Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume out., Série 25/10, 2011, p.01-14.
Este artigo pretende demonstrar como a filosofia está presente no cinema e como esta tecnologia pode contribuir para o conhecimento, para a sabedoria, para o bem viver!
Afirmamos que o cinema é a representação da mente humana, uma vez que não há pensamentos sem imagens.
E a representação de tais pensamentos se encontra na estrutura básica e essencial do cinema, ou seja, o roteiro.
Várias teorias filosóficas serão apresentadas como instrumento da criação de um roteiro e, concomitantemente, da obra cinematográfica denominada de filme.
O método foi bibliográfico, com obras literárias a respeito do cinema e de filmes hollywoodianos, escritas por diversos filósofos contemporâneos.
Também diversos filmes foram pesquisados, aqueles aclamados pela opinião pública, em todos os gêneros: aventura, policial, ficção, drama, terror, etc.
Questões iniciais.
O que é o cinema?
Entretenimento, diversão, mundo da fantasia, mundo dos sonhos, mundo das ilusões? Não! O cinema camufla conceitos filosóficos.
Trata-se de uma reflexão da vida, da experiência humana neste grande universo em que vivemos.
Se escavarmos a estrutura básica e essencial do cinema, isto é, o roteiro, veremos a filosofia como instrumento da criação de histórias que atraem milhões de pessoas à grande sala escura.
São obras que disponibilizam resoluções, respostas e maneiras de ver a vida sob diferentes óticas.
Tal como a literatura, a música, o teatro, o cinema como a sétima arte do mundo contemporâneo, cumpre o seu papel de apresentar os pensamentos em imagens, em grandes imagens, que transportam o telespectador a uma projeção de sua própria existência.
Conforme afirmou Aristóteles, “Não há pensamento sem imagens”, o cinema é a representação da mente humana, tal como as máquinas, a representação do corpo humano.
O homem reproduz em seu meio aquilo que ele é.
O homem reproduz o que ele é.
Desde a máxima do Oráculo de Delfos, “Conhece-te a ti mesmo”[i], o homem vem conhecendo seu mundo e, concomitantemente, a si mesmo. Tenta, através dos recursos disponíveis em sua natureza, mapear sua existência, dando-lhe significados para o entendimento.
Não há mundo humano sem conhecimento, não há mundo humano sem o entendimento.
E por tratar-se de si, não há conhecimento sem antes conhecer-te a si mesmo.
O que é o homem?
Eis a pergunta que fazemos constantemente, cujas respostas nem sempre agradam e sim nos colocam sob novas perguntas, muitas sem respostas, mas perguntas que são como uma espécie de motor que nos movem neste fenômeno chamado vida!
Se levarmos em conta a história da humanidade, veremos que a experiência, colhida pelos sentidos, derrubou muitas visões que o homem tinha de sua própria existência.
Podemos citar, então, o geocentrismo derrubado pelo heliocentrismo, tirando o planeta Terra do centro do Universo – logo, o próprio homem; a versão bíblica da criação do mundo, no livro Gênesis, derrubada pela Evolução das Espécies de Charles Darwin, tirando-o do centro da criação divina; a consciência como faculdade suprema e máxima do homem pela existência do inconsciente humano descoberto por Sigmund Freud - tirando-o do centro de suas escolhas e decisões.
Também a natureza humana vista como “guerra de todos contra todos”[ii], apresentando um animal-homem que “é o lobo do homem”, segundo Thomas Hobbes. Interessante notar que Hobbes inspirou-se no próprio homem, como organismo vivo, para criar o Leviatã, um organismo artificial, cuja alma seria o poder soberano.
Faz uma analogia entre os súditos que tem autoridade do soberano “para instruir como para julgar o povo”, comparando-os aos “órgãos da fala num corpo natural”[iii]. Se retrocedermos ainda mais na História da Filosofia, veremos os primeiros pré-socráticos, como Tales de Mileto, que considerava a água como origem de todas as coisas.
Semelhança notável sem o estudo da medicina contemporânea que afirma que o corpo humano é composto de 80% de água, tal como o planeta Terra.
