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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O apogeu e declínio do ciclo das especiarias: a rota do Brasil e da Índia.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume ago., Série 30/08, 2010.


Introdução.

A Carreira da Índia nasceu graças à bem sucedida viagem de Vasco da Gama em 1497, abrindo o comércio de especiarias Orientais via Atlântico e Índico, iniciando o chamado ciclo das especiarias, representado no século XVI pela pimenta e no XVII pelo açúcar.

Carreira era usada como sinônimo de rota, constituindo um caminho regular, com navios ligando um ponto ao outro, transportando mercadorias e passageiros.

Desde que a rota foi inaugurada, os lusos passaram a importar a pimenta da Índia com um lucro médio de 4.000%, tendo atingido o teto máximo de 24.000% em 1620, o que levou a Carreira da Índia ao seu apogeu quase imediatamente.

Já na primeira década partiram de Portugal nada menos que 144 naus, não obstante a um índice de naufrágios da ordem de 13,10%, quase nada se comparado aos lucros obtidos, um ótimo negocio para os investidores, e, ao mesmo tempo, pelos tripulantes terem direito a uma participação nos lucros, a única esperança de enriquecimento rápido e fácil para a gente miúda.

Anualmente a Coroa portuguesa armava esquadras destinadas ao Oriente, retornando estas ao Reino depois de pelo menos dois anos, período no qual os navegantes, tanto na ida como na volta, passavam por inúmeras privações: fome, sede, doenças, violência sexual e o risco constante de naufragar.

Entretanto, todos os inconvenientes eram superados pelo sonho de enriquecer com o comércio da pimenta, relegando o Brasil ao marasmo no período quinhentista.

Pela altura da União Ibérica, entre 1580 e 1640. tudo se inverteu, a pimenta entrou em declínio sendo substituída pelo açúcar, conduzindo o caminho marítimo do Brasil a tornar-se uma Carreira.

O representou um reajuste forçado no ciclo das especiarias, visando, sobretudo, estender a sua sobrevivência através da troca da primazia da pimenta pelo açúcar.


Como o Brasil se tornou mais importante que a Índia.

Em busca do lucro, a Coroa portuguesa aumentou ano após ano à capacidade de transporte das naus da Índia, superlotando embarcações, cada vez mais, com mercadorias.

Pouco espaço era reservado para os embarcados e os víveres necessários, causando grande mortandade a bordo, mas mesmo assim, enquanto a lucratividade se manteve elevada, voluntários não faltaram, fornecendo uma vasta mão de obra altamente qualificada.

Em contrapartida, no século XVI, a rota do Brasil esteve relegada a segundo plano, estando entregue ao marasmo, isto com exceção de um período experimental de produção de açúcar por Pernambuco, compreendido entre 1540 e 1559, quando o movimento de embarcações alcançou números extraordinários.

O domínio espanhol sobre Portugal, a partir de 1580, condenou a Carreira da Índia ao seu declínio definitivo.

Enfrentando já uma série de problemas, a união da Coroa espanhola a portuguesa, em 1580, não fez mais que atrair contra as naus da Carreira da Índia o assédio dos tradicionais inimigos da Espanha, no caso Holanda e Inglaterra, agravando o índice de naufrágios.

Ao mesmo tempo em que a intermediação da pimenta já não era tão lucrativa, o índice de naufrágios era ampliando por questões decorrentes da má condução dos navios por pilotos não preparados, uma vez que a Coroa não conseguiu dar conta de formar pilotos devidamente qualificados a fim de preencher a demanda.
A solução era vender o cargo a elementos da nobreza que nada entendiam da função, levando vários navios a perdição por sua condução inadequada.

Além deste problema, havia ainda a má construção e conservação dos navios, tributária da evasão de divisas visando cobrir empréstimos externos, o que impossibilitava a renovação da frota.

Assim, na década de 1590 a Carreira da Índia alcançou o maior índice de naufrágios de sua história, 43,64%, seguido na década seguinte por um índice de 41,89%, gerando um prejuízo que começou a afugentar os investidores, bem como um número elevado de mortes que também fez diminuir sensivelmente a quantidade de voluntários, forçando a Coroa a fazer um uso intenso de degredados.
Na verdade, a partir de 1600, havia se iniciado um período de transferência do eixo econômico e social do Oriente para o Ocidente, sobretudo, estimulado por um índice mais baixo de perdas na rota do Brasil, além é claro de um cotidiano um pouco mais ameno e certas facilidades de penetração territorial, isto contraposto as crescentes dificuldades verificadas na Carreira da Índia.

Depois de um momento de transição, a partir de 1640, a queda no movimento de embarcações na Carreira da Índia tornou-se crescente, a intermediação do comércio da pimenta foi gradualmente substituída pela produção e comércio do açúcar.

A restauração da monarquia portuguesa, em 1640, forçou a Coroa a optar por incentivar o movimento de navios na rota do Brasil, deixando a Índia em segundo plano.

