor Garcia Alonso Junior, Luis Felipe Lima de Sousa.


O texto deste artigo originalmente compunha uma monografia inserida no Projeto Integrador, orientada pelo Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos, apresentada pelos alunos citados como coautores ao Centro Universitário Monte Serrat (Unimonte), como exigência parcial para a aprovação na disciplina PI I do curso de engenharia civil. Os resultados da pesquisa foram apresentados ao público em evento interno da universidade, submetido à avaliação de banca de professores do curso no ano de 2014. Este texto foi atualizado pelo orientador, com modificações substanciais, para publicação na Revista.

 

 

Resumo O engenho São Jorge dos Erasmos foi o ponto de partida para a indústria açucareira no Brasil, pois o rei D. Manuel decidiu explorar o Brasil com o objetivo lógico de lucrar, construindo assim, um ponto comercia forte com o intuito de fabricar e exportar o açúcar. O engenho foi construído na antiga vila de São Vicente, hoje pertencente à cidade de santos. E tudo isso ocorreu em meados de 1532 com a vinda de Martim Afonso de Sousa que fora responsável pela a construção do engenho. Com o processo de construção, foi criada uma sociedade de investidores, que futuramente foi desfeita e Erasmos Schetz comprou as partes para enfim executar a construção do engenho.

Palavras-Chave: Brasil Colônia, Engenho de cana-de-açúcar, História da Arquitetura, História da Engenharia.

 

ABSTRACT: The Engenho São Jorge dos Erasmos was the starting point for the sugar industry in Brazil, for the king D. Manuel decided to explore the Brazil with the objective logic of profit, thus building a strong point trades in order to manufacture and export sugar. The mill was built in the ancient village of St Vincent, now belongs to the city of saints. And all this occurred in mid-1532 with the arrival of Martim Afonso de Sousa, who was responsible for the construction of the mill. With the process of building a society of investors, which eventually was scrapped and Erasmos Schetz bought the parts for short run of the mill building was created.

Keywords: Brazil Colony, Sugarcane mill, History of Architecture, History of Engineering.

 

 

1. INTRODUÇÃO.

O Engenho de São Jorge dos Erasmos foi de grande importância para o desenvolvimento populacional, agrícola e econômico do Brasil; é um dos primeiros engenhos de açúcar do país e sua data de construção remonta a 1534.

Atualmente está localizado no bairro da Caneleira, no município de Santos.

Construído com a intenção de preservar e ocupar as novas terras descobertas pelos portugueses, o rei D. Manoel enviou um homem de confiança, Martin Afonso de Souza, donatário da Capitania de São Vicente.

Ele é considerado pioneiro na colonização do Brasil, lançou as bases de ocupação da região, criando toda uma infraestrutura que permitiu a fixação lusitana.

Foi responsável por construir fortalezas e introduziu o cultivo de cana de açúcar na nova capitania.

Entretanto, o empreendimento não ficou muito nas mãos de Martin Afonso, passou a propriedade dos Schetz, por volta de 1540.

Na nova gestão, o engenho viveu seu período de apogeu como manufatura açucareira, séculos depois seria desativado e entraria em um processo deterioração até se transformar em ruínas.

Em 1958, mesmo ano que a propriedade foi doada à Universidade de São Paulo (USP), Luís Saia, chefe do 4º Distrito da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - orgão federal -; relatou ao presidente da Comissão Especial do Engenho São Jorge dos Erasmos que realizou prospecção, definindo o partido arquitetônico como de modelo açoriano, tipo real e movido à água.

Levando em consideração a declaração, surge a hipótese de haver uma mistura de estilos de construção, pois o engenho tem características de uma fortaleza e cômodos iguais á de uma senzala e um depósito, onde possivelmente se guardava o que era produzido ali, essa construção possivelmente foi muito mais que um engenho.

Esta hipótese é baseada nas condições sociais da época, onde o Brasil estava sendo explorados, os índios eram capturados e escravizados, com isso, presumimos que o engenho ou qualquer outro tipo de construção poderia ser sujeita a ataques.

A bibliografia pertinente a problemática é vasta, porém limitada, devido uma grande lacuna existente vinda da degradação do monumento estudado e documental da época.

