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Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

domingo, 29 de agosto de 2010

Religião e religiosidade no Brasil.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume ago., Série 29/08, 2010.


Introdução.

A religião e religiosidade expressam, mais que as crenças ou práticas, a cultura contemporânea, um emaranhado de significados simbólicos que permite entender o universo das idéias e mentalidades, os ritos do cotidiano, as relações sociais e as instituições políticas; enfim, permite entender a alma do povo brasileiro.

Neste sentido, a análise do período colonial alcança as raízes da formação deste sistema de crenças.

Uma realidade estudada com maestria através de ângulos, concepções teóricas e metodologias diversificadas, entre outros, por João José Reis, Anita Novinsky, Caio César Boschi e Ronaldo Vainfas.

A miscigenação cultural, durante a constituição colonial, criou no Brasil um conjunto de elementos religiosos polissômicos, comunicando vários sentidos que deixam transparecer o econômico, o social, o lúdico e o étnico.

Um sistema cultural que espelha o sincretismo e a extrema capacidade adaptativa do povo brasileiro, capaz de absorver características externas e transformá-las.


O papel da igreja católica.

Em certo sentido, o achamento do Brasil esteve inserido dentro do ideal de cruzada presente em Portugal.

Os lusos desbravaram os oceanos em busca de cristãos e especiarias, pretendendo encontrar riquezas que pudessem ser comercializadas e cristianizar o mundo.

Portanto, a origem do processo de ocupação territorial da Terra de Santa Cruz, serviu, de certa forma, as intenções da igreja católica.

Os portugueses que vieram para o Brasil estiveram inseridos no universo mental de seu tempo e espaço, partilharam o ideal de cruzada, adotando o catolicismo como insígnia do poder da coroa.

Diante desta concepção, todo o não católico foi considerado um inimigo em potencial, a não aceitação da fé em cristo foi considerada como contestação do poder do rei e afronta direta a todo português, uma motivação que incentivou, dentre outros fatores, o extermínio dos indígenas, vistos como pagãos e infiéis.

Os verdadeiros donos da América foram diabolizados, ao contrário do que levaria supor o estereótipo do bom selvagem em voga ainda hoje, e que tantas vezes falseou a retratação dos ameríndios quinhentistas.

Uma imagem difundida por Rousseau no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, obra publicada na França em 1755.

Uma posição adotada até mesmo por muitos jesuítas, tal como o padre Manuel da Nóbrega, conhecido por defender o direito de liberdade dos nativos cristianizados.

Para ele, “se o gentio fosse senhorado ou despejado” de sua terra, “com pouco trabalho e gasto”, a coroa portuguesa “teria grossas rendas nestas terras”; sendo necessário reduzir os índios a “vassalagem”.

Aqueles que resistissem deveriam ser exterminados, posição defendida por Nóbrega em carta escrita na Bahia, endereçada ao padre Miguel Torres, presente em Lisboa, datada em 8 de maio de 1558.

Dentro deste contexto, a construção de igrejas passou a delimitar a conquista territorial, garantindo a soberania do Estado perante os gentis, criando mecanismo de conversão forçada dos nativos e aculturação em prol dos valores europeus.

Pelo prima dos indígenas, a alternativa foi partir rumo ao interior, entregando-se a movimentos messiânicos como a busca da terra sem mal, abrindo espaço para a penetração lusitana.

Uma outra saída, adotada principalmente pelos africanos, depois da introdução da escravidão negra, foi maquiar suas crenças, disfarçando-as no culto de imagens e signos cristãos, compondo irmandades, nominalmente católicas, com intuito de facilitar a vida social.


A religiosidade africana.

Vigiados de perto por seus senhores e fiscalizados pelos eclesiásticos católicos, na qualidade de escravos, considerados utensílios de trabalho a semelhança de uma ferramenta, os africanos foram obrigados a aceitar a fé em cristo como símbolo da submissão aos europeus e a coroa portuguesa.

No entanto, a despeito da documentação existente sobre os ritos africanos ter sido produzida, quase sempre, por autoridades policiais ou da igreja, interessadas em desqualificar a religiosidade negra, reduzida a feitiçaria; a verdade é que elementos das religiões africanas sobreviveram se ocultando em meio à simbologia cristã.

Associações de caráter locais, as irmandades negras contribuíram para forjar a polissemia e sincretismo religioso brasileiro.