Um atlas de anatomia humana, que realça o sistema circulatório, assemelha-se a um atlas fluvial. Há semelhanças visuais bem específicas.
Platão apercebeu-se desta sabedoria interna, ao comparar as ações físicas do homem, isto é, sua ação no mundo sensível, com aquilo que este mesmo homem traz dentro de si (aqui vemos que todas as teorias a respeito do homem condizem com o que ele é; o leviatã é um organismo artificial, um reflexo do organismo natural – corpo do homem; em Tales a origem de tudo é a água e comparo com o atlas humano e o atlas fluvial da terra, e percebemos a semelhança da corrente sanguínea com a corrente dos rios; em Platão, o que pretende na república, acontece dentro do corpo humano.
O homem criou suas teorias e encontrou suas respostas quando reproduziu seu próprio corpo e sua própria mente, mesmo sem ter uma noção profunda de suas estruturas. Galileu não teria criado a teoria do heliocentrismo sem a luneta (uma ampliação do olho humano).
Charles Darwin não teria criado sua teoria da evolução das espécies sem o navio (uma ampliação do corpo humano) e pudesse viajar e observar os animais que sofriam mutações e evoluções.
Freud não teria descoberto o inconsciente humano sem o estudo dos sonhos, isto é, sem o conhecer-te a ti mesmo.
O Leviatã é o Estado criado segundo o corpo humano, com as hierarquias...
Ao pousar nossos olhos sobre a sociedade humana podemos perceber grande semelhança com o corpo humano.
Se na pólis seus cidadãos eram formados segundo suas próprias aptidões, como por exemplo, os marceneiros, os ferreiros, os pedreiros, os padeiros, os costureiros, os médicos, os filósofos, os governantes, os mercadores e etc., cada qual tinha um conhecimento específico.
Assim também encontramos no corpo humano células especializadas que desempenham suas funções segundo seus “próprios conhecimentos”; as células hepáticas, as células pancreáticas, as células cardíacas e pulmonares, as células nervosas e etc.
O homem representa no seu mundo externo o que há no seu mundo interno. “Conhece-te a ti mesmo”.
E citando o mito mais importante e conhecido da antiguidade, o Mito da Caverna de Platão, observaremos que os olhos, a visão de mundo, a percepção que seria tratada com maior acuidade pelos filósofos modernos, a epistemologia, condiz com o prisioneiro que se liberta das opiniões e crenças, como por exemplo o geocentrismo, Adão e Eva e a verdade revelada por Deus, sendo o homem responsável por todas as suas decisões (o livre-arbítrio) e ascende para o verdadeiro mundo iluminado pelo sol que, a princípio fere seus olhos – as repostas podem ser totalmente contrárias daquilo que pensamos, e nem sempre agradam - e que, com o tempo, adaptando-se com a luz, com a claridade, conhece o mundo sensível, tal como ele realmente é – as ciências decifraram grandes enigmas que pertubavam o homem, como por exemplo, o microscópio que o permitiu descobrir as bactérias e vírus causadores da maior parte das doenças, que antes eram vistas como castigo divino ou obra do diabo.
No mundo do conhecimento, do entendimento, a visão pode ser definida como a mais importante e essencial causa do conhecimento, seja no sentido conotativo, seja no sentido denotativo.
Ainda em Platão, podemos ver que o Demiurgo contempla e vê as idéias perfeitas e as reproduzem, fazendo cópias...
Na História da Filosofia Medieval, Agostinho de Hipona, afirmou: “Deus, com efeito, criou o mundo conforme a razão e, portanto, criou cada coisa conforme um modelo que ele próprio produziu com o seu pensamento, e as Idéias são justamente estes pensamentos-modelo de Deus, e como tais são a verdadeira realidade...”.
