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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

História indígena na América Portuguesa: novos problemas, novas fontes e novos atores.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume set., Série 03/09, 2010.


Introdução.

Dissertar sobre o encontro entre povos, cujo referencial cultural parece diverso, constitui sempre uma tarefa árdua, onde o risco de uma análise falseada é enorme.

Neste sentido, o alerta de Julio Caro Baroja para os perigos da automação na linha da história das mentalidades deve ser levado a sério.

Segundo ele podemos ser conduzidos a uma redução esquemática a partir de culturas distintas, com problemas e referenciais diversos, principalmente se apoiada pela antropologia ou sociologia.

Como salientou Baroja, “os conceitos e vocábulos empregados no estudo das comunidades insulares[,] (...) ou povos da África negra[,] foram usados no estudo da Europa ou da América mestiça” sem que as diferenças culturais fossem observadas.

Realmente, embora as contribuições da antropologia constituam um importante apoio à análise histórica, devemos guardar uma certa cautela a fim de evitar um anacronismo causado por comparações de ordem sociológica sob a ótica dos valores em voga em nossa época.

Dentro deste contexto, “a tendência a dessacralizar os problemas de outras épocas, tão marcado às vezes na nossa, ou de buscar explicações à luz dos critérios modernos, fazem com freqüência cairmos em sutilezas grandes, porém estéreis”.

De modo que devemos ter um cuidado todo especial a fim de que, sem cometer anacronismo, possamos problematizar questões úteis à explicação das conseqüências de dado fato histórico.

A análise comparativa entre culturas distintas é sem dúvida necessária à reconstituição de determinada realidade, sobretudo porque constitui uma de suas facetas mais importante, uma vez que entrecruzada com o contexto econômico, social e político.

No entanto, mais importante que o auxilio da antropologia ou da sociologia, para este fim é necessária à ajuda da semiótica, pois quando falamos em cultura não estamos tratando de nada além de símbolos e as diferentes leituras de cada cultura.

Ao ler estas novas fontes, por sua vez, terminamos por nos deparar com novos atores e novos problemas.

Os indígenas passam de coadjuvantes para astros.

Dentre outras questões, passa ser necessário entender o outro sob sua própria ótica.

A gênese para estabelecer qualquer problemática, inclusive daquela que envolve o confronto entre a cultura ameríndia e a européia, tantas vezes utilizada para explicar a conquista européia da América.


A utilização da iconografia como fonte.

Ao pensar na questão das fontes, em se tratando da análise do confronto cultural, especificamente, entre os portugueses e os índios americanos à época dos descobrimentos quinhentistas, a leitura dos signos torna-se muito mais arriscada que qualquer outra.

O que explica a raridade de trabalhos abordando o tema.

Não obstante, a obra fundante de Tzvetan Todorov, A conquista da América: a questão do outro, cujo original foi publicado em francês em 1982, terminou por abrir a discussão sobre o confronto cultural entre os europeus e os nativos da América.

É claro que, antes dele, outros tentaram realizar o mesmo tipo de análise, porém esbarraram sempre no reducionismo esquemático, de modo que a grande inovação de Todorov foi justamente dar mais atenção à questão da leitura dos signos tanto pelo prisma dos conquistadores espanhóis quanto dos ameríndios pré-colombianos, intento que realizou de maneira excepcional.

No entanto, Todorov deixou de lado o estudo da cultura dos indígenas considerados por muitos como menos evoluídos, como se estes fossem desprovidos de valor civilizacional.


Procurando pelo outro na América portuguesa.

Todorov iniciou a procura pelo outro na América, mas não foi até o fim. Laura de Mello e Souza, em seu brilhante estudo O diabo e a terra de Santa Cruz, publicado em 1986, retomou de certo modo o fio da meada, contudo, seu objeto de estudo não foi especificamente à questão do confronto cultural e sim a religiosidade. Assim, a busca pelo outro, dentro do primitivo território brasileiro continuou em aberto.

Depois de Laura de Mello e Souza, publicado em Portugal em 1991, O confronto do olhar: o encontro dos povos na época das navegações portuguesas, obra conjunta de Luís de Albuquerque, Antonio Luís Ferronha, José da Silva Horta e Rui Loureiro, abriu de fato a discussão acerca do confronto cultural entre os portugueses e os diversos povos visitados por estes à época das navegações.

Seguindo a mesma linha de orientação, em 1992, o francês Frank Lestringant, em seu O canibal: grandeza e decadência, foi ainda mais especifico que os portugueses, tocando de maneira aprofundada a questão da imagem européia do canibal das Antilhas e do Brasil.