Foi um desafio trabalhar com muitas hipóteses, mas sem fugir da realidade quinhentista e atual.

Através de um vasto acervo de pesquisa já existente, pretendemos continuar a contribuir com o crescimento desse acervo, discutindo a importância do engenho na história do Brasil.

O objetivo é resgatar este acontecimento histórico, que vai além da construção do engenho no âmbito da colonização e expansão comercial açucareira.

Esta intenção envolve a pesquisa da construção do engenho, tecnologias e matéria prima da época.



2. METODOLOGIA.

Para elaboração deste trabalho, seguimos a normatização da ABNT (Associação Brasileira de normas Técnicas), conforme preconizado pela NBR (Norma Brasileira Regulamentadora) 6023.

Atendemos ao padrão estabelecido pelo Manual de Trabalho Interdisciplinar Dirigido/Projeto Aplicado 2-2014 da Unimonte e a Portaria da Reitoria 006/2014 que instituiu as Normas para o Trabalho Interdisciplinar Dirigido/Projeto Integrador.

Desde o início, mostrou-se um grande desafio, embora fosse notório o quão gratificante seria traçar esse caminho em busca de antigas metodologias construtivas.

Pesquisas minuciosas da ruína foram iniciadas, em cima de muitas leituras e dedicação geral de grupo, empenharam-se todos em uma pesquisa de campo.

No local das ruínas, muitas informações foram obtidas dos historiadores responsáveis pelo patrimônio histórico, permitindo conhece detalhes; mas também realizamos medições para utilizar em escala, visando a construção de uma maquete das ruínas.

A problemática envolve entender todo processo de construção, razão pela qual trabalhamos com inferência, chegando a possibilidades, dado o tempo que nos separa da sua fundação por Martin Afonso de Souza.

Em 1996, uma escavação no engenho foi realizada pela equipe da USP, possibilitando evidenciação do material arqueológico, por isto, optamos pela ênfase à representação das ruínas no presente.

Foram encontrados em profundidade, em um paiol - usado para guardar armas e alimentos -; louças, porcelanas e alguns pedaços de utensílios domésticos da época.

Foi descoberto também que atrás do engenho existia uma grande cachoeira que dava força ao moinho, hoje em dia é uma fina bica d'água.



3. RESULTADO.

Um outro engenho surgiu inicialmente como um empreendimento dos portugueses, em 1501, na região próxima ao que hoje é a cidade de Santos.

Foi quando um primeiro desterrado foi enviado para o Brasil, o mestre Cosme Fernandez, judeu de alta cultura que exilado e aqui chegando conseguiu gerar riquezas.

Hipótese confirmada por documentação da época: “Em consequência de uma Lei de Expulsão de 1497, saiu de Portugal, com destino certo e determinado, inscrito no Livro dos Degredos, e no caso de Mestre Cosme Fernandes, o destino era  25 Graus de Ladeza, na Costa do Brasil - o que coincidia com a Ponta Sul da Ilha do Meio (Cananeia)”. http://www.portalpraiasp.com.br/histocananeia.htm

O sucesso do mestre Cosme, em terras brasileiras, gerou interesse dos portugueses, já na época engajados em uma alta produção de açúcar em outros territórios pertencentes a Portugal.

O rei D. Manuel, ordenou que viesse um homem forte e competente de sua confiança, capaz para dar início a nova tecnologia em produção de açúcar.

Em 1534, a mando do donatário da Capitania de São Vicente, oficialmente, começou a construção do Engenho dos Governadores, assim chamado na época.

Somente após estar em posse da família Schetz, é que foi denominado Engenho de São Jorge dos Erasmos.

Uma das razões para construção do engenho no que hoje é o bairro da Caneleira, na cidade de Santos é explicado pela documentação da época.

Dizia: “E assim é a terra mui sadia, fresca de boas águas, e esta foi a primeira onde se fez açúcar, donde se levou planta das canas para as outras capitanias” (GEAMPAULO, 1988: 416).


A. Descrição da Estrutura.

A sua estruturação sofreu forte influência da constante ameaça de ataques indígenas e piratas, foi pensado para ocupar pontos elevados, edificado com muros de arrimo para facilitar uma visualização frontal.

