Dentro do âmbito dos estudos sobre as questões culturais, emerge o etnocentrismo como ponto de debate, com obras representativas de visões de mundo fundamentadas rigidamente em valores e modelos específicos, com autores que julgaram o outro a luz de seus próprios referenciais.
O que é compreensivo, já que quando um determinado grupo entra em contato com práticas culturais distintas da sua, o estranhamento e o medo são reações comuns, forjando conclusões equivocadas e preconceitos.
Esta situação terminou cunhando uma historiografia na qual a diferença foi transformada em hierarquia, onde o outro foi reduzido a um inferior, categorizado como bárbaro, selvagem ou não humano.
Cabe recordar que quando mencionamos historiografia, fazemos referência ao registro escrito da história, ao oficio do historiador e o resultado de sua produção cientifica, ou seja, aos trabalhos produzidos pelos historiadores, quer sejam teses, dissertações, monografias, artigos, etc, no âmbito da área.
Neste contexto, a tendência etnocêntrica privilegiou um universo de representações, catalogando a insignificância das demais culturas.
Na realidade, cometendo uma violência que serviu e continua trabalhado a favor das diversas formas de colonialismos, sobretudo, disfarçadas por meio daquilo que Pierre Bourdieu definiu como "violência simbólica".
Trata-se da imposição de valores pertencente a um grupo hegemônico sobre outros, visando obviamente o favorecimento daqueles que dominam, a velha lógica da sobreposição da versão dos vencedores sobre os derrotados, quer seja no campo ideológico, político, social, econômico, etc.
Poderia ser definido também como uma imposição de uma referencia teórica e prática que, como afirmou Lévi-Strauss, segue o padrão da racionalidade técnica, escolhendo-se como único tipo de cultura compatível com a dita vida civilizada, declarando as outras culturas como orientações incompatíveis com o referencial adotado como padrão.
Em suma, o etnocentrismo procurou reduzir as especificidades e diferenças, tornando-as mais diferentes do que são, exorcizando os referenciais do outro para torná-los nulos e indignos de consideração, desviando o olhar em prol de uma versão dos fatos distante de uma leitura que seria realizada pelos reais envolvidos naquilo que se tornou objeto da história.
O grande problema é que a historiografia, em suas mais diversas tendências e escolas, não está isenta de uma visão etnocêntrica. No caso do contexto colonial brasileiro, por exemplo, refletindo um eurocentrismo evidente.
Entretanto, como demonstrou Michel de Certeau, hoje, mais do que nunca, em um mundo de guerras e conflitos, gerados pelo não entendimento de referenciais diversos do próprio; o historiador precisa adentrar as zonas silenciosas, o que ele chamou de “geografia do eliminado”, despojando-se de seus conceitos pré-concebidos, deslocando-se pela religião, feitiçaria, loucura, festa, o mundo do esquecidos.
O que exige retomar um tema que não é novo, mas que se torna cada vez mais prioritário: a discussão em torno da produção historiográfica e sua vinculação com o etnocentrismo.
Este debate serve também a uma crítica sobre a visão historiográfica centrada no “si mesmo”, estando inserida na necessária aproximação entre Ocidente e Oriente, em um ambiente contemporâneo polarizado entre a cultura judaico-cristã e os valores islâmicos, bem como dividido por outras múltiplas dicotomias maniqueístas, geradas e geradoras da incompreensão dos referenciais do outro.
Como se não bastasse, pesando na micro-história e no foco da história da América e do Brasil, desconstruir a presença do etnocentrismo na historiografia, no âmbito ideológico do resgate dos excluídos, envolvendo o estudo do choque cultural entre indígenas e europeus, atendendo a crescente demanda pelo convívio com a diversidade.
Tudo, em um momento em que historiadores são chamados a dar conta de objetos de pesquisa que ajudem a entender as mudanças aparentemente cada vez mais rápidas e que na verdade ainda são lentas, fornecendo dados amplamente partilhados pela mídia e a Internet, em uma sociedade globalizada que tem como meta padronizar, mas que precisa, antagonicamente, conviver com as diferenças.
Escolas historiográficas e etnocentrismo.
Ao contrário do que se imagina, embora as teorias racistas tenham surgido há pouco mais de três séculos, o etnocentrismo está presente na historiografia desde o inicio da história. Na antiguidade, entre sumérios, judeus, chineses, gregos e romanos; os estrangeiros foram retratados como inferiores, relegados a condição de bárbaros e assim descritos e categorizados pelos historiadores.