Sem recursos financeiros para recuperar a frota naval lusitana, o novo rei, abriu a rota do Brasil a todos os navios estrangeiros que se dispusessem a combater os inimigos de Portugal.

Depois, em 1644, instituiu a formação das frotas do Brasil, tornando obrigatório o acumulo de pelo menos 200 navios no porto de Salvador a fim de serem escoltados por 16 naus de guerra até o Reino, sendo proibida a partida de navios fora da frota.

Uma medida que visava evitar o assédio de piratas e facilitar o socorro das embarcações que sofressem a varias durante a viagem.

Entretanto, em poucos anos a Coroa ficou impossibilitada de cumprir seu próprio decreto devido à falta de recursos, obrigando o poder régio a autorizar a partida de todos os navios que requeressem sua partida fora da frota.

O que representava um grande risco de ataque por navios holandeses.

Assim, em 1649, inspirado em uma sugestão do Padre Antônio Vieira, foi formada uma Companhia para garantir a segurança da rota do Brasil.

O movimento de embarcações foi elevado na década de 1650 para 1147 navios, contra apenas 34 navios na Carreira da Índia.

Destarte, o ápice da primazia do açúcar havia sido atingido, em poucas décadas o ciclo das especiarias entraria definitivamente em declínio, mas a Carreira do Brasil se manteria em franca ascensão por conta da descoberta de ouro e pedras preciosas, sendo o centro econômico e social da colônia deslocado de Salvador para o Rio de Janeiro em meados do inicio do século XVIII.


Concluindo.

Estimulado pela busca de uma lucratividade mais constante e garantida, um retorno em um prazo mais curto, a partir do crescente número de perdas acumuladas na Carreira da Índia, contraposto a um índice menor de naufrágios na rota do Brasil, os investidores migraram do Índico para o Atlântico, dando inicio a um período de transição compreendido entre 1600 e 1639.

Simultaneamente, diante da gradual viragem do eixo econômico e social lusitano do Oriente para o Ocidente, a recém restaurada Coroa portuguesa optou por incrementar a rota do Brasil em 1640.

As facilidades de penetração territorial, aspectos culturais e o cotidiano mais ameno, facilitaram a consolidação da elevação do Brasil a principal colônia lusitana em detrimento da Índia.


Para saber mais sobre o assunto.

RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das Especiarias. Nova Edição. São Paulo: Contexto, 2006.


Texto:

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.



4 comentários:

  1. Desculpa meu cara Fábio mas tenho que discordar......O que aconteceu foi que a concorrência ficou muito alta,a Holanda e a Inglaterra entraram no mercado das especiarias do oriente também.E elas eram muito mais competitivas,pois tinham muito mais capital a disposição:Graças a inovação da bolsa de valores,que surgiu na Holanda pra financiar viagens até o Oriente...portugal não tinha condições de competir de igual pra igual,então se concentrou em algo de sua colonia,que teoricamente era só dela,quase um monopólio..Em 1620 a Holanda já era a maior comerciante de especiarias do mundo,e atrás a Inglaterra.sds

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  2. Justamante contestar esta visão foi um dos objetivos da tese de doutorado que defendi na USP em 2002. A qual, por conter mais de 900 páginas, foi publicada em versão simplificada e destinada ao público leigo em 2004 pela editora contexto. Em breve, ainda este ano, será publicada uma versão completa do texto da tese, com todas as referências a documentação primária, gráficos, tabelas, etc, comprovando tudo que é afirmado neste artigo. Serão três volumes de cerca de 500 páginas cada. Assim que lançar estes novos livros, faço questão de recomendar a leitura, para que possamos voltar a debater o tema.
    Em todo caso, a história sempre comporta multiplas interpretações, por isto é tão dinâmica e está em constante discussão.
    Forte Abraço.

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  3. Olás

    Caro prof. Fábio
    na sua tese não há, então, nenhuma referência a competição imposta pelas outras nações, como as citadas por Historiador, ou a sua pesquisa aponta que, mesmo havendo essa concorrência e não conseguir acompanhá-la, o declínio da Carreira da Índia se deu mais pela incapacidade de Portugal de reverter o quadro de degradação da sua frota do que por qualquer outro fator externa?

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  4. Olá, na verdade a concorrência sempre existia, pois o fluxo de especiarias via cidades italianas pelo mediterrâneo nunca foi interrompido, mas terminei por abordar a questão na tese de doutorado defendida na USP em 2002, em parte os resultados foram publicados nos livros "No tempo das especiarias" e "Por Mares nunca dantes navegados". Porém, o texto completo da tese está sendo publicado este ano em três volumes, o primeiro volume já está disponivel e referenciado aqui no site ou pelo link.

    https://clubedeautores.com.br/book/123974--O_apogeu_e_declinio_do_ciclo_das_especiarias_1517_Volume_1

    Agradeço imensamente a colocação e coloco-me a disposição.
    Forte abraço: Fábio.

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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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