E na História da Filosofia Moderna, René Descartes colocará em dúvida todo o conhecimento humano para chegar numa única certeza: “penso, logo existo”; observamos sua visão filosófica quando compara as construções de uma cidade e percebe que aquelas que foram edificadas por vários engenheiros não são as mais belas e harmoniosas, ao contrário, aquela construção que foi edificada por um único arquiteto, produz toda a harmonia e beleza da própria construção. Lembremos também que ele cita os argumentos dos Erros dos Sentidos, Do Sono e Da Vigília e do Gênio Maligno, que nada mais são do que visões que compõem sua dúvida hiperbólica. Conforme Aristóteles, discípulo de Platão, não há “pensamento sem imagem”.
A arte é uma manifestação desta premissa.
Como por exemplo, “a palavra pessoa é de origem latina; para os gregos, pessoa era prósopon, que significa face, ao passo que persona, em latim, significa disfarce ou aparência exterior de um homem imitado no palco... como a máscara...”[iv]. Vemos as obras de artes, como a literatura, a pintura, a arquitetura, a música, o teatro, a televisão e o cinema como representações externas do homem interno.
Se antes Homero e Hesíodo cantavam seus poemas épicos, acionando na grande tela mental de seus ouvintes a história da humanidade, no decorrer dos tempos a arte imprimiu em nossa tela mental histórias que condizem com a nossa própria existência humana.
E o homem reproduziu essa façanha da mente humana em operar e mover com imagens: primeiramente com desenhos em cavernas; depois com o estilo da pintura em quadros e paredes; representando personagens no palco do teatro; registrando recortes de sua própria vida quando surgiu a câmera fotográfica; e contando diversas histórias quando surgiu a câmera televisiva.
E o cinema é ampliação da televisão.
Ambos são possíveis em nosso mundo porque o homem conseguiu imitar o olho humano, a visão humana.
Em outras palavras, representar exteriormente o que há nele próprio, imanente, ou seja, sua visão, seus olhos.
As câmeras que produzem filmes são os olhos artificiais, tais como o som, a fala, os ouvidos e a boca.
Tal tecnologia é responsável pela produção de filmes que nada mais são do representações de idéias e de pensamentos.
Citando Hobbes: “A Natureza (a arte com a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada de tal maneira, como em muitas outras coisas, pela arte do homem, que esta pode até mesmo criar um animal artificial. E sendo a vida um movimento de membros cujo início se verifica em alguma parte dos mesmos, por que não poderíamos dizer que todos os autômatos (artefatos que se movem por si mesmos por meio de molas e rodas, como faz um relógio) têm uma vida artificial? O que é, na realidade, um coração, senão uma mola; e os nervos, senão diversas fibras; e as articulações, senão várias rodas que dão movimento ao corpo inteiro, da maneira como o Artífice o propôs? A arte vai mais além, imitando essa obra racional que é a mais excelsa da Natureza: o homem”.[v]
E o que são os olhos artificiais senão o cinema?
“Conhecer-te a ti mesmo” continua sendo a máxima do Oráculo de Delfos em nossos dias atuais, onde o conhecimento passa a ser assistido numa grande obra cinematográfica, e o Oráculo de Delfos, uma grande sala escura com uma grande “telona”...
Concluindo.
“Alguns homens residem numa caverna, com uma entrada aberta para a luz... Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa elevação, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro... Veja também ao longo deste muro homens que transportam toda a espécie de objetos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados... Quando um dos transeuntes falasse, julgariam que era a voz das sombras...” [vi]
Tais prisioneiros acreditam que as sombras projetadas diante de si são a pura realidade, mas que na verdade e como o próprio mito exemplifica, trata-se de ilusões e concomitantemente de opiniões e crenças.
Há muitos que comparam o cinema com as projeções do fundo da caverna...
Trata-se de obras cinematográficas, filmes e, portanto, apenas histórias contadas que não tem nada haver com a realidade (com exceção de casos verídicos).
Tais como os contos de fadas, os relatos bíblicos e outros religiosos que encontramos nas diversas religiões.
No entanto, os mitos, aforismos e metáforas também são histórias contadas, fantasiosas, imaginárias, irrealistas, com elementos exagerados e que sabemos não existir na realidade cotidiana.
Porém, nas profundezas da sua simbologia encontramos verdades e fatos, bem como conhecimentos que nos dizem respeito e que nos transportam para o significado da existência humana.