Na idade Média, apesar das peregrinações à Terra Santa e de contatos comerciais, o mundo Ocidental, o etnocentrismo continuou incorporando a narrativa da história que trilhou o caminho do “eu” ao invés do “tu”, diabolizando os muçulmanos.
Depois, com a expansão européia em além-mar, a partir do século XVI, converteu os povos da África e da América em selvagens.
O outro, o indígena, no caso do continente americano, foi retratado como um antropófago preguiçoso, sem fé, sem rei, nem lei.
Exatamente o pretexto que seria usado para promover a imposição dos referenciais europeus, permitindo criar justificativas para que portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e holandeses pudessem dizimar populações nativas, impondo uma dominação cultural que fez desaparecer até mesmo a língua de muitos destes povos.
É neste sentido que a historiografia iluminista, no século XVIII, inaugurou o conceito de progresso civilizacional.
Para esta Escola, o tempo seria linear, ao passo que sua passagem seria marcada por mudanças qualitativas, sempre para melhor.
Pensadores ilustrados, como Turgot e Condorcet, iniciaram uma tradição Ocidental de análise da história da humanidade classificada em estágios culturais, fixados entre sociedades primitivas e civilizações complexas, como se existissem degraus pelos quais os povos devessem escalar para atingir a modernidade.
A visão etnocêntrica iluminista reduziu toda a espécie humana a parâmetros únicos que deveriam servir obrigatoriamente de referência, tendo a Europa e sua história como modelo a ser adotado, o que originou também o eurocentrismo.
Ainda no século XVIII, o conceito de evolução ganhou contornos naturalistas com o francês Lamark, popularizando-se no século XIX com Charles Darwin e sua teoria da evolução das espécies através da seleção natural, o que terminou transposto para positivismo histórico e a escola metódica.
O positivismo de Comte procurou encontrar, no estudo da história, leis que regulassem o desenvolvimento humano, permitindo contextualizar os fatos do presente, originando uma hierarquia para justificar o colonialismo cultural.
Enquanto a escola metódica, encabeçado por Leopold Von Ranke, supervalorizou o Estado Nacional, defendendo a ideia de objetividade do conhecimento histórico, acrescentando a xenofobia nas narrativas históricas.
Inserem-se nesta tradição cientificista as obras do historiador francês Jules Michelet, nas quais o chamado “Espírito da Nação” animava uma narrativa que tinha um sentido próximo do darwinismo, centrada no conceito de evolução das civilizações, tendo o europeu e sua cultura como maior realização da humanidade.
Um dos pressupostos que sustentaram o colonialismo do século XIX, quando a África e parte da Ásia foram partilhadas entre as nações hegemônicas da Europa, servindo de fonte de matéria-prima; enquanto a América Latina, em plenos processos de independências das metrópoles, além de sua função primária agrícola, consolidou-se como mercado consumidor dos produtos manufaturados pelos europeus.
Algo que o marxismo pretendeu criticar, ao enxergar a história como a luta de classes, oposição entre oprimidos e opressores; sem, no entanto, conseguir se desvencilhar da visão etnocêntrica.
Mesmo a escola historiográfica marxista, extremamente preocupada com as questões teóricas, visto que para Marx uma teoria não podia ser pensada sem correspondência com o contexto histórico; compôs analises evolucionistas, baseadas nos valores europeus, estudando a economia para entender a sociedade e sugerir transformações que deveriam percorrer estágios.
As idéias desenvolvidas por Karl Marx e Friedrich Engels, preocupados em demonstrar que o capitalismo seria um acontecimento transitório, diante do aparecimento de uma classe revolucionária, para o surgimento de uma sociedade comunal; terminaram sendo adotadas e transpostas para o contexto teórico da história, reforçando a falsa noção da necessidade da passagem de um ponto ao outro para que uma sociedade pudesse atingir seu ápice.
No século XX, a escola francesa de Annales, tentando se isentar do componente ideológico, fugindo da visão etnocêntrica, uniu diversos pressupostos das ciências sociais e enfatizou a interdisciplinaridade; mas, com raras exceções ao longo de suas três gerações, conseguiu traçar uma análise imparcial, embora tenha obtido consciência deste fato, onde reside justamente um dos seus maiores méritos.