Orientado por Laura de Mello e Sousa, Ronald Raminelli caminhou na mesma trilha percorrida por Lestringant, analizando a iconografia para tentar entender de fato os indígenas dentro de seu próprio universo mental, compondo a obra Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira, originalmente sua tese de doutorado defendida em 1994 e publicada em 1996.


Porque procurar pelo outro.

Além das razões clássicas apontadas pela historiografia abordando a temática, o estudo do outro é necessário não apenas para reconstituir fatos históricos que transcendem a esfera cultural para adentrar a economia, a política e o cotidiano; como também para adentrar novas problemáticas como, por exemplo, o impacto representado pela chegada do homem branco nas sociedades indígenas e seus reflexos presentes ainda hoje ou o resgate em si da história indígena anterior a invasão européia.


Em sentido amplo, dentre os novos problemas que se apresentam a partir da leitura revitalizada de fontes clássicas ou da incorporação de novas fonte, salta aos olhos a questão das diferenças civilizacionais.


Responsáveis na África e na Ásia pela estimulação da resistência nativa que, associada à concorrência inglesa e holandesa, foi um dos fatores responsáveis pelo declínio da hegemonia lusitana no Oriente e a conseqüente perda das possessões portuguesas nestes dois continentes.

Uma situação paradoxalmente muito diferente da encontrada no Brasil, onde o confronto cultural, embora tenha estimulado, também, em muitos casos, a resistência nativa, facilitou a penetração lusitana, contribuindo para o incremento da América portuguesa dentro do âmbito do sistema colonial.


Tentando entender a chegada dos portugueses pelo prisma indígena.

Enquanto, por um lado, é mais fácil reconstituir a visão do europeu quando de sua chegada a América, ou mesmo a chegada dos espanhóis, como pretendeu Todorov pelo prisma pré-colombiano; tentar retratar a chegada dos portugueses ao Brasil segundo a visão tupi-guarani é tarefa quase impossível.

Entretanto, um pouco da história indígena foi preservada na tradição oral dos mestiços integrados ao sistema colonial, que tinham portanto necessidade de preservar sua memória e que eram, ao mesmo tempo, pertencentes aos povos a-históricos do Novo Mundo.

Do mesmo modo, nas entrelinhas das narrativas européias e, principalmente, na iconografia foram preservados signos repletos de ícones e índices, de difícil interpretação, mas que podemos tentar compreender com a ajuda da semiótica de Peirce e com o auxilio da análise de outros autores.

Um mesmo signo foi interpretado de maneira distinta por cada cultura segundo as especificidades de cada qual.
Observando a iconografia, por exemplo, podemos notar que um padrão de pedra francês, representando para os europeus a legitimação da posse do novo território, ao seu ver descoberto; para os nativos significava a inserção de novos fatos a sua realidade.

Não se adequando ao conhecido só podia pertencer à esfera do sagrado, daí o motivo que teria levado a reverência diante da insígnia do invasor.

Reverenciar interpretado pelos franceses como um curvar-se à vontade do soberano europeu e, portanto, a aceitação de sua dita proteção.

A reverência dos nativos era feita ao objeto de pedra e não aquilo que, supostamente, poderia significar aos franceses aquele padrão enquanto símbolo de poder.

Assim, a submissão nativa era feita a um objeto concreto, mas foi interpretada pelos europeus como aceitação de seu domínio, uma vez que reverência tida como a uma ideia abstrata.

O fato é que o encontro entre ameríndios e europeus foi uma verdadeira torre de Babel, uma confusão tal que: o que era dito por um, era lido por outro de forma distinta da apresentada.


O deslocamento do universo mental indígena e a confusão cultural.

Não temos como saber com certeza como tudo realmente aconteceu, no entanto, podemos supor que a chegada dos portugueses ao litoral brasileiro desfocou o centro do universo indígena, tornando-o confuso.

Quando homens estranhos chegaram através dos limites conhecidos do mundo indígena, ou seja, do mar - limite este que não havia sido muito diferente para o homem europeu de épocas anteriores ao século XV - para os nativos, imersos em crenças mágicas, os lusos foram recebidos como deuses.

Entretanto existiu também desconfiança, pois, dado sua estranheza frente aos referenciais nativos.

Uma suspeita que se confirmou depois de algum tempo, quando a cobiça do homem branco aflorou na tentativa de escravização dos silvícolas.

Reflexo direto da confusão mental gerada pelo deslocamento do universo indígena do interior de sua própria tribo para o exterior centrado na figura dos portugueses, o fim do mundo passou a parecer mais próximo do que nunca aos nativos.

