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sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A guerra de reconquista e o contato com os mouros: fatores que contribuíram para o pioneirismo naval lusitano.


Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 7, Volume dez., Série 16/12, 2016.


Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.


Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.

Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.



Atraídos pela riqueza hídrica, os árabes atravessaram o Estreito de Gibraltar em 711, o domínio muçulmanos sobre a Península Ibérica fez parte da expansão da fé islâmica pregada desde 612 por Maomé.
O relativo sucesso e rápida penetração árabe deveu-se, sobretudo, ao antagonismo entre judeus e cristãos, o que criou espaço para que em muitos locais a população judaica oprimida recebesse os mouros como libertadores.
Embora os muçulmanos tenham permanecido oito séculos na Península, o domínio efetivo teve duração muito variável de região para região, nunca foi exercido nas terras mais setentrionais, onde várias cidades estiveram em poder dos cristãos por breves períodos.
As variações fizeram com que houvesse um intenso intercâmbio cultural e comercial entre cristãos e mouros, apesar de inimigos civilizacionais por excelência.
Os judeus, principalmente dentro do contexto da reconquista, adquiriram a posição de intermediadores culturais.
Graças ao contato com o mundo islâmico, em muitos casos, intermediado pelos judeus, os lusos se depararam com realidades totalmente inéditas.
Neste sentido, a análise das palavras de origem árabe, que migraram para o português, expressa a aquisição de produtos e tecnologias até então desconhecidas; uma vez que uma palavra nova adota-se para exprimir uma realidade nova.
Entre as inúmeras palavras importadas do árabe, a que se destacar as usadas para designar novos produtos como: alfarroba, alface, alfazema, laranja, limão, açafrão, acelga, cenoura, cherivia, alfobre, estragão, albarrã, maçaroca, azeitona e azeite.
Isto, para não mencionar o açúcar, especiaria que assumiria fundamental importância dentro da economia portuguesa.
No que diz respeito às inovações ligadas ao comércio, poderíamos ainda destacar as palavras: almoeda, armazém, almude, arroba, arrátel, fanga, quilate, calibre, quintal, rima, resma, maravedi, ceitil, mitical e fardo.
Todavia, a mais importante de todas as inovações trazidas pelos muçulmanos esteve ligada ao aprimoramento da arte náutica.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, segundo uma das explicações para a origem da palavra caravela, esta teria derivado de “cáravo-à-vela”, embarcação de origem árabe característica do norte da África.
Embora nunca possamos saber com certeza até que ponto o desenvolvimento da caravela esteve ligado ao saber adquirido dos mouros, é certo que ao menos em parte o contato com os muçulmanos influenciou o aprimoramento da indústria naval, assim como diversos instrumentos náuticos que se fariam essenciais à empreitada marítima lusitana foram adquiridos através dos árabes.
É certo que, por volta do século XII, os muçulmanos intensificaram o comércio marítimo desenvolvido pelas cidades do litoral Ocidental, devido as mais estreitas relações que mantinham com os portos marroquinos.
Estas rotas comerciais, dentro do contexto da reconquista, a serem cobiçadas pelos cristãos, ao mesmo tempo em que se fez necessário aprimorar a indústria naval lusitana visando fazer frente aos navios árabes nos seus aspectos militares e comerciais.
Ocorre que, para além deste estímulo à expansão ultramarina portuguesa, pela mesma altura; os mouros haviam iniciado um movimento rumo a exploração da navegação Atlântica , aventurando-se pelo oceano muito antes dos lusos, experiência que seria absorvida pelos portugueses.
Segundo um relato de um geógrafo, datado em 1154, uma destas explorações rumo ao Atlântico, levada a cabo por marinheiros árabes, teria sido realizada pelos chamados “Aventureiros de Lisboa”, na primeira metade do século XII:

“Eram oito marinheiros, aparentados entre si, que embarcaram em Lisboa rumo ao oceano, abastecidos com água e víveres para muitos meses. Ao fim de 22 dias atingiram uma ilha deserta. Regressaram ao mar e, mais tarde, encontraram outra ilha, desta feita habitada e agricultada, onde foram feitos prisioneiros. Interrogados, através de um intérprete árabe, pelo rei local acerca do significado da sua viagem, informaram-no que apenas pretendiam saber quais os extremos limites do mar e o que nele poderia existir de singular e maravilhoso, ao que o rei confessou ser também esse um dos seus desejos. São depois libertados e transportados a um barco, no qual prosseguem a sua navegação. Ao fim de três dias e três noites, aportam a Safim e aí contam sua história” .