Como lembrou Jörn Rüsen, os historiadores, ao olharem para outras culturas, continuaram a fazê-lo por meio da ideia de historiografia de sua própria cultura.
O que possui uma implicação política e, também, uma conseqüência teórica e metodológica calcada em uma dificuldade epistemológica, fazendo com que a narrativa histórica não revele nada além da incapacidade de real compreensão do outro.
Entretanto, Annales desdobrou-se em várias linhas teóricas e campos de pesquisa, notadamente servindo de base para fomentar debates acerca da natureza teórica do conhecimento histórico, dando novo fôlego a critica ao etnocentrismo, isto a partir da terceira geração, na década de 1970, representada, entre outros, por Peter Burke.
A historiografia brasileira em perspectiva.
Pensando a historiografia na perspectiva brasileira, também entre nós o etnocentrismo sempre esteve presente na narrativa histórica.
Na realidade, tratava-se de uma tradução de uma obra escrita em francês em 1822.
Era na visão da época o primeiro passo para a construção da unidade nacional, contudo, estava inspirada na história européia, contendo uma forma de narrar às origens do Brasil repleta de conceitos etnocêntricos, os quais já estavam contidos em uma série de obras anteriores, publicadas entre 1810 e 1819, pensadas por um inglês.
Alguns anos depois, em 1838, a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estimulou o surgimento de diversos estudos sobre o período colonial, todos apontando para uma supervalorização da Europa em detrimento da América portuguesa.
Isto porque, embasada no modelo de livros e manuais franceses, a historiografia brasileira tentava encontrar o lugar do Brasil na civilização Ocidental cristã, dominada pela Europa.
Exatamente por esta razão, somente mais de uma década após a separação da colônia de sua ex-metrópole, a disciplina de História do Brasil, então ministrada no Colégio Pedro II, chamada na ocasião de História da Pátria; separou-se da História Geral (História Universal), ganhando autonomia.
O etnocentrismo continuou dominante, apesar das reformas educacionais de Francisco de Campos em 1930 e da Lei de Diretrizes e Bases de 1961, assim como das mudanças na narrativa histórica produzida a partir da década de 1960, quando foram registradas as primeiras tentativas de construção de uma historiografia abordando o Brasil de forma mais integrada com a história da América Latina.
Destarte, foi na década de 1970 que a descentralização do ponto de vista etnocêntrico europeu começou realmente a ganhar força, quando historiadores de linha marxista passaram a questionar a hegemonia norte-americana sobre o mundo, clamando por uma identidade latino-americana.
Depois, nos anos 1980 e 1990, novas tendências historiográficas, como a História da Cultura, a Nova História, o estudo das Mentalidades; trouxeram consigo novos objetos, fomentando o multiculturalismo, a discussão em torno das identidades múltiplas e da diversidade.
No entanto, apesar da historiografia brasileira inserir-se na critica global ao etnocentrismo, a verdade é que o discurso dos historiadores no Brasil continua ainda hoje repleto de vinculações com uma visão que relega o outro a um plano inferior, servindo aos interesses das elites culturais dominantes.
Por que isto acontece? A Resposta é simples, porque nossa historiografia segue uma tradição eurocêntrica que tem como modelo obras clássicas, em grande parte imbuídas do resgate da herança européia.
O eurocentrismo na historiografia brasileira.
Em sentido amplo, o eurocentrismo continua presente na historiografia mundial, mas no Brasil se perpetua com ainda mais força.
Adotar a Europa como centro de irradiação do saber, assumindo posturas dominantes entre alguns grupos de intelectuais europeus, tornou-se uma característica comum nas pesquisas na área.
A narrativa histórica brasileira esteve, desde o seu inicio, marcada por uma série de conceitos equivocados, repleta de afirmações etnocêntricas, onde o outro foi relegado a um plano inferior.
Grande parte dos historiadores brasileiros assumiram a postura de herdeiros dos valores e da identidade européia, deixando de lado o viés miscigenado de nossa cultura, abandonando a herança indígena e africana, simplesmente minimizadas em favor da visão eurocêntrica.
Um exemplo valioso deste fato é fornecido por Petrônio Domingues, em meio a 250 obras abordando o tema Revolução Constitucionalista de 1932, ele lembra a ausência do negro, atribuindo a constatação ao etnocentrismo racial presente na produção acadêmica brasileira.
