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Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

A banalidade da preocupação estética contemporânea: reflexões contra a massificação da busca pela felicidade no corpo perfeito.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume abr., Série 13/04, 2011, p.01-07.


À velha questão filosófica “Quem sou? De onde venho? Para onde vou?”, alguém respondeu, “Sou fulano. Venho de casa. Vou para casa”.
Entre frívola e cruel, a ironia, dá no que pensar, não fosse seu sentido etimológico: - do grego eironeia - interrogação, questionamento sobre si mesmo, a vida, a sociedade e a ordem do mundo.
Penso na coisa quando leio os jornais.
Longe de qualquer interpretação metafísica, fico mesmo é com a sensação concreta de que estamos reduzidos a um movimento pendular, movimento que é defesa contra o sofrimento e saída frente ao espetáculo das ruas.
O mundo contemporâneo, no entanto, não pensa com esta profundidade, estamos mergulhados na frivolidade da estética.
Talvez, por isto, pensemos mais na beleza do que na feiúra, sem nos preocupar com o que de fato poderia conduzir a felicidade.


A feiúra está presente entre nós?
A feiúra é universal, onipresente.
Ninguém ousou escrever sua história, nem aquela da solidão e da dor que são suas conseqüências mais imediatas.
Há séculos, os feios servem de bode expiatório às sociedades muito seguras de suas verdades ou do discurso de suas elites, sempre dispostas a determinar o modelo ideal de “patricinhas & mauricinhos”, “peruas & marombeiros”.
Com a supremacia da imagem na vida do homem moderno, os anos 90 continuam a instaurar a tirania da perfeição física.
Hoje, todos querem ser sadios, magros, jovens.
Grassa uma verdadeira lipofobia.
Todos parecem querer participar da sinfonia do corpo magnífico quase que atualizando as intolerantes teses estéticas dos nazistas.
Na outra ponta, criaturas como madre Teresa de Calcutá conheciam de perto os horrores do sofrimento físico.
Em uma entrevista, ela dizia que o trágico da “feiúra” de um leproso, era a sua solidão, o fato de ser indesejável, não amado, rejeitado.
Que se podia fazer tudo por um corpo em sofrimento, mas nada por esse “outro” sofrimento feito de negação.
Anônimos, os que não são belos, simplesmente recusam seus corpos.
Tanto mais quanto vivemos hoje a supremacia da aparência.


A massificação da estética.
A fotografia, o filme, a televisão e o espelho das academias dão ao homem moderno o conhecimento objetivo de sua própria imagem.
Mas, também, a forma subjetiva que ele deve ter aos olhos de seus semelhantes.
Em uma sociedade de consumo, a estética aparece como motor do bom desenvolvimento da existência.
O hábito não faz o monge, mas quase...
A feiúra é vivida como um drama.
Daí a multiplicação de fábricas de “beleza” cujo pior fruto é a clínica de cirurgia plástica milagrosa.
Os pagamentos a perder de vista, com “pequenos juros de mercado”, parecem garantir, graças às próteses, a constituição de um novo corpo: formal, mecânico, teatral.
Corpo que é a efígie do desejo moderno, desejo derrisório de uma perpétua troca das peças que envelhecem: de nádegas às coxas e panturrilhas.
 Essa relação com o corpo implica em opiniões contraditórias.
Os adversários da cirurgia estética recusam-se em acordar ao corpo uma importância que valha a pena modificar.
O que conta é a alma ou o espírito.
O desejo de modificação torna-se para alguns até mesmo suspeito.
Os partidários, por sua vez, acreditam que a forma corporal é uma realidade cujo papel na vida cotidiana está longe de ser pequeno.
A cirurgia, aqui, é um elemento importante para o equilíbrio psicológico e seus desdobramentos: o casamento feliz, o sucesso profissional!
As pessoas pouco percebem que a chave de um bom relacionamento com a vida, passa por certa dose de inteligência, carinho e alegria.
Pelo menos é o que afirmam os especialistas!
O tal equilíbrio passa, também, por uma constatação à qual é dada pouca atenção: o culto a beleza, e exclusivamente a ela, é perigoso.
Estando intimamente ligado aquele da juventude e do efêmero, torna-se um desafio ao tempo, e mais dramático, ao homem ele mesmo.
Pior é quando um modelo de beleza nosso, mestiço, passa a ser ameaçado pelo que vem de fora.
Entre nós, aumenta assustadoramente o número de mulheres que opta pela imagem da “Barbie” americana, dona de volumosos seios de plástico, cabeleiras louras falsas e lábios de Pato-Donald.
No outro extremo encontramos a androginia mais absoluta, onde cada um quer ter as formas do outro, com todas as suas conseqüências.
Inclusive aquela terrível, de que quando nossas preocupações físicas tomam a frente, elas significam o medo e a recusa dos que não são como nós.
Mal se percebe que nossa sociedade valoriza não a identidade, mas a identificação.
Os pequenos defeitos, que outrora davam charme a uma mulher, estão em baixa.
Ora o Brasil é um país mestiço.
Nossos corpos são o resultado de uma longa história biológica onde se misturam índios, negros, brancos de vária procedência e amarelos.
O resultado foram ancas, cabelos crespos, a maneira ondulante de andar e o que Gilberto Freyre chamava de “morenidade”.
É preciso proteger e libertar nossa sociedade do que ela pode fazer com ela mesma.
É preciso proteger nela a sua integridade, a sua identidade subjetiva e genealógica, a dignidade de suas formas e das suas cores originais contra o materialismo e o desmantelamento do corpo.
Xô Barbies, próteses, anabolizantes, anoréxicas e oxigenadas!
Abaixo a insistência em fabricar mulheres sem marcas, nem diferenças capazes de individualizá-las.
Num país onde são tantas as variáveis corporais, onde graças e desgraças são distribuídas de acordo com as diversas heranças biológicas e sociais, a imposição de um modelo “perua” importada só é bom quando se trata de veículo de passeio sobre quatro rodas!