Impedidos de frequentar espaços que expressavam a religião católica dos brancos, as irmandades representavam uma das poucas formas de associação permitidas aos negros no contexto colonial.

As irmandades negras surgiram como forma de conferir status e proteção aos seus membros, sendo responsáveis pela construção de capelas, organização de festas religiosas e pela compra de alforrias de seus irmãos, oficialmente auxiliando a ação da igreja e demonstrando a eficácia da cristianização da população escravizada.

Entretanto, ao organizarem-se, geralmente, em torno da devoção a um santo especifico, a qual assumiu múltiplos significados, incorporando ritos e cultos aos deuses africanos, permitiu o nascimento de religiões afro-brasileiras como o acontundá, o candomblé e o calundu.

Muitos indivíduos que oficialmente cultuavam, por exemplo, São José, na capela erguida pela irmandade negra, dentro do âmbito do acontundá, clandestinamente dançavam em frente a uma imagem semelhante ao som do tambor em casas simples com paredes de barro cobertas de capim, utilizando palavras extraídas de textos católicos, mescladas a um dialeto da Costa da Mina (atual Gana).

Um sincretismo que se tornaria típico do povo brasileiro, também presente no candomblé, onde o rito do deus africano Coura e a devoção a Nossa Senhora do Rosário se fundiram, fornecendo um valioso exemplo da simbiose religiosa no Brasil.

A aculturação da santa católica permitiu aos africanos cultuarem seus próprios santos com outros nomes, forjando novas práticas religiosas.

Foi este também o caso do calundu, um rito religioso de origem jeje, uma tribo do atual Benin, responsável por dar aos seus participantes um sentido para a vida e um sentimento de segurança e proteção em um mundo que parecia aos escravos incerto e hostil, o qual sobreviveu convertido ao culto a divindades católicas que foram incorporadas com outros nomes ao candomblé.

Não obstante, não foram apenas religiões africanas ou praticas religiosas indígenas que contribuíram para a formação do sincretismo religioso brasileiro e sua simbologia polissêmica.

É interessante lembrar que outros credos estiveram presentes no contexto colonial, também colaborando para formar a cultura brasileira.


Outros ritos e credos.

Dentre uma das crenças que mais exerceu influencia na formação do sincretismo religioso brasileiro, cabe destacar o papel desempenhado pelo judaísmo.

Perseguidos pelo Tribunal do Santo Oficio na Europa, os judeus sempre estiveram em situação de perigo iminente, sendo obrigados a converterem-se ao cristianismo em Portugal.

Aos olhos do Estado os convertidos passaram a ser considerados cristãos-novos, vigiados de perto pela Inquisição, sofrendo preconceitos e perseguições esporádicas.

Em muitos casos, judeus mantiveram suas crenças na esfera privada, adotando o catolicismo como fé publica em oposição à prática oculta da religião de Abrão.

Nenhuma lei obrigou os judeus a investirem na expansão ultramarina, todavia, quando se fazia patente à falta de recursos do Estado e a perseguição aos judeus era acirrada, os judeus detentores de capital investiram tudo ou quase tudo que possuíssem nas novas rotas que eram abertas, ao que muitos migravam para as novas possessões a fim de escapar de perseguições mais violentas.

Em uma breve carta, um tanto danificada pelo tempo, endereçada a “El Rei”, datada apenas em 18 de maio, sem referência ao ano, tratando-se provavelmente de correspondência emitida na primeira metade do século XVI, D. Alvaro de Noronha, “Capitão Mor de Azamor”, faz referência a um contrato feito com judeus, no qual a coroa havia se comprometido a doar “nove mil alqueirez dentro em tres annos, tres mil cada anno”, no norte da África, em troca de investimentos.

O Brasil se transformou na terra prometida para os cristãos-novos portugueses, compelidos a migrarem para novas terras em além-mar.


Foi uma saída viável à recusa da aceitação de sua fé no reino, tendo em vista o fato da Inquisição nunca ter se instalado por aqui, embora tenham sido instituídas visitações do Santo Oficio em 1591, 1605, 1618, 1627, 1763 e 1769.


Alojados sobretudo na Bahia, em Pernambuco, na Paraíba e no Maranhão; os cristãos-novos recém-chegados integraram-se rapidamente, ocupando cargos nas Câmaras Municipais, em atividades administrativas, burocráticas e comerciais, destacando-se também como senhores de engenho, algo impensável em Portugal.

