Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 12, Volume jul., Série 01/07, 2021.
A base e fundamentação
do pensamento cartesiano é o pressuposto da existência de Deus, conceito sem o
qual todas as contribuições de Descartes para a filosofia seriam anuladas.
Por sua vez, para ele, sem
que implique em contradição, a ciência filosófica aparece fundada em dois
princípios: o Cogito (Pensamento) e Deus.
Um ou outro aparecerão
como princípios primeiros, considerando de um lado as necessidades de nosso
entendimento (ou seja, a ordem das razões), ou de outro a necessidade das
próprias coisas (ordem das matérias).
Muitos de seus
contemporâneos descobriram, em tal fundamento, um círculo vicioso, porque não
se pode demonstrar a existência de Deus, senão guiado na evidência de ideias
claras e distintas.
A objeção residiria no
argumento que não seria possível confiar nessa evidência, a menos que a
existência de Deus pudesse ser demonstrada.
Descartes responde
dizendo que há duas espécies de certeza: a dos axiomas, que são conhecidos por
simples golpe de vista, dos quais não se pode duvidar; e a da ciência, que
consiste em conclusões dependentes de raciocínios muito demorados.
A questão é que para vários
filósofos contemporâneos e posteriores, essa resposta foi considerada
embaraçosa, visto que se a prova da existência de Deus é, como parece, um raciocínio
longo e complicado, o círculo vicioso persistiria.
No entanto, o que
ocorre é que o conhecimento claro e distinto, ponto de chegada e um fim, é
também ponto de partida para o espírito, que busca as combinações e os efeitos
das essências.
Para Descartes, a
ciência não vai do obscuro ao claro, mas do claro ao claro.
Sendo assim, a dúvida
sobre a existência das coisas materiais e a certeza matemáticas, conduz a
verdade inabalável do “penso, logo existo”.
A demonstração cartesiana
da existência de Deus legitima o Cogito, servindo de partida para a ordem das
matérias.
Podemos dizer que
partindo da ordem das razões (ou do entendimento), pelos efeitos, podemos
alcançar as causas e; por outro lado, partindo da ordem das matérias (ou da
necessidade das próprias coisas), pelas causas alcançar os efeitos.
Cabe aqui uma
observação, devemos notar que enquanto a ordem das razões é explicita, mantendo-se
em conformidade com o método, a ordem das matérias encontra-se implícita dentro
das necessidades do entendimento.
Para provar o que
acabamos de dizer basta citar as palavras do próprio Descartes: "[...] não
ordeno as matérias, mas somente as razões." (Carta a Mersenne - AT, III,
260).
Em outras palavras, não
são possíveis senão as coisas que Deus quis tornar verdadeiramente possíveis, a
razão de sua vontade depende do que quis fazer.
O pensamento cartesiano
faz de Deus não o modelo, mas a garantia de nosso entendimento.
Isto é, segundo o preceito
geral de seu método, seguindo não a ordem de produção de Deus às coisas, mas a
ordem das razões.
Descartes mostra como
uma verdade pode engendrar outra verdade, como a existência de Deus é, para nós,
o princípio de outra verdade.
Decorre deste princípio
uma das maiores dificuldades da obra "Meditações", abandonar a ordem
das matérias que nos é familiar em favor de uma gênese dos conteúdos.
Estes conteúdos são a
mesma matéria que hão de aparecer em diferentes passagens do pensamento
cartesiano, conforme o lugar exigido pela ordem, sem que a necessidade das
próprias coisas seja destituída de sentido.
Desta afirmação decorre
uma questão de vital importância: que método é esse, cuja ordem do entendimento
abarca, implícita e não destituída de sentido, as próprias coisas?
O método cartesiano é
aquele que vêm substituir o aristotelismo, sua máxima da necessidade metódica de
questionamento exige que a existência deve ser provada antes da investigação da
essência, sob pena de não encontrar senão quimeras, como a figura do satírico.
Isto implica que o juízo
de existência pode ser estabelecido antes que se saiba o que é a coisa, afirmando
a existência como atitude em conformidade do senso comum.
Por isso mesmo, Descartes
é forçado a admitir muitas noções obscuras e mal definidas, na opinião de
alguns caindo em afirmações que podem ser desmontadas facilmente.
Estes utilizariam o argumento
que era ideia familiar ao tomismo a verdade percebida pelo entendimento humano
fundamentada no entendimento divino.
No entanto, a verdade e
o entendimento divino não são mensurados nem produzidos, mas medem e produzem
uma dupla verdade: uma nas coisas, outra em nossa alma.
Por apagadas que
estejam, nossas noções são imagens de razões inteligíveis das coisas, estando
contidas em Deus.
Para São Tomás de
Aquino, nosso conhecimento é garantido por ser reflexo do entendimento divino,
naturalmente voltado para sua origem, de forma que nossa verdadeira vocação
está na vida eterna, onde esse reflexo irá converter-se em visão.
Segundo Descartes, ao
contrário, o conhecimento intelectual não significa qualquer grau de
participação no entendimento divino; as essências, objetos do entendimento
humano, são criaturas de Deus.
Deduz-se que Deus é
garantia de nosso conhecimento, não por um atributo relacionado com este, mas
que se ligam ao seu criador através de sua onipotência e bondade.
O neoplatonismo parte
da intuição de um princípio divino para ir de Deus, como causa, às coisas como
efeitos dessa causa.
Neste sentido, parece
haver uma alternativa à qual, Descartes, deixa apenas implícita e oculta em sua
metafisica.
Para concluir basta
dizer que, por um lado, o Cogito se apresenta como primeiro princípio, dentro
da ordem das razões metafisicas, por outro, a existência de Deus constitui a
verdade fundamental que legitima a edificação das ciências e o próprio método cartesiano.
A ciência filosófica
aparece fundada em dois princípios: o Cogito e Deus.
O Cogito parece ser o princípio
primeiro, mas de acordo com as necessidades de nosso entendimento, que abarca a
necessidade das próprias coisas; carece antes de Deus.
Encontramos, portanto, implícito
na ordem das razões a ordem das matérias, cujo primeiro princípio é Deus.
As necessidades de
nosso entendimento e seu primeiro princípio, o Cogito, ou seja, a ordem das
razões, convive de forma harmoniosa com a necessidade das próprias coisas e das
matérias, sem que isto implique em contradição.
Para o pensamento
cartesiano, “a dedução só se pode fazer, quer das palavras às coisas, quer do
efeito à sua causa, quer da causa ao seu efeito, quer do semelhante ao
semelhante, quer das partes às partes ou ao próprio todo” (DESCARTES, 1993: Regra
XII).
Não obstante, Deus é o
garantidor do Cogito e de toda a existência, sem o qual o pensamento ou a
concretude do mundo não seria possível.
PARA SABER MAIS SOBRE O ASSUNTO.
BRÉHIER, Emile. História da Filosofia. São Paulo:
Mestre Jou, 1977.
DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Lisboa:
Guimarães Editores, 1989.
DESCARTES, René. Regras para a direção do espirito.
Lisboa: Edições 70, s.d.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da Filosofia.
São Paulo: Martins Fontes, 1993.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1982.
PADOVANI, Umberto &
Castagnola, Luís. História da Filosofia.
São Paulo: Melhoramentos, 1990.
KUJAWSKI, Gilberto de
Mello. Descartes Existencial. São
Paulo: Edusp, 1969.
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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
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