A estética como fuga da realidade cotidiana.
Que vivemos nossas guerras particulares não há dúvida.
Que nossas cidades estão em farrapos, tampouco.
Todos conhecemos o rol das violências pequenas, médias e grandes nas quais vamos nos enterrando, ao ir e vir de casa.
Regressar, física e psicologicamente ileso, já é um milagre.
Mas volto à resposta acima para pensar que frente às grandes questões que atravessam nossa sociedade, esta tem retrucado com ironia: ou seja, com o sentimento de abdicar da realidade em favor de uma piada, de alguma coisa invisível, de um profundo relativismo.
Sempre que se aproximam as eleições, as grandes questões vão voltam a constituir plataforma eleitoral.
É tempo de ouvir falar de combate à violência, à corrupção, aos menores cheirando cola, aos seqüestros, à miséria.
Mas a interrogação colocada pela ironia é: o que vou fazer, além de me chamar fulano e de ir e vir de casa?
As pessoas se preocupam mais com sua aparência física do que com as questões que realmente importam.
Houve um tempo em que a sociedade brasileira esteve extremamente mobilizada.
Nos anos 60, o arrocho salarial uniu, na mesma frente, os sindicatos e a classe média.
Entre 1979 e 1985, diferentes setores se organizaram, exigindo a redemocratização do país.
Organizações de bairro, movimentos populares, associações e comitês, na cidade e no campo, pressionaram muitas vezes, com sucesso, por tarifas sociais de água e esgoto.
Saúde e ensino estavam no centro do debate, lógico.
Clubes de Mães, Pastorais e Grupos de Mulheres Trabalhadoras denunciaram a precariedade ou ausência dos serviços coletivos municipais.
Sem falar dos cara-pintadas e do impeachment de Collor.
Hoje, contudo, ficamos na ironia.
Talvez, como remédio para a decepção ou como antídoto ao desencantamento.
Ficamos no “faz parte”.
Só que isto não basta.
É preciso transformar a ironia em consciência, deixar de lado o eu para se preocupar com o nós.
Nem que seja para constatar que do jeito que estamos, somos nada.
O que implica abandonar as questões estéticas.
Mas, fazendo isto, é possível ser feliz?