Retrocedendo mais no tempo e pensando pelo viés da questão indígena, ao invés de abordar a chegada dos portugueses ao Brasil como inicio de uma invasão e do genocídio dos povos nativos, a historiografia brasileira adotou a palavra descobrimento, dando uma falsa ideia de progresso.
Igualmente, caracterizar a carta de Pero Vaz de Caminha como uma "certidão de batismo" tem pressupostos etnocêntricos, evidenciando uma expressão que reflete a visão do conquistador, do vencedor, categorizando os portugueses como agentes da história e os índios, os "descobertos", como protagonistas passivos do episódio.
Uma visão mais contemporânea para o fato, a qual tenta isentar-se do eurocentrismo, aborda o pseudo descobrimento de Pedro Álvares Cabral como “achamento”, uma vez que os lusos teriam encontrado terras que já eram conhecidas e que estavam povoadas por povos nativos que seriam, posteriormente, expropriados.
Este eurocentrismo estava fortemente presente no inicio da historiografia brasileira e continuou influenciando as narrativas dos historiadores no Brasil por um longo período, pautando as mentalidades.
Segundo José Carlos Reis, embora Varnhagen tenha tomado para si a tarefa de "inventar o Brasil", para ele o colonizador representava o progresso, as luzes e a civilização.
O que fica evidenciado através de uma história heroica do português e de suas contribuições para a construção da identidade da "nova nação".
Mais do que eurocêntrico, o etnocentrismo em Varnhagen fica claro pelo atrelamento da construção da nação, legitimada pelo poder do Estado e do colonizador, com o encontro das três etnias (o índio, o branco e o negro), ocasião na qual aborda a miscigenação sob a perspectiva da defesa do branqueamento.
Depois, com o advento da República, na década de 1930, Gilberto Freyre contribuiu para sedimentar o "relógio da colonização portuguesa".
Em obras clássicas como Casa grande e senzala (1933), Sobrados e mocambos (1936) e Ordem e progresso (1959), Freyre entende a modernidade e a civilização brasileira como resultado de uma forma específica da "re-europeização" que transformou cultural e estruturalmente o país a partir de 1808, com a vinda da família real portuguesa e a chega do Estado moderno, instituições transformadoras das relações sociais.
Ao lado do sociólogo pernambucano, Caio Prado Junior e Sérgio Buarque de Holanda, formando com Freyre a chamada “tríade fundadora” da historiografia profissionalizada no Brasil; ao estudarem a temática das origens da sociedade brasileira, seguiram a mesma orientação eurocêntrica.
Caio Prado Junior não tinha formação acadêmica em história, era bacharel em direito, livre-docente em economia política, mas produziu uma rica gama de trabalhos que se tornaram referencia para gerações de historiadores.
Na obra, o autor propôs a tese de que o Brasil teria sido o quintal da colônia, a gênese do subdesenvolvimento brasileiro.
No entanto, nem por isto deixou de construir uma visão eurocentrista estereotipada, considerando “a contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira, (...) quase nula”, classificando o Brasil dentro da noção de estágios necessários para o progresso, tendo a Europa como ápice da humanidade civilizada.
Igualmente, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros, autor de dois grandes clássicos da historiografia, Raízes do Brasil (1936) e Visão do Paraíso (1959), ao traçar uma macro-análise da formação do Brasil, a partir do período colonial, também demonstrou prestar tributo à origem cultural européia do povo brasileiro.
Isto, apesar de exaltar a "plasticidade social" dos portugueses como uma virtude cultural, descrevendo-os como um povo de mestiços, quase sem orgulho racial, tendo eles se aproveitado dos benefícios da miscigenação para conquistar.
Mais adiante, na década de 1970, os trabalhos de Fernando Novais continuaram a buscar um sentido para colonização em uma tentativa totalizante.
O clássico Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, publicado originalmente em 1979, tentou romper com o eurocentrismo, mas também não obteve êxito, já que os conceitos que serviram de base para Novais são eurocêntricos.
Estes e outros clássicos da historiografia brasileira, os quais continuam servindo de referência para formar levas e mais levas de novos historiadores, amplamente citados nos meios acadêmicos; perpetuaram visões eurocêntricas da história, ajudando a compor no Brasil uma historiografia que, com raras e louváveis exceções, não consegue perceber as falhas em si mesma e realizar uma autocrítica.
