A escravidão no Brasil manteve-se por mais de 300 anos, um longo período em que a sociedade esteve circunscrita à relação entre senhores e escravos, mas que extrapolou, simultaneamente, esta polarização simplista.
O tráfico de escravos não se resumiu à importação direta da África, comportando movimentos internos de compra e venda; assim como o aproveitamento desta mão de obra não se resumiu à lavoura de cana-de-açúcar e ao contexto dos engenhos; convivendo inclusive com a mão de obra livre.
A discussão desta realidade complexa conduziu a novos estudos, temáticas e interpretações das fontes, originando trabalhos sobre a dinâmica interna da família escrava e os processos de diferenciação no interior da comunidade cativa.
Fornece exemplo valioso desta nova abordagem, entre outros, os estudos de João José Reis, Leila Mezan Algranti, Maria Helena Machado e Sílvia Lara.
Entretanto, independente destas novas abordagens, é interessante notar que existiram desigualdades no interior dos grupos de escravos que, certamente, alteraram as relações entre cativos e trabalhadores livres, entre negros e brancos, entre escravos e alforriados; compondo uma estrutura social mais complexa do que aquela que poderia ser imaginada.
A dinâmica interna.
A escravização dos prisioneiros de guerra pelos africanos, como no mundo antigo europeu, era muito comum quando os portugueses chegaram à África, fazia parte da cultura africana há séculos, compondo uma complexa rede de relações sociais e econômicas.
No Brasil, esta mão de obra foi utilizada timidamente no inicio, mas, rapidamente, passou a incorporar a dinâmica interna das relações já presentes no escravismo africano.
Senhores e escravos manipulavam e transigiam no sentido de obter a colaboração um do outro, cada qual utilizando seus objetivos, recursos e estratégias.
Os escravos negociavam mais do que lutavam abertamente contra o sistema, poucos a rigor assassinaram seus senhores ou participaram de rebeliões.
A dinâmica interna do trabalho escravo tinha uma ética particular, com valores morais independentes e uma concepção de mundo própria, com espaços de autonomia para o escravo.
É verdade que uma autonomia relativa, forjada nas relações entre senhores e escravos, ocupando as brechas do domínio senhorial. Em todo caso, permitindo uma certa mobilidade e diferenciação interna entre os cativos, criando, inclusive, tensões que auxiliavam no processo de dominação branca.
Como lembrou Silvia Lara, a presença estrutural da escravidão foi sempre apontada pela historiografia como o aspecto mais importante para caracterizar aquilo que distinguia o mundo colonial do metropolitano.
No entanto, as relações estabelecidas entre homens e mulheres, negros e mulatos, livres e libertos, criadoras de tensões sociais e políticas na sociedade colonial, permitem compreender a verdadeira dinâmica da escravidão, o sincretismo cultural, a decodificação da mentalidade dos sujeitos que viveram sob domínio português.
Casamento e diferenciação.
Dentre as brechas permitidas pela dinâmica interna do sistema escravista, o casamento talvez seja um dos mais emblemáticos exemplos de possibilidade de diferenciação entre os escravos.
As uniões matrimoniais, entre cativos, funcionavam como mecanismo de conquista da liberdade, sendo usadas, ao mesmo tempo, como instrumento de produção de desigualdades no interior das comunidades escravas e no interior das famílias.
Os proprietários aceitavam uniões consensuais entre escravos como uma ocorrência da ordem natural, muitas vezes incentivando que os cativos sacramentassem o casamento na igreja, reforçando a noção de família.
O casamento certamente não significava alforria, mas concedia alguns privilégios, impedia a separação da família que se formava, cujos membros não podiam ser vendidos separadamente, conferindo maior segurança.
Além disto, criava uma hierarquia interna que obedecia aos princípios da família nuclear clássica de natureza patriarcal, englobando laços que iam além do pai e da mãe, havendo uma relação entre primos, irmãos, tios, sobrinhos e avós; conferindo status e prestigio ao patriarca dentro da comunidade.
Pelo prisma do senhor, ao permitir a diferenciação entre os cativos, em troca ele ganhava a docilidade de seus escravos e sua submissão ao trabalho.
O senhor podia utilizar um escravo em trabalhos ligados aos comercio, deixando-o transitar livremente pelos centros urbanos, pois ele retornaria ao final do dia para o seio de sua família.
Neste sentido, os laços estabelecidos pelo casamento, diminuíam muito o risco de fugas.
Não obstante, enquanto sacramento da igreja católica, o matrimonio podia ser incentivado entre todos, mas, em alguns momentos, era desencorajado.