Seguiu os padrões europeus, parecido com os engenhos idealizados na Ilha da Madeira.

Utilizou técnicas de construção do século XVI, usando madeiras locais e grandes pedras.

As paredes tinham 0,60m a 1,30m de espessura, unida com argamassa de cal derivado de conchas (Sambaquis).

O engenho comportava uma unidade administrativa e, simultaneamente residencial, com dependências para nativos escravizados, visto que as senzalas seriam edificadas décadas mais tarde.

Conforme verificado na documentação do período, que afirma que o engenho possuía “uma casa muito grande com seis lanços, uma senzala com uma ferraria provida de baluarte e ainda duas casa cobertas de telhas, muito boas e fortes (...)[,] todas essas casas se erguiam na altura e todas juntas e próximas de maneira que nenhuma fazenda (...) tão forte aos contrários” (GEAMPAULO, 1988: 416).

Existia na época um riacho atrás do engenho, permitindo o funcionamento do moinho a energia hídrica, seguindo os métodos de produção madeirense, mas existe a possibilidade ter sido combinado com moenda de tração animal.

Existia também uma capela, construída posteriormente por influência dos padres jesuítas, feito em homenagem a São Jorge, o que daria ao local seu nome após passar para a propriedade dos Schetz, por volta de 1540.

Foi edificada com tijolos, diferenciando-se da fundação de arrimo, representando uma parte indispensável no engenho.

Era um local de reuniões da comunidade local que estendia-se para além do engenho, palco de nascimentos, casamentos, cerimônias indicativas do início da safra e funerais.

Atraia toda a sociedade do complexo e dos arredores nos domingos e dias santos.

Os arqueólogos encontraram nas proximidades um “fosso”, que, estima-se poderia ser um paiol, onde se guardava armas e alimentos.

Este seria construído em alvenaria de pedra, com revestimento em lajotas, com cerâmicas na metade superior; continha seteira, viabilizando uma melhor condição de ataque.



B. A propriedade do engenho.

Entre 1542 a 1548, o engenho foi mantido em sociedade entre Martin Afonso de Souza, Pero Lopes de Sousa, Francisco Lobo, o piloto-mor Vicente Gonçalves e o investidor dos países baixos Johan Van Hielst.

Em 1542, o holandês Erasmo Schetz tornou-se sócio no empreendimento, quando seu representante em Lisboa, veio para S. Vicente, para assumir o seu lugar na sociedade feita.

Em dezembro deste ano, chegou junto com o novo Capitão-mor, Cristóvão Aguiar de Altero, nomeado presidente da sociedade dos Armadores do Trato, na qual se incluía o Engenho do Governador.

Pouco depois, este passou a ser chamado de “Engenho do Trato dos Armadores”.

Erasmo Schetz, adquiriu as partes de seus sócios em 1548, compradas com investimentos de seus filhos e sócios compatriotas.

O negócio foi feito na Europa, Erasmo nunca esteve no Brasil, mas seu nome foi adotado junto com o santo de devoção da propriedade, renomear o engenho como “São Jorge dos Erasmos”.

Ele era um banqueiro e armador de navios sediado em Amsterdam, provavelmente financiava também construção de caravelas e naus lusitanas, através de “contratos de risco”.

Um mecanismo de empréstimo que dava direito a uma participação nos lucros gerados pelas viagens marítimas, quando a embarcação chegava de volta a Lisboa, caso não naufragasse ou fosse perdida para piratas.

Quando o navio não retornava, os investidores assumiam as perdas junto com a Coroa, não recebendo o pagamento do empréstimo e tampouco qualquer forma de compensação; daí chamar o contrato como “de risco”.

Erasmo distribuía produtos importados pelos portugueses da África e da Índia, intermediando sua venda por toda a Europa, tinha ligações de caráter comercial com seus compatriotas, além de italianos, franceses e alemães.

Posteriormente, o engenho passou a pertencer apenas a firma “Erasmo Schetz e Filhos”, mantida na família até 1603.

Não existem registros da presença de membros da família no Brasil, apenas de representantes nomeados como administradores.

Entretanto, no início do século XVII, as instalações foram quase destruídas por um incêndio.