Sem a Inquisição em seus calcanhares, os cristãos-novos continuaram a exercer práticas judaicas no interior de seus lares, mantendo vivos os laços familiares e comunitários clandestinamente, ao mesmo tempo, adotando uma postura publica católica, respondendo a uma necessidade de adesão, participação e identificação.

Uma situação diversa dos cristãos-novos em Pernambuco ocupada pelos holandeses, quando o exercício do judaísmo passou a ser aberto, com pessoas influentes frequentando as duas sinagogas de Recife e ocupando cargos de destaque na administração da cidade.

Seja como for, para além dos judeus, há ainda a questão da influencia dos protestantes no sincretismo cultural brasileiro, um tema ainda pouco estudado e que merece maior atenção.

Existem dois momentos marcados pela presença de protestantes no período colonial.

O primeiro circunscrito entre 1555 e 1560, com a fundação da França Antártida, na baía do Guanabara, por calvinistas huguenotes franceses que fugiam da perseguição na sua terra.

O segundo, entre 1630 e 1654, justamente quando parte do nordeste esteve ocupada pelos holandeses, também calvinistas.


O caldeirão religioso brasileiro.

A expansão territorial portuguesa, durante o período colonial, foi acompanhada pela insígnia do catolicismo, símbolo da submissão dos indígenas e, posteriormente, dos escravos africanos ao poder da coroa portuguesa.

Um processo que não aconteceu sem conflitos entre autoridades civis e eclesiásticas, entre colonos e jesuítas, entre fiéis e infiéis, forjando um sincretismo religioso impar e representativo da cultura brasileira contemporânea.

Sendo a fé em cristo imposta, indígenas foram exterminados sob pretexto de serem catequizados, outros iniciaram uma fuga em busca de movimentos messiânicos que, séculos depois, ainda estariam enraizados na mentalidade dos homens do povo, sempre dispostos a seguirem eremitas e milagreiros.

Também não possuindo outra opção, os africanos escravizados foram obrigados a aceitar oficialmente os preceitos e dogmas da igreja católica, mas encontraram meios de ocultar seus próprios ritos e credos dentro do sistema simbólico cristão, originando práticas religiosas afro-brasileiras.

Compelidos a migrarem para o Brasil, os judeus adotaram uma estratégia um pouco diferente, aderiram a uma vida dupla, oficialmente aceitando o cristianismo, praticado perante os olhos alheios, voltando-se para a sua verdadeira fé no interior do lar, uma maneira de manter a coesão das famílias e comunidades hebréias através da tradição.

Desta mistura rica de crenças, da qual fez parte até mesmo o protestantismo, nasceu à religiosidade brasileira, apegada ao tradicionalismo católico e, simultaneamente, aberta e tolerante a novas religiões.

Uma religiosidade dogmática, em certo sentido, perante a esfera publica geral, mas empírica e sujeita a transformações de ordem mil dentro da privacidade individualizada de grupos menores.

A cultura brasileira e sua capacidade adaptativa é, sem dúvida, tributária do caldeirão religioso colonial, efervescente e contendo em seu interior ingredientes paradoxais que, misturados, forjaram o sincretismo contemporâneo polissêmico típico da mentalidade brasileira.


Para saber mais sobre o assunto.

BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986.

CUNHA, Manuela Carneiro. História dos Índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

FERRONHA, António Luís (coord.). O confronto do olhar: o encontro dos povos na época das navegações portuguesas - séculos XV e XVI. Lisboa, Caminho, 1991.

HOORNAERT, Eduardo (coord.). História geral da igreja no Brasil. São Paulo: Vozes/paulinas, 1983.

MOTT, Luiz. Escravidão, homossexualismo e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988.

NOVINSY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: EDUSP/Perspectiva, 1972.

RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro, Zahar, 1996.

REIS, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os santos. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.


Texto:

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.



2 comentários:

  1. Muito bom esse site, super interessante. Sempre q eu precisar fazer minhas pesquisas do colégio, farei aqui pois tem muitas coisas legais nele :)

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  2. muito bom esse site, super interessate. Sempre que eu precisar fazer minhas pesquisas do colégio farei aqui!! :)

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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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