Tal exemplo é o famoso Complexo de Édipo que Freud serviu-se para explicar a rivalidade do filho para com o pai.
E aqui nos deparamos com a interpretação, com a direção do olhar, com a educação do olhar que Platão expõe no Mito da Caverna.
O filósofo seria aquele que se desvencilha das algemas e dos grilhões que o prendem desde sua infância numa caverna sombria, para a luz da verdadeira realidade, para o campo aberto, para o horizonte imenso lá fora.
O sol, a luz que permite que se vejam as coisas, a luz que permite conhecer a verdade, mas que no princípio causa dor, sofrimento, que fere os olhos, mas que com o tempo surge à adaptação e a liberdade...
E não seriam as câmeras os olhos que filmam uma grande história, projetada numa grande tela, numa grande sala escura, que se passa por nossos próprios olhos ou então que condiciona ou educa o olhar para uma perspectiva única e singela?
Notemos, também, que as sombras são reflexos da realidade e as histórias, reflexos dos acontecimentos.
Desta maneira, podemos concluir que o cinema, embora interpretado como reflexo da realidade, a sombra de uma realidade específica, quando se trata de um filme sobre alguém ou alguma coisa, ou a sombra de uma idealização, de um sonho, de uma fantasia, não deixa de apresentar idéias e pensamentos que foram técnica e logicamente unificadas numa linha linear denominada de roteiro cinematográfico.
Mergulhar nas profundezas do cinema é deparar-se com o roteiro, onde a história e o filme estão, primeiramente, construído fisicamente.
Em outras palavras, deixou o mundo das idéias para ser um plano físico de produção – o mundo dos sentidos.
Aqui se encontra a diferença de Platão e Aristóteles, quando este afirma que só conhecemos através dos sentidos; que nossas idéias foram formadas pelos que nossos sentidos apreenderam do mundo físico.
E é isto que contém o roteiro: idéias que o roteirista formulou através dos seus sentidos.
Como todos os filósofos que representaram suas idéias através da realidade em que estavam inseridos!
O roteiro é uma estrutura.
É uma construção de idéias e pensamentos em imagens.
Foi Aristóteles o primeiro a afirmar que “o pensamento é impossível sem uma imagem”.
Se olharmos para dentro de nós mesmos e pensarmos em nossa vida, isto é, em algum fato passado ou mesmo num fato provável no futuro, observaremos que teremos uma imagem de nós mesmos fazendo alguma coisa.
Esta imagem pode ser uma fotografia, uma cena em movimento, colorida ou preto-e-branco.
A Programação Neurolinguística (PNL) expõe esse mecanismo e até ensina como alterá-lo para darmos mais significado em nossas relações internas e até mesmo modificá-las.
Assim, a estrutura do roteiro permite que todas as cenas, todas as imagens que serão filmadas, por mais diversas que sejam se tornem unificadas num todo.
E é aqui que a lógica surge para dar sustentação e coerência na história que será contada.
Os princípios de não-contradição e identidade, o terceiro excluído e causalidade, serão relevantes na seqüência visual das ações dos personagens, conduzindo o telespectador a vivenciar uma história.
Se um desses princípios for negligenciado ou até mesmo transgredido, toda a história, o todo, será ineficiente comprometendo a razão da própria obra.
É a lógica que torna um filme bom ou ruim.
Assim, e conforme Syd Field, um dos maiores roteiristas de Hollywood, “se o roteiro é uma história contada em imagens, então o que todas as histórias têm em comum? Um início, um meio e um fim, ainda que nem sempre nessa ordem”.[vii] São os três atos Shakespeariano: Ato I, Ato II e Ato III; Introdução, Desenvolvimento e Conclusão; Tese, Antítese e Síntese.
A linha linear do roteiro é composta de 03 atos, onde estão as três unidades de ação dramática definida por Aristóteles: tempo, espaço e ação.
Um filme hollywoodiano tem a duração, em média, de 120 minutos ou duas horas.
A história é ação, está inserida no tempo e no espaço.
Como a própria vida.