Depois da morte do pai, Gaspar Schetz assumiu o controle e, quando morreu em 1580, o engenho foi sendo passado de pai para filho, funcionando até o século XVIII.

Momento em que a crise do ciclo do açúcar conduziu ao abandono da propriedade e sua, consequente, deterioração; até se tornar apenas ruínas.

Ao longo dos anos seguintes, o terreno passou por muitos proprietários, até chegar a posse de Otávio Ribeiro de Araújo, em 1943.

Este ordenou que fosse feita uma escavação em "L" no local, quando encontraram uma imagem de Santo Antônio, modelado em terracota e vestígios ósseos humanos - crânios, maxilares, membros inferiores e superiores -, que após a evidenciação, foram novamente enterrados.

Passando-se mais de uma década, em 1958, Otávio doou as ruínas para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, totalizando aproximadamente uma área de 3.250m².


C. Escavações arqueológicas e resultados.

Sob direção da USP, na década de 1960. ocorreram várias intervenções no local.

Luís Saia, arquiteto responsável, coordenou e reconstruindo, com telhas encontradas na prospecção arqueológica, parte da estrutura origina.

Em 1963, aconteceram as primeiras escavações arqueológicas, quando foram encontradas formas de pão de açúcar e louças do período colonial.

Em seguida, as ruínas foram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAM), permanecendo abandonadas novamente entre até a metade da década 1990.

Durante este período, ainda estavam por ser escavadas as estruturas quinhentistas, cujo registro histórico de 1548; dava conta tratar-se de um moinho comprido, forte, bem construído.

Em 1996, a USP firmou parceria com a Universidade Católica de Santos, realizando um projeto que resultou na escavação de mais de 1700 artefatos arqueológico.

Em 2003, novas investigações foram realizadas pela USP, ainda conveniada com Universidade Católica de Santos, encontrando um cemitério era remota, tinham-se apenas recomendações da veracidade do cemitério da época colonial.

Atualmente, na visitação aberta ao público, pode-se observar o local onde foram encontrados os restos mortais, onde não se pode pisar ao solo, pois futuramente segundo os monitores da USP, serão desenterrados esqueletos para possibilitar novas pesquisas.


4. DISCUSSÃO.

Na pesquisa de campo foram consultados alguns historiadores, surgiram versões diferentes sobre a história do engenho e, cada vez mais, ficou difícil ter confirmações do que acontecia na época de funcionamento.

Uma dúvida bem frequente é de como seria o telhado, porém, quando Luiz Saia fez as escavações, foram encontrados pedaços de telha de barro.

Entretanto, o redor do engenho funcionou como despejo de entulho usado pela prefeitura, o que pode ter contaminado os artefatos encontrados.

Ainda na escavação de Luiz Saia, foi encontrado um buraco revestido de pedras, imitando um fosso, um paiol e alçapão.

Nada foi comprovado, mas neste buraco foi encontrado formas de pão de açúcar e louças.

A ideia do paiol é baseada no estilo de construção dos engenhos da época, que funcionavam como fortaleza.

O alçapão teria como função armazenar mercadorias, alimentos e objetos de valor.

Existe ainda a hipótese de que o fosso seria usado também como o banheiro da época.

Na confecção da maquete das ruínas foram discutidos vários métodos e materiais para serem utilizados, entre eles: palito de picolé, brita (pequenas pedras), argila e isopor.

Após a discussão foi concluído que seria usado gesso em pó e em bloco e, para o telhado, palito de picolé.






5. CONCLUSÃO.

No decorrer da pesquisa foram levantadas várias questões sobre a construção do engenho, como: o telhado, cômodos, acesso ao engenho na época de funcionamento, um suposto paiol em um cômodo que apresenta características de guardar objetos de grande importância.

Luiz Saia, ao fazer suas pesquisas nas ruinas do engenho, tentou restaurar parte das estruturas, no caso um telhado, com a intenção de imitar como seria na época.

Entretanto foi muito criticado, posteriormente por arqueólogos, lembrando que Saia era arquiteto e não possuía o conhecimento técnico para lidar adequadamente com as ruínas.

Trabalhar com história, é na maioria das vezes posicionarmos em cima de suposições.