Entre os quais podemos incluir: Laura de Mello e Souza, Mary Del Priore, Ronaldo Vainfas e István Jancsó, entre outros.
A critica ao etnocentrismo e a busca pelo outro.
A despeito da miopia reinante na historiografia acerca de sua vinculação com conceitos etnocêntricos que servem de referência, o interesse de alguns historiadores pelo outro, inaugurou o debate sobre o multiculturalismo.
Esta tendência, por sua vez, nasceu fora do Brasil e muito antes da década de 1980.
Entre os franceses, a critica ao etnocentrismo foi iniciada, como definiu Peter Burke quando “a hora da antropologia histórica” chegou, no final dos anos 1950, sendo gradualmente incorporada à historiografia circunscrita a História Cultural.
Foi quando os historiadores começaram a se dar conta que dissertar acerca do encontro entre povos, cujo referencial cultural parece diverso, constitui sempre uma tarefa árdua, onde o risco de uma análise falseada é enorme.
Um momento em que, como lembrou Julio Caro Baroja, os perigos da automação passaram ser notados, uma vez que conduz a historiografia a uma redução esquemática de culturas distintas, com problemas e referenciais diversos.
Até então, “os conceitos e vocábulos empregados no estudo das comunidades insulares[,] (...) ou povos da África negra[,] eram usados no estudo (...) da América mestiça” sem que as diferenças culturais fossem observadas.
Os estudos de Claude Lévi-Strauss sobre a mitologia ameríndia, publicados entre 1964 e 1971, a partir do conceito de oposição binária, atraíram historiadores como Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie, os quais incorporaram a abordagem estruturalista, descobrindo que ela resistia à apropriação pela história.
Estes historiadores tentaram combinar as estruturas com os eventos, examinando biografias e a vida cotidiana para entender valores, atitudes, crenças e comportamentos populares. Traçaram narrativas que buscavam elucidar a história a luz dos sujeitos que vivenciaram os fatos, procurando fugir dos conceitos pré-concebidos pela cultura erudita.
A década de 1970, com o advento da micro-história, associada a um pequeno grupo de historiadores italianos, como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Edoardo Grendi; assistiu ainda ao aparecimento de uma série de trabalhos que procuravam valorizar as especificidades das culturas locais.
Os marginalizados e esquecidos foram ganhando voz sob o microscópio que procurava se opor ao telescópio, modelos diferentes de explicação para a história apareceram, fugindo do determinismo social e econômico estereotipado pelo etnocentrismo.
Entretanto, embora a narrativa histórica Ocidental tenha despertado para o que havia deixado de fora até então, o outro se encontrava ainda oculto na historiografia que começava a criticar as narrativas etnocêntricas, das quais, no entanto, não conseguia se desvencilhar completamente.
A luta pela emancipação do Terceiro Mundo, o debate marxista sobre a exploração econômica dos países ricos sobre os pobres, no final dos anos 1970, chamou a atenção sobre os preconceitos colonialistas.
Foi quando Edward Said, com a obra Orientalismo (1978), mostrou, através da oposição entre o Oriente e Ocidente, como a leitura destas relações era prejudicada pelos estereótipos do atraso.
Mais impactante, porém, foi a obra de Tzvetan Todorov, A conquista da América: a questão do outro, publicada em 1983, a qual terminou por acirrar a discussão sobre o confronto cultural e dos valores dispares lidos como únicos pelo etnocentrismo.
É claro que, antes dele, outros, a exemplo de Edward Said, tentaram realizar o mesmo tipo de análise, porém esbarraram sempre no reducionismo esquemático, mesmo sem perceber, de modo que a grande inovação de Todorov foi dar mais atenção à questão da leitura dos signos tanto pelo prisma dos conquistadores espanhóis quanto dos ameríndios.
Uma novidade que iria evoluir até o aparecimento de nomes como Frank Lestringant ou Michelle Perrot, quando a leitura dos signos do outro pelos próprios referenciais dele foi incorporada à historiografia, multiplicando os estudos sobre as mulheres, as crianças, os homossexuais, os negros, os índios e muitos outros antes invisíveis.
No entanto, este novo olhar também não conseguiu se desvencilhar completamente do etnocentrismo.
Ao ganhar voz pela boca de seus próprios membros, o outro iniciou a composição de uma historiografia voltada ao segmentado, espelhando igualmente analises etnocêntricas.