A semelhança do cinema com a vida é sutil.
No primeiro ato, o início, são apresentados os personagens, o local, o tempo e sua premissa dramática: o que o personagem irá vivenciar.
Podemos exemplificar melhor ao determinar o objetivo do personagem ou a idéia central da sua vida.
No Plot Point ou o “ponto de virada” trata-se de um evento, um obstáculo, uma dificuldade, algo que irá reverter a história em direção contrária.
Assim, se o personagem está para casar-se, este “ponto de virada” pode ser a descoberta de um passado sombrio de seu parceiro ou até mesmo a descoberta de uma traição.
O Ato II, o meio, é a confrontação.
Aqui reside a luta dos contrários de Heráclito: "Tudo se move","tudo escorre" (panta rhei), nada permanece imóvel e fixo, tudo muda e se transmuta, sem exceção”[viii]. A vida é uma constante batalha dos opostos, da vida e da morte, do bem e do mal, de alcançar os objetivos que tanto almejamos ou perder o interesse para tal, e tudo isto nos conduz à frente, ao futuro, à ação e reação, enfim, à resolução e à conclusão.
A cada obstáculo que o personagem sofre e luta, vence ou perde, enriquece sua vida através das mudanças tanto das circunstâncias quanto dele mesmo... ou não! "Não se pode descer duas vezes no mesmo rio...”[ix].
Reale e Antiseri comenta sobre esta famosa frase da seguinte maneira: “É claro o sentido desses fragmentos: o rio é "aparentemente" sempre o mesmo, mas,"na realidade", é constituído por águas sempre novas e diferentes, que sobrevém e se dispersam. Por isso, não se pode descer duas vezes na mesma água do rio, precisamente porque ao se descer pela segunda vez já se trata de outra água que sobreveio. E também porque nós próprios mudamos...”[x]
A história tem que ser lançada à frente.
Como o personagem irá resolver todas as questões que se apresentam?
Como vencerá todos os obstáculos e dificuldades?
"A guerra é mãe de todas as coisas e de todas as coisas é rainha."[xi] Joseph Campbell, o maior mitólogo do mundo, em sua obra O Poder do Mito, disse: “Zorba diz: Dificuldade? A vida é dificuldade”.[xii] Zorba é o personagem do romance de Nikos Kazantzaki, Zorba, o grego, interpretado no cinema por Anthony Quinn.
No filme A Volta do Todo Poderoso, com Morgan Freeman no papel de Deus, há uma cena que explica sabiamente tal conflito.
Em um restaurante está a esposa e os três filhos do “Noé de Nova York”.
Eles estão partindo, incrédulos de que Deus havia-lhe ordenado a construção de uma arca em plena Nova York e em pleno século XXI.
Aparece o garçom (Morgan Freeman) que nada mais é do que Deus disfarçado: “Se você pedir a Deus amor, você acha que Deus vai lhe dar amor? Deus lhe dará a oportunidade para amar! Se você pedir coragem, lhe dará a oportunidade de ser corajoso! Se pedir força, lhe dará a oportunidade de ser forte!” Onde é possível desenvolver o amor senão em ambiente de ódio? Pode a coragem ser desenvolvida em ambiente tranqüilo, calmo, sereno?
A vida teria mais valor diante da morte iminente?
"A guerra é mãe de todas as coisas e de todas as coisas é rainha.".
Outra analogia que podemos utilizar é o Apeíron de Anaximandro.
Se tomarmos a linha linear do roteiro, onde a história se mantém coesa, como um todo, podemos observar que esta unidade é o Tempo, o juiz que Anaximandro revela como aquele que decide qual dos opostos prevalecerá.
Anaximandro diz que os opostos e os contrários separaram-se do Todo, do Princípio, que ele denomina de Apeíron.
O fato sucedeu-se por que tais opostos tomaram forma determinada, individualizada e indiferenciada.
No decorrer do tempo da vida, tais qualidades estarão em constante guerra e conflito para, desta forma, existirem no mundo físico e real, no mundo determinado pelo tempo. Porém, apenas uma qualidade poderá existir.