Apesar da veracidade deste relato ter sido contestada, não é improvável que os árabes tenham atingido, em suas explorações, a Ilha da Madeira, o arquipélago dos Açores e das Canárias.
Embora, com toda certeza, não tenham se interessado em ocupar estas ilhas, como fariam dois séculos depois os portugueses.
Também não é improvável que os lusos tenham obtido a notícia da existência desta série de ilhas ao Oeste por meio do seu contato com os árabes e, neste sentido, o início da expansão europeia não resulta apenas de um mero acaso, constituindo um processo longamente amadurecido e gerado por uma série de fatores agrupados.
Mais do que o sentimento de continuidade da cruzada contra os infiéis, conduzido, por sua vez, pela guerra de reconquista, tido como estímulo à expansão ultramarina, o contato com os mouros criou condições não só mentais como técnicas que dariam origem a exploração do Atlântico.
Entretanto, no que diz respeito à guerra de reconquista em si, embora o antagonismo religioso tenha sido um grande estimulador da cruzada contra os infiéis; não se pode negar suas razões econômicas e sociais.
As quais, agregadas aos motivos que deram impulso à guerra de reconquista, tal como, a posse de rotas comerciais controladas pelos mouros, serviram de válvula de escape às tesões políticas entre a nobreza e os camponeses empobrecidos do norte da Península Ibérica e da França.
Em outra vertente, como lembrou Raymundo Faoro, em 1958, na obra Os donos do poder, “a guerra, a conquista e o alargamento do território que ela gerou, constituiu a base real, física e tangível, sobre que [se assentaria] o poder da Coroa”; este sim, devido a sua forte centralização, uma das condições básicas que permitiram a primazia lusitana nas navegações ultramarinas.
Retornando a questão da guerra de reconquista, devemos ter em mente que muitas das inovações técnicas no campo da náutica nem sempre foram obtidas por meios pacíficos, muitos segredos registrados em livros escritos em árabe foram roubados durante a pilhagem das povoações ocupados pelos mouros.
Este conhecimento, depois, foi guardado nos mosteiros cristãos, como demonstra o extenso acervo de livros em árabe hoje em poder da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Os quais, justamente devido a barreira linguística, ainda não foram devidamente aproveitados pela historiografia, cuja tradução certamente mostraria que não só os lusos aprenderam com os invasores, como também eles (muçulmanos) se beneficiaram com o intercruzamento cultural.
Uma afirmação que poderia levantar a seguinte questão: teria o saber acumulado nestes livros em árabe, durante os séculos em que a guerra de reconquista foi travada, sido devidamente aproveitados, ou, como hoje, a barreira linguística impediu que fossem decifrados?
Nunca poderemos ter certeza, mas tudo indica que boa parte destes livros foram decifrados à época.
Hoje, a barreira à interpretação do árabe arcaico é realmente incrível, porém, entre os séculos X e XV, os chamados moçárabes e judeus serviram como intérpretes devidamente qualificados.
Cabe esclarecer que os moçárabes eram cristãos que tinham permanecido, sob o domínio islâmico, em suas terras em troca de um tributo anual, pago aos invasores.
Os mouros costumavam agregar, aos seus súditos, aqueles que aceitavam seu domínio; em alguns casos, forçando cristãos à conversão e, em outros, respeitando a fé do outro.
Nas terras dominadas pelos árabes, funcionarem simultaneamente mesquitas e igrejas convivendo pacificamente.
Todavia, embora a tolerância religiosa por parte dos muçulmanos, ou como ficariam mais conhecidos, mouros; nome latino derivado da província islâmica do noroeste da África, a Mauritânia; tivesse sido até certo ponto grande, o mesmo não se repetiu do lado cristão.
O combate aos infiéis começou quase imediatamente depois da invasão muçulmana, mais especificamente em 718, e, rapidamente, ainda antes de 914, um terço da península havia sido reconquisto pelos cristãos.
A guerra avançou rápido, a reconquistada foi iniciada por levas de peregrinos do sul França, justamente onde o avanço muçulmano havia sido barrado pelos francos em 736.
Gradualmente a península foi sendo tomada, em ondas delimitadas, respectivamente entre: 914 e 1080, quando ganhou maior força a reconquista, por conta do lançamento pelo papado, em 1096, da primeira Cruzada contra os infiéis, com fins a libertação da cidade santa de Jerusalém; 1080 e 1130; 1130 e 1210; 1210 e 1250; 1250 e 1480; sendo os territórios remanescentes conquistados pouco depois de 1480.
A pilhagem das povoações ocupadas pelos mouros e a doação das recém conquistadas terras aos nobres participantes, autofinanciou e estimulou a continuidade da guerra de reconquista, criando um poder fortemente centralizado em torno do Rei e dois Estados que iriam tornar-se pioneiros na navegação Atlântica: Espanha e Portugal.
Especialmente o nascimento deste último, é indissociável da guerra contra os infiéis, pretexto que seria retomado ao término da dita reconquista, a fim de direcionar a belicosidade da nobreza em função da exploração ultramarina, sob a égide do Infante Dom Henrique, chamado pelos cronistas portugueses da época e mesmo de períodos posteriores de o navegador.

Para saber mais sobre o assunto.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2006.
RAMOS, Fábio Pestana. O apogeu e declínio do clico das especiarias: 1500-1700. Volume 1: Em busca de cristãos e especiarias. Santo André: FPR/PEAH, 2012.
RAMOS, Fábio Pestana. Por mares nunca dantes navegados. São Paulo: Contexto, 2008.



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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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