A história e o historiador.
Neste sentido, a reboque, a discussão em torno do ofício do historiador tornou-se também objeto intenso de debates.
Passou ser a necessário adentrar a forma de lidar com material de trabalho do historiador, reler testemunhos e silêncios.
Uma atitude essencial para conduzir a bom termo o desempenho da profissão, fazendo da história uma ciência.
Na década de 1960, Jacques Le Goff tentou elucidar a questão, chegando a afirmar que o trabalho do historiador consistia em estabelecer acontecimentos, bastando aplicar aos documentos um método para fazer os fatos aparecerem.
Porém, descrever o ofício do historiador, envolve considerações mais complexas.
É justamente o domínio da técnica que permite ler os documentos para tentar visualizar corretamente o passado.
Como afirmou Charles Beard, o historiador não é um observador do passado que permanece fora de seu próprio tempo, não pode vê-lo objetivamente, como o químico vê seus tubos de ensaio, devendo ver a realidade por intermédio da documentação, seu único recurso.
O historiador e a análise das fontes.
O historiador, não sendo um individuo isento de influencias as mais diversas, fruto de seu próprio tempo, necessita de técnicas que permitam tentar alcançar a objetividade cientifica na leitura e interpretação das fontes.
Poderíamos listar uma infinidade de técnicas utilizadas para ler os dados contidos nos documentos, algumas emprestadas por outras ciências, outras surgidas no seio da análise histórica, contudo, Jean Chesneaux sintetizou as mais usuais na sua obra clássica Devemos fazer tábua rasa do passado, a despeito de confundi-las por vezes com métodos e empregar técnica e método dentro da mesma acepção.
Segundo ele, toda análise histórica, obviamente a partir do século XIX, é tecnicista, busca uma abordagem profissional, sendo reflexo e sustentáculo da ideologia capitalista.
Dentro da amplitude deste pressuposto, é habitual observar que os historiadores, independente da corrente teórica ou orientação metodológica, em geral, utilizam a técnica de análise baseada na diacronia-sincronia, assim como a periodização e, por vezes, a quantificação.
Através da diacronia-sincronia, todo fenômeno histórico, expresso através da língua, é analisado simultaneamente em uma série vertical e horizontal.
Sua extensão na dimensão do tempo, a diacronia, permite observar as conexões, antecedentes e conseqüências.
já sua relação com outras referências do conjunto que é contemporâneo, a sincronia, permite visualizar as implicações entre fatos aparentemente desconexos, mas que encontram relação, por vezes, diretas.
Assim, a diacronia possibilitaria perceber, por exemplo, o ideal cruzadístico de combate aos infiéis, circunscrito ao século XII, na península ibérica expresso pela reconquista aos mouros, como uma das causas que conduziram aos descobrimentos portugueses no século XVI.
Possibilitando ainda visualizar a colonização, o povoamento europeu, do Brasil, no século XVII, como um de seus desdobramentos.
A sincronia, centrada também nos descobrimentos portugueses, por sua vez, permitiria notar que problemas internos na Espanha, ainda envolvida na guerra de reconquista no século XV, fomentaram a primazia dos mares aos lusitanos.
Um refinamento da diacronia, a periodização é uma extensão da técnica, organizando as articulações em etapas, períodos que visam facilitar o estudo do fenômeno, criando compartimentos fechados envolta de momentos que parecem centrais dentro de cada etapa da história.
Uma técnica que foi reforçada pela prática pedagógica, especializando o conhecimento histórico, servindo de exemplo os estudos focados no renascimento ou na Idade Moderna.
Menos usual do que as técnicas qualitativas da diacronia-sincronia e da periodização, temos a quantificação.
Surgida, como ressaltou Jacques Le Goff, na década de 1960, a partir do estimulo da revolução tecnológica representada pela invenção do computador, passou a permitir estabelecer relações complexas, usando a estatística para chegar a conclusões palpáveis.
Quantificando o número de navios que circularam na rota do Brasil e da Índia, por exemplo, ao longo do século XVI e XVII, poderíamos vislumbrar o momento da viragem do centro econômico e social do Império português, provando, através da quantificação dos naufrágios, o peso deste componente no declínio do poderio lusitano no Oriente.
Entretanto, como lembrou Gramsci, cabe ressaltar que a história não pode ser reduzida a um cálculo matemático, ou ainda que a estatística mostra o caminho ao cego, mas não restitui a visão.
O que não invalida a técnica da quantificação e nem tampouco seus desdobramentos a história demográfica e a história serial, linhas de pesquisa que já foram tidas como concepções teóricas ou metodológicas, mas que na realidade constituem aprofundamentos da técnica.
A leitura das lacunas do passado.
Em certa ocasião, Walter Benjamin lembrou que o passado só se deixa fixar como imagem que relampeja, irreversivelmente, no momento em que é reconhecida, fazendo com que o historiador não tenha domínio dos fatos como eles realmente foram, apropriando-se de uma reminiscência do passado.
Este último constitui um espaço repleto de “agoras”, apenas uma construção limitada pelo que é possível conhecer em dado contexto, circunscrito ao momento de sua configuração.