No que diz respeito às uniões consensuais entre brancos e libertos e seus descendentes, o casamento produzia mais que um simples parentesco, determinava a formação de parentelas mistas.
Ainda que a condição de parente pudesse igualar seus membros, as diferenças sociais entre cativos, forros, administrados livres, assim como entre pretos, pardos ou mulatos não eram imperceptíveis aos próprios, criando um foco de tensão entre pais e filhos, por exemplo.
Daí não ser incomum os esforços de pais, irmãos, mães e tios para evitar uniões matrimoniais indesejadas, não apenas na elite branca, mas inclusive na população pobre e livre, que só aparentemente não tinha nada a ganhar ou a perder.
Destarte, mesmo os laços de parentesco estabelecidos pelo casamento entre escravos e negros livres alargavam os horizontes dos cativos.
Para descendentes de africanos, possuir parentes livres reduzia a dependência, tanto psicológica como física, com relação ao senhor, simbolizando uma diferenciação que representava certa liberdade.
A verdade é que, em meio aos açoites, correntes, troncos e chibatas; a escravidão era estabelecida sobre uma base dialética dinâmica.
Os cativos encontravam espaços por onde se movimentar e criar diferenciações no interior de suas comunidades, como presta testemunho a analise das brechas aproveitadas pelos laços criados pelo casamento.
Relações complexas.
A complexidade das relações estabelecidas dentro do sistema escravista, mesmo através de uma análise pontual, sucinta e modesta dentro do alcance das possibilidades deste momento; permitem entender que a circulação de escravos e as formas de trabalho, observadas no período colonial, foram diversificadas.
Cativos, administrados e trabalhadores livres conviveram em um ambiente que comportou tensões e relações harmoniosas; rígido e, paradoxalmente, repleto de brechas por todos os lados, exploradas e aproveitadas para facilitar a convivência e permitir maior segurança.
O entendimento desta rica dinâmica, ao facilitar a visualização do quadro mental colonial, conduz ao descortinar da formação do sincretismo da cultura brasileira, tributária, entre outros fatores, também das relações estabelecidas dentro do âmbito do trafico de escravos e da utilização da mão de obra africana nas mais diversas atividades, assim como em decorrência das inter-relações estabelecidas por conta destes encontros e desencontros entre pessoas.
Para saber mais sobre o assunto:
DAVIDSON, Basil. A descoberta do passado de África. Lisboa, Sá da Costa, 1978.
LARA, Silvia H. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Tese de Livre Docência. Campinas: UNICAMP, 2004.
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SCHLEUMER, Fabiana et. al. Luzes e sombras sobre a colônia. São Paulo: Humanitas, 1998.
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Texto:
NO PRIMEIRO PARAGRAFO, SE EU NÃO ME ENGANO ESTA ESCRITO ERRADO , ESTA ESCRITO NÃO DE OBRA ; SERA QUE NÃO SERIA MÃO DE OBRA ?
ResponderExcluirRealmente vc tinha razão, agradeço o alerta. Já está corrigido. A participação dos leitores é essencial para aprimorar os textos, como escrevo e faço a revisão, sempre passam erros.
ResponderExcluirForte abraço.
Prof. Fábio, sou historiadora, presidente do Instituto de Pesquisa Histórica Regional (IPHR) e encontrei seu blog e este post em particular eu adorei. Gosto de estudos neste segmento, parabéns, irei acompanhar sua página a partir de agora. Abraços
ResponderExcluirAgradeço imensamente a colega, comentários tão gentis estimulam a continuidade do ritmo do blog.
ResponderExcluirForte abraço!
Gostaria de reproduzir alguns de seus textos em meu blog sobre história. Obviamente com os devidos créditos. Posso?
ResponderExcluirOlá Igor, agradeço imensamente o oferecimento, mas requisitei ao Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), órgão estatal ligado ao governo federal, o registro dos textos e, em breve, inclusive, teremos um ISSN para o Blog. Assim, por lei, infelizmente, os textos do blog só podem constar no blog que está registrado no IBICT. Portanto, agradecerei se publicasse, ao invés dos textos na integra, um resumo com o link para acessar o texto no meu blog.
ResponderExcluirAproveito para agradecer o interesse e desejo boas leituras.
Forte Abraço.
Professor, qual o seu e-mail? Gostaria que me ajudasse a sanar algumas dúvidas acerca de: circularidade cultural, mudança de escala, história da leitura e sobre o conceito de História cultural de Huizinga.
ResponderExcluirSerá um prazer ajudar, meu e-mail está aqui no blog, nas orientações para colaborações.
ResponderExcluirForte abraço.