Concluindo.
O etnocentrismo, normalmente associada apenas a valores de povos e nações, é mais amplo do que isto.
Diz respeito a práticas culturais e sistemas de valores dominantes, responsáveis igualmente pela criação de identidades de grupos menores, com indivíduos associados por afinidades, etnia e outros tantos laços.
Através destes sistemas de valores compartilhados, o próprio ponto de vista termina servindo de parâmetro para julgar outras culturas, uma atitude em conexão com estereótipos, imagens simplificadas e carregadas de significados distorcidos sobre o outro.
O que, na maioria das vezes, conduz aos preconceitos, ao racismo, a violência sem propósito e desproporcional.
No âmbito historiográfico, inicialmente, os particularismos geraram leituras etnocêntricas, simultaneamente sendo reforçadas pelos nacionalismos e ajudando a forjar o sentimento de nação através da interpretação da história.
Desde o século XVI, reivindicações etnocêntricas foram incorporadas à historiografia, cunhando o eurocentrismo que se apropriou da memória, o que Jack Goody chamou de “roubo da história” pelos europeus.
Posteriormente, as mais diversas escolas historiográficas aderiram aos conceitos e modelos eurocêntricos, as referencias para tempo e espaço passaram a espelhar os valores dos grupos que “escrevem a história”, embora o termo mais preciso talvez seja que “descrevem a história”.
A antiguidade greco-romana foi inventada como berço da humanidade, desconsiderando as contribuições de outras culturas.
A Idade Média na Europa apareceu como marco divisor de águas e caminho para a passagem à Idade Moderna, o próprio calendário cristão foi tomado como ponto de referência para demarcar a história.
A partir do século XIX, o historiador de oficio continuou pelo mesmo caminho sem se dar conta, as narrativas etnocentristas, repletas de carga emocional e afetiva, foram apenas revestidas de uma intelectualidade pseudo racional.
Ao longo do século XX, o foco de atenção deslocou-se da tendência mais abrangente para o micro, dando voz aos excluídos e as minorias, mas nem por isto deixando de abordar as diversidades através de um etnocentrismo involuntário, uma tendência inclusive presente na historiografia brasileira.
Todavia, apesar das inúmeras criticas as narrativas históricas etnocêntricas, contemporaneamente, cada grupo tenta ainda contar sua versão da história a partir de seus próprios valores, sem cruzar olhares com o outro.
Vemos hoje ativistas negros, judeus, palestinos, árabes, muçulmanos compondo uma historiografia engajada.
Enquanto mulheres ou homossexuais tentam resgatar seu passado sob o viés de uma análise centrada no si mesmo.
Neste sentido, cabe aos profissionais da história discutir e desconstruir a historiografia, alertando para os perigos do etnocentrismo, tão precarizantes como o anacronismo, visando colaborar para amenizar conflitos ao chamar a atenção de todos para os outros, permitindo que de fato as diversidades sejam respeitadas e valorizadas.
Somente assim poderemos, no futuro, ter espaços de convivência pacifica em um mundo que, à medida que torna-se mais globalizado, paradoxalmente, apresenta-se mais fragmentado e dividido entre grupos antagônicos com referenciais fundamentalistas.
Onde o outro é considerado um ser de segunda categoria, mesmo quando o discurso parece dizer o contrário daquilo que a atitude velada demonstra.
Para saber mais sobre o assunto:
BARROS, Jose D´Assunção. “História, região e espacialidade” In: Revista de História Regional, v. 10. Ponta Grossa: UEPG, Verão, 2005, p.95-129.
BARROS, Jose D´Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004.
BURKE, Peter. A Escola de Annales. São Paulo: Unesp, 1997.
CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábua rasa do passado?: sobre a história e os historiadores. São Paulo: Ática, 1995.
COSTA, Rogério Haesbaert da. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à “multiterritorialidade”. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2007.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala, s.d.
GOMES, Paulo César da Costa. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
HUNT, Lynn. Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009.
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do mundo. São Paulo: Contexto, 2009.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 2003.
MARX, Karl. O capital. São Paulo: Centauro, 2005.
PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Novos temas nas aulas de história. São Paulo: Contexto, 2009.
SALIBA, Elias Thomé. “Cultura Modernista em São Paulo” In: Estudos Históricos, Nº. 11: 1993, p.128-132.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Unb, 1998.
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