Anaximandro é claro ao afirmar que a morte do oposto é o seu retorno ao Apeíron, de onde se separou e, por isso, se fez justiça.
O Ato II do roteiro revela toda esta teoria.
Ao ouvir Deus, a esposa do “Noé de Nova York” toma seus filhos e retorna para casa.
A discórdia e a dúvida presente em sua mente morre para dar lugar à certeza provinda de tal reflexão.
Os conflitos, os obstáculos, os sofrimentos, os problemas, enfim, a guerra dos contrários e dos opostos é o que move o filme, assim como a vida.
“O ser é e não pode não ser; o não-ser não é e não pode ser de modo nenhum”[xiii], Parmênides. No terceiro ato, resolução, vamos assistir como a história termina, se com final feliz ou não.
É no final que compreenderemos os motivos pelos quais o personagem teve que sofrer o que sofreu.
“O fim a tudo coroa”, conforme William Shakespeare.
As razões e causas dos acontecimentos servirão aos telespectadores como uma lição de vida.
Em duas horas de filme, aproximadamente, apreendemos uma vida inteira (a do personagem) e ganhamos as suas experiências, adquirimos seus conhecimentos, opções de resolutividades e de escolhas, que poderão ser útil ou não em determinado momento de nossas vidas. Identificamos com certos personagens.
Aprendemos mais sobre nós mesmos.
Refletimos. Conforme Sócrates: “Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”.
Na Folha de São Paulo de 06 de Julho de 2010, o psiquiatra Vitor Hugo Sambati Oliva, que pesquisa cinema e psiquiatria na Faculdade de Medicina da USP, afirmou que “a arte instiga a pessoa a uma reflexão e a ajuda a se conhecer melhor...”[xiv] O cinema, como a sétima maravilha do mundo, é esta arte! É uma reflexão da vida e da experiência e, portanto, dos pensamentos que são imagens.
Para saber mais sobre o assunto.
PLATÃO. A República. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda., 2000.
JAEGER, WERNER. Paidéia, A formação do Homem Grego. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 2003.
CAMPBELL, JOSEPH. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 27ª Edição, 2009.
FIELD, SYD. Manual do Roteiro. Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda, 1995.
CHAUI, MARILENA. Introdução à História da Filosofia – Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, Vol. I, 2ª Edição, 2004.
CHNAIDERMAN, MIRIAM. Loucura nas Telas. Jornal Folha de São Paulo: Terça-Feira, 06 de Julho de 2010, Caderno Equilíbrio.
HOBBES, THOMAS. Leviatã. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2009.
REALE, GIOVANNI. ANTISERI, DARIO. História da Filosofia 1: Filosofia Pagã Antiga. PAULUS, 2ª Edição, 2005.
Texto: Claudio Roberto Gavério.
Aluno da Licenciatura em Filosofia do Centro Universitário Claretiano.
Técnico em Enfermagem integrado ao CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas) na cidade de Santa Rita do Passa Quatro (SP).
[i] REALE, GIOVANNI. ANTISERI, DARIO. História da Filosofia 1: Filosofia Pagã Antiga. Paulus, 2005, p.95. [ii] HOBBES, THOMAS. Leviatã. São Paulo: Editora Martin Claret, 2009, p.95. [vi] PLATÃO. A República. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000, p.210. [vii] FIELD, SYD. Manual do Roteiro. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995, p.02. [viii] REALE, GIOVANNI. ANTISERI, DARIO. História da Filosofia 1: Filosofia Pagã Antiga. Paulus, 2005, p.22. [xii] CAMPBELL, JOSEPH. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 2009, p.68. [xiii] REALE, GIOVANNI. ANTISERI, DARIO. História da Filosofia 1: Filosofia Pagã Antiga. Paulus, 2005, p.33. [xiv] CHNAIDERMAN, MIRIAM. Loucura nas Telas. In: Jornal Folha de São Paulo: Terça-Feira, 06 de Julho de 2010, Caderno Equilíbrio, p.07.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Esteja a vontade para debater ideias e sugerir novos temas.
Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.