No decorrer dessa pesquisa foram encontradas barreiras, devido à grande diversidade de opiniões e suposições advindas de pesquisadores entrevistados e teses publicadas.

A maquete tentou reproduzir paredes que hoje estão em ruínas, representando um grande desafio, razão pela qual trabalhamos com suposições.

Por isto optamos por construir a maquete apenas das ruínas tal como se encontravam no momento da finalização deste trabalho, preservando as paredes externas do engenho, visto que a definição dos cômodos ainda é uma cógnita para os arqueólogos.



6. PARA SABER MAIS SOBRE O ASSUNTO.

GEAMPAULO, Victor Lordani. Engenho de são Jorge dos Erasmo: aproximação acerca da morte e da vida no complexo açucareiro vicentino (XVI-VXII). São Paulo: Dissertação de mestrado apresentada ao departamento de história da Universidade de São Paulo, Orientada pela Profa. Dra. Ana Paula Torres Megiani, 2013. <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-30042013-104452/publico/2013_VictorLordaniGeampaulo_VCorr.pdf> Acesso em março de 2014.

SALVADOR. Frei Vicente do. História do Brasil 1500-1627. Belo Horizonte: São Paulo: USP, s.d.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Breve Ensaio sobre a relação entre o Deus cartesianismo e a ordem dos fundamentos do Cogito.

 Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 12, Volume jul., Série 01/07, 2021.

 

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.


Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.

Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.
Graduado em Pedagogia - UNICSUL.


A base e fundamentação do pensamento cartesiano é o pressuposto da existência de Deus, conceito sem o qual todas as contribuições de Descartes para a filosofia seriam anuladas.

Por sua vez, para ele, sem que implique em contradição, a ciência filosófica aparece fundada em dois princípios: o Cogito (Pensamento) e Deus.

Um ou outro aparecerão como princípios primeiros, considerando de um lado as necessidades de nosso entendimento (ou seja, a ordem das razões), ou de outro a necessidade das próprias coisas (ordem das matérias).

Muitos de seus contemporâneos descobriram, em tal fundamento, um círculo vicioso, porque não se pode demonstrar a existência de Deus, senão guiado na evidência de ideias claras e distintas.

A objeção residiria no argumento que não seria possível confiar nessa evidência, a menos que a existência de Deus pudesse ser demonstrada.

Descartes responde dizendo que há duas espécies de certeza: a dos axiomas, que são conhecidos por simples golpe de vista, dos quais não se pode duvidar; e a da ciência, que consiste em conclusões dependentes de raciocínios muito demorados.

A questão é que para vários filósofos contemporâneos e posteriores, essa resposta foi considerada embaraçosa, visto que se a prova da existência de Deus é, como parece, um raciocínio longo e complicado, o círculo vicioso persistiria.

No entanto, o que ocorre é que o conhecimento claro e distinto, ponto de chegada e um fim, é também ponto de partida para o espírito, que busca as combinações e os efeitos das essências.

Para Descartes, a ciência não vai do obscuro ao claro, mas do claro ao claro.

Sendo assim, a dúvida sobre a existência das coisas materiais e a certeza matemáticas, conduz a verdade inabalável do “penso, logo existo”.

A demonstração cartesiana da existência de Deus legitima o Cogito, servindo de partida para a ordem das matérias.

Podemos dizer que partindo da ordem das razões (ou do entendimento), pelos efeitos, podemos alcançar as causas e; por outro lado, partindo da ordem das matérias (ou da necessidade das próprias coisas), pelas causas alcançar os efeitos.

Cabe aqui uma observação, devemos notar que enquanto a ordem das razões é explicita, mantendo-se em conformidade com o método, a ordem das matérias encontra-se implícita dentro das necessidades do entendimento.

Para provar o que acabamos de dizer basta citar as palavras do próprio Descartes: "[...] não ordeno as matérias, mas somente as razões." (Carta a Mersenne - AT, III, 260).

Em outras palavras, não são possíveis senão as coisas que Deus quis tornar verdadeiramente possíveis, a razão de sua vontade depende do que quis fazer.

O pensamento cartesiano faz de Deus não o modelo, mas a garantia de nosso entendimento.