É possível ser feliz sem se preocupar com a beleza?
A felicidade é possível?
Para o filósofo Aristóteles, ela era o “soberano bem”.
O iluminista Voltaire retrucava, dizendo que tanto “o soberano bem quanto o soberano mal eram quimeras”.
O cristianismo promete o bem para depois: no além.
Aqui, só a caridade pode servir como garantia para um duplo benefício: o prazer imediato e a salvação eterna.
O pessimista Arthur Schopenhauer, autor do opúsculo consagrado à Arte de ser feliz, chorou o suicídio de seus irmãos e assistiu a própria mãe tomar o partido do amante contra ele.
Ainda assim, preferiu deixar “cinqüenta regras de vida” suscetíveis de tornar o mundo um lugar menos difícil.
Seu conselho?
Não alimentar ilusões e gerir a vida evitando sofrimentos aos outros e a si próprio.
A regra número dois aconselhava a fugir da inveja como o diabo da cruz.
A quarenta e oito, bastar-se a si mesmo.
Resumindo o que nos diz esse que foi uma os maiores pensadores da primeira metade do século XIX, a arte de ser feliz repousa numa lição bem simples: contentar-se com o que se tem, rejeitar os desejos inúteis e satisfazer-se com as coisas simples da vida.
Em suma, o que hoje poderíamos tomar como abandonar a busca pela perfeição estética, concentrar-se na vida.
Um raio de sol inundando o quarto pela manhã, por exemplo, fazia a felicidade de um dos conhecidos personagens da escritora Virgínia Woolf.
A pergunta de Schopenhauer está na moda.
As editoras não têm mãos a medir com títulos como A arte da felicidade ou Platão, Prozac não.
Elas, contudo, não nos fazem pensar em como essa idéia de felicidade deixou para traz o gosto da simplicidade, a temperança, os pequenos “nada” que fazem a vida cotidiana.
Um banho de olhos fechados, a fruta no pé, o barulho da chuva.
Nossa cultura, hoje, vive outro modelo.
Um modelo baseado na realização a qualquer preço, na busca ilimitada de prazeres, na exaltação dos sentidos.
A felicidade tem forma, cor e cheiro de tudo que é veloz, raro e trepidante.
Segundo filósofos como Michel Onfray, o modelo hedonista da felicidade individual e material possui várias versões.
Uma versão erótica do tipo os prazeres da carne, da cama à mesa.
Uma versão aventureira e esportiva do tipo “a escalada do Everest de patins”, uma romanesca do gênero, “sua vida é uma novela”, enfim, vale tudo para viver a euforia perpétua e o dever de ser feliz!
Outra tradução do hedonismo moderno, segundo o autor, é o utilitarismo: o bem estar material, o conforto, a expansão contínua de coisas, o cuidado de si.
Nada de “bem aventurados os pobres, pois deles será o reino de Deus”.  


Concluindo.
Depois da Segunda Guerra, o sonho era ter um carro, filhos formados e churrasqueira na casinha de campo.
Nos anos 70, tudo isso parecia repetitivo e excessivamente burguês.
O melhor seria a vida libertária, a evasão, o “peace and love”.
Trinta anos depois, os sonhos coletivos de revolução social desapareceram, dando lugar a sede de viver: culto ao corpo, ao sexo, ao lazer.
O sistema integrou tais valores em modelos de consumo enquanto a mídia bombardeia a mensagem ditatorial: sejam felizes.
A ordem cobre de críticas quem não o é.
Depois disso tudo, o século XXI vai ter que reinventar a felicidade.
Ou ficar com a conclusão de Schopenhauer: “não temam a felicidade. Ela não existe”.  


Para saber mais sobre o assunto.
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo, Condição Feminina, Maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. São Paulo: UNESP, 2009.
DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher: uma pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: SENAC, 2001.
DEL PRIORE, Mary. “Cultura, representações e práticas sociais: a revolução do espírito” In: José Jobson Arruda & Luís Adão da Fonseca. (Org.). Brasil-Portugal: História, agenda para o milênio. São Paulo: Fapesp / EDUSC / ICCTI Portugal, 2001, p. 509-522.
DEL PRIORE, Mary. História do amor. São Paulo: Contexto: 2006.
DEL PRIORE, Mary. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2002.
DEL PRIORE, Mary (org.). História do Esporte no Brasil do Império aos nossos dias. São Paulo: UNESP, 2009.
DEL PRIORE, Mary. L'Histoire de la vie privée dans le monde luso-americain: l'exercice d'une nouvelle approche? In : Cahiers de L'histoire Du Brésil. Paris : Sorbonne, 2000.


Texto: Profa. Dra. Mary Del Priore.
Doutora em História Social pela USP, com Pós-Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris/França).
Lecionou História do Brasil Colonial nos Departamentos de História da USP e da PUC/RJ.
Autora de mais de cinqüenta livros e atualmente professora do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO/NITERÓI.
Membro do Conselho Editorial de "Para entender a história..." desde 14/01/2011.

Um comentário:

  1. Reflexivo, mas de forma argumentativa, pois apesar de concordar com os valores aí impostos, nota-se que no próprio texto é exposto modelos de felicidade, que na minha opinião, cabe a cada um achar a sua.
    "viver e aprender"

    Apesar que uma mera opinião, não satisfará uma concepção formada e minuciosamente planejada no passado para ter efeito manipulador.

    O mundo tornou-se assim, se não aprender lidar com os problemas será atropelado por eles, cada um tem a responsabilidade de se conscientizar, apesar que digo de forma egocêntrica, pois nem todos tem a oportunidade de ter essa escolha.

    Lá estou eu viajando, desculpe texto débil e o anonimato, mas quis expressar opinião.

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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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