Na verdade, “vindos de muito longe, de além-mar, em grandes embarcações com estranhos poderes”, tal como armas de fogo, “e úteis objetos, os europeus foram associados aos grandes xamãs (...) que andavam pela terra, de aldeia em aldeia, curando, profetizando e lhes falando de uma vida melhor”.

Todavia, os povos tupi-guarani, de origem nômade, como tantos outros povos da América, de cultura voltada para a coleta de frutas e a caça, tiveram sua migração estimulada, não só pela própria origem de sua cultura, como também pela violência do homem branco e as doenças até então desconhecidas transmitidas por eles.

Diante da perspectiva do que parecia o fim do mundo, “os tupis localizavam essa terra-sem-mal - lugar de abundância, de ausência de labuta, da imortalidade, mas sobretudo da guerra e do canibalismo - tanto num eixo horizontal e espacial, quanto em outro vertical e temporal”, no interior do Brasil.

Ela era o destino individual pós-morte dos matadores, daqueles que deixavam memória pela façanha guerreira; mas era também um paraíso terreal inscrito no espaço, em algum lugar a oeste ou a leste, que podia ser coletivamente alcançado em vida”.

Uma noção de terra sem mal indígena bem diferente do conceito europeu de paraíso, para o qual a terra sem mal, sem dúvida, deve ter sido interpretada, dentro da ótica cristã, como terra do mau. Isto a despeito de alguns jesuítas terem aproveitado esta “utopia” para tentar convencer os nativos a se converterem, associando a terra sem mal dos índios ao paraíso cristão.

O mesmo signo teve uma interpretação indicial diferente de acordo com as especificidades de cada cultura, entendendo-se signo, tal como formulado por Charles Sanders Peirce, como algo que “representa alguma coisa para alguém”, e índice como “um indicador degenerado de seus próprios caracteres”.

A chegada dos europeus foi interpretada pelos nativos como signo de um provável fim do mundo e, portanto, como índice da necessidade de migrar rumo a terra sem mal, enquanto, por sua vez, a terra sem mal, na qual os índios acreditavam poder continuar praticando todos os costumes condenados pelos europeus.

Já pelo prisma europeus, a antropofagia, representou para os portugueses o indicio de que os nativos tinham alguma ligação com o demônio, pois, na sua visão, pretendiam alcançar o inferno e não a salvação.


Concluindo.

A migração em massa dos nativos em busca da terra sem mal, fornece exemplo valioso de como o entendimento das razões que levaram o outro a tomar determinada atitude podem contribuir para o entendimento mais completo da história de todos.

A migração indígena rumo ao interior, principalmente para o norte e oeste, acabou por, involuntariamente, facilitar a penetração portuguesa no Brasil, enquanto por outro lado se opunha a esta facilidade os obstáculos enfrentados pelos portugueses na tentativa de penetração da África e da Ásia.

Parece ter sido justamente este um dos fatores que levou muitos portugueses, e a própria Coroa, a optar pelo incremento da Carreira do Brasil e pela intensificação da colonização do que fora antes a Província de Santa Cruz, passando a relegar ao segundo plano a Carreira da Índia e as possessões Orientais, onde os nativos, ao invés de fugirem para o interior, procuraram empurrar os portugueses, com a ajuda dos ingleses e holandeses, para fora de seu território.

Não obstante, é interessante notar que existe ainda um longo caminho a ser percorrido no estudo da história indígena, por conta da adoção da ótica nativa como referencial. É verdade que a história sempre foi contada pelos vencedores, mas ao eleger novos atores, no caso os ameríndios, nos deparamos também com novos problemas que exigem a releitura dos documentos e a procura por novas fontes.


Para saber mais sobre o assunto.

CUNHA, Manuela Carneiro. História dos Índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

FERRONHA, António Luís (coordenador). O confronto do olhar: o encontro dos povos na época das navegações portuguesas - séculos XV e XVI. Lisboa, Caminho, 1991.

LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Del Priore, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997.

RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro, Zahar, 1996.

RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2004.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo, Martins Fontes, 1983.


Texto:

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.



4 comentários:

  1. Olá, tudo bem?

    Você tem um email de contato?
    O meu é alan@voice.com.br

    Abraços

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  2. Aqueles que quiserem entrar em contato mais rapidamente, fica a sugestão de seguir o blog, assim o meu e-mail fica disponibilizado aos leitores.
    Forte abraço.

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  3. Professor Fábio, seu texto trás uma visão muito interessante.
    Me dá lástima que poucos doutores no nosso território, adotem e incentivem a semiótica como linha de análise para o âmbito cultural.

    Li algo do C. Geertz, mas não conhecia o Peirce.

    Obrigada por compartilhar conosco.

    Carla Carvalho.

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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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