Isto é, segundo o preceito geral de seu método, seguindo não a ordem de produção de Deus às coisas, mas a ordem das razões.

Descartes mostra como uma verdade pode engendrar outra verdade, como a existência de Deus é, para nós, o princípio de outra verdade.

Decorre deste princípio uma das maiores dificuldades da obra "Meditações", abandonar a ordem das matérias que nos é familiar em favor de uma gênese dos conteúdos.

Estes conteúdos são a mesma matéria que hão de aparecer em diferentes passagens do pensamento cartesiano, conforme o lugar exigido pela ordem, sem que a necessidade das próprias coisas seja destituída de sentido.

Desta afirmação decorre uma questão de vital importância: que método é esse, cuja ordem do entendimento abarca, implícita e não destituída de sentido, as próprias coisas?

O método cartesiano é aquele que vêm substituir o aristotelismo, sua máxima da necessidade metódica de questionamento exige que a existência deve ser provada antes da investigação da essência, sob pena de não encontrar senão quimeras, como a figura do satírico.

Isto implica que o juízo de existência pode ser estabelecido antes que se saiba o que é a coisa, afirmando a existência como atitude em conformidade do senso comum.

Por isso mesmo, Descartes é forçado a admitir muitas noções obscuras e mal definidas, na opinião de alguns caindo em afirmações que podem ser desmontadas facilmente.

Estes utilizariam o argumento que era ideia familiar ao tomismo a verdade percebida pelo entendimento humano fundamentada no entendimento divino.

No entanto, a verdade e o entendimento divino não são mensurados nem produzidos, mas medem e produzem uma dupla verdade: uma nas coisas, outra em nossa alma.

Por apagadas que estejam, nossas noções são imagens de razões inteligíveis das coisas, estando contidas em Deus.

Para São Tomás de Aquino, nosso conhecimento é garantido por ser reflexo do entendimento divino, naturalmente voltado para sua origem, de forma que nossa verdadeira vocação está na vida eterna, onde esse reflexo irá converter-se em visão.

Segundo Descartes, ao contrário, o conhecimento intelectual não significa qualquer grau de participação no entendimento divino; as essências, objetos do entendimento humano, são criaturas de Deus.

Deduz-se que Deus é garantia de nosso conhecimento, não por um atributo relacionado com este, mas que se ligam ao seu criador através de sua onipotência e bondade.

O neoplatonismo parte da intuição de um princípio divino para ir de Deus, como causa, às coisas como efeitos dessa causa.

Neste sentido, parece haver uma alternativa à qual, Descartes, deixa apenas implícita e oculta em sua metafisica.

Para concluir basta dizer que, por um lado, o Cogito se apresenta como primeiro princípio, dentro da ordem das razões metafisicas, por outro, a existência de Deus constitui a verdade fundamental que legitima a edificação das ciências e o próprio método cartesiano.

A ciência filosófica aparece fundada em dois princípios: o Cogito e Deus.

O Cogito parece ser o princípio primeiro, mas de acordo com as necessidades de nosso entendimento, que abarca a necessidade das próprias coisas; carece antes de Deus.

Encontramos, portanto, implícito na ordem das razões a ordem das matérias, cujo primeiro princípio é Deus.

As necessidades de nosso entendimento e seu primeiro princípio, o Cogito, ou seja, a ordem das razões, convive de forma harmoniosa com a necessidade das próprias coisas e das matérias, sem que isto implique em contradição.

Para o pensamento cartesiano, “a dedução só se pode fazer, quer das palavras às coisas, quer do efeito à sua causa, quer da causa ao seu efeito, quer do semelhante ao semelhante, quer das partes às partes ou ao próprio todo” (DESCARTES, 1993: Regra XII).

Não obstante, Deus é o garantidor do Cogito e de toda a existência, sem o qual o pensamento ou a concretude do mundo não seria possível.

 

PARA SABER MAIS SOBRE O ASSUNTO.

BRÉHIER, Emile. História da Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1977.

DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, 1989.

DESCARTES, René. Regras para a direção do espirito. Lisboa: Edições 70, s.d.

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982.

PADOVANI, Umberto & Castagnola, Luís. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.

KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Descartes Existencial. São Paulo: Edusp, 1969.