O agora capta a imagem de sua própria época e não, propriamente, do passado que almeja conhecer, inserindo-se na leitura deste passado os testemunhos como os espaços em branco, os silêncios.
Talvez por este motivo, desde o século XIX, os limites da história sempre foram questionados, muitas vezes considerada mais próxima da literatura do que da ciência, contudo, é inegável que o positivismo e a escola metódica inauguraram a busca pela objetividade na história, fazendo os historiadores procurar pela cientificidade desde então.
Como ressaltou Ciro Flamarion Cardoso, a partir de Annales, dado seu pluralismo e a análise das estruturas globais, a história adquiriu um incontestável caráter cientifico, uma vez que, como qualquer outra ciência, passou a trabalhar não mais com acontecimentos únicos, mas com aspectos sujeitos a regularidades, como as estruturas sociais e culturais.
A primeira geração de Annales, fundou um conceito de história extremamente vinculado à ciência.
Lucien Febvre definiu a história como uma ciência do homem e do passado humano, das coisas e dos conceitos, cabendo ao historiador interpretar os feitos humanos, recompondo a realidade que serve ao entendimento de um momento concreto, a partir do que os documentos permitiram em dado contexto.
A interpretação das lacunas, embasada por métodos e técnicas, também constituiria objeto do oficio do historiador.
Isto para não mencionar outros aspectos circunscritos à documentação que sustenta a análise histórica, tal como a inexatidão da narrativa ou as intenções envolvidas na produção das fontes.
Em outras palavras, como afirmou Eric Hobsbawm, o passado e a história são ferramentas utilizadas para legitimar as ações do presente, assim como as fontes têm um alcance político e ideológico, tornando a visão do passado distorcida.
É justamente baseado na leitura das lacunas do passado pelo historiador, envolvendo não só a ausência de dados, os silêncios; mas também a incapacidade de análise objetiva das fontes; que, pejorativamente, Poincaré, filosofo da ciência, chegou a afirmar que a história seria uma ciência que adivinha o passado.
Em certo sentido ele tinha razão, como demonstrou Michel de Certeau, hoje, mais do que nunca, o historiador tem se desviado para as zonas silenciosas, como, por exemplo, a feitiçaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o mundo do esquecido, etc.
Aplicando-se a estes silêncios da história também a ausência de documentação, criando hiatos que são objeto de questionamento e problematização.
Destarte, como ressaltou Jacques Le Goff, não existe sociedade sem história, o que conduz ao conceito de historicidade, o pertencer de cada individuo ao seu tempo, os aspectos comuns que todos os homens de determinada época compartilham.
O que impossibilita qualquer ciência de evitar extrair conclusões próprias, descoladas de sua historicidade.
O ofício do historiador e a problematização do passado.
Quer seja o oficio do historiador o domínio de métodos e técnicas, circunscritos a um conjunto teórico; ou, ainda, um exercício de imaginação, a construção de uma narrativa verossímil, entre outras possíveis; não se pode negar que o surgimento da escola de Annales inaugurou uma postura diferenciada.
Na realidade, uma reação critica as concepções históricas do século XIX, notadamente rejeitando a ênfase positivista e metódica em política, diplomacia e guerras, assim como a abordagem economicista do marxismo.
Annales se propôs a problematizar a história, contrariando a coleção de fatos perpetuada pelas tendências anteriores, tentando se isentar de ideologia, procedimento adotado pelo marxismo, embora esta tentativa seja passível de inúmeras criticas, já que o historiador, estando inserido em um tempo histórico, jamais conseguirá traçar uma análise imparcial.
A partir da problematização, Annales desdobrou-se em várias linhas teóricas e campos de pesquisa, notadamente servindo de base para criar departamentos tanto de história social como econômica.
Fomentou debates acerca da natureza teórica do conhecimento histórico, atualmente, incorporados ao panorama contemporâneo.
Para saber mais sobre o assunto.
BEARD, Charles A. “That noble dream” In: The American historical review. New York, 41 (1): out. 1935, p.74-87.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história” In: Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1996.
BORGES, Vavy Pacheco. O que é história? São Paulo: Brasiliense, 1993.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma introdução a história. São Paulo: Brasiliense, 1992.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. São Paulo: Forense Universitari, 2002.
CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábua rasa do passado?: sobre a história e os historiadores. São Paulo: Ática, 1995.
FEBVRE, Lucien. Combates por la historia. Barcelona: Ediciones Ariel, 1970.
HOBDBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LANGLOOIS, Ch. V. & SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Editora Renascença, 1946.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1990.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Unb, 1998.
Texto:
Boa noite, Prof. Fábio
ResponderExcluirEstive em sua palestra hoje no pólo de Santo André do Claretiano. A sua explanação foi fantástica! Parabéns!
P.S.: Gostaria de sugerir um tema para o blog: a participação brasileira na Segunda Guerra. Obrigada!!!!
Excelente sugestão, em breve vou postar algo a respeito do tema.
ResponderExcluirForte Abraço.