Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume abr., Série 20/04, 2011, p.01-04.
“Memória” é a faculdade de lembrar e conservar estados de consciência passados.
Para santo Agostinho, a coisa começa com uma frase: « eu me lembro de mim mesmo ».
Penso na relação entre memória e identidade para falar das igrejas mineiras incendiadas e nem sempre cuidadas adequadamente.
Para lembrar que estamos perdendo a memória e que precisamos cuidar melhor do patrimônio histórico brasileiro.
A questão da memória.
Sabemos que a memória é vida.
Vida sempre carregada pelos grupos humanos e nesse sentido, em permanente evolução.
Se a história é a reconstrução incompleta do que “não é mais”, a memória é um fenômeno sempre atual, enraizado num gesto, num perfume, num som.
Lugares de memória, por sua vez, são aqueles onde se cruzam as memórias pessoais e familiares com as da nação: uma bandeira, um monumento, uma igreja, uma imagem.
Reconstrói-se, graças a eles, a representação que um povo faz de si mesmo.
Diferentes de nós, que ainda não sabemos guardar nossa memória, há sociedades que não sabem mais o que conservar.
Elas acabam embarcando num processo de acumulação pela acumulação.
É o que se vê em certos museus americanos onde a obsessão de consumo se traduz no acúmulo de peças díspares.
More and more é o lema de alguns deles, onde a figura de cera de Leonardo da Vinci ombreia com o Mickey.
Onde se mistura a ficção e o real.
Esta bulimia de acumulação sem sentido dá nos parques temáticos, nas Disneys da vida...
Estamos longe das teses que nos ensinam a desenvolver afeto por aquilo que é herança do passado.
Esquecemos aí o lema “quanto melhor conheço, mais gosto”.
Patrimônio histórico.
Apesar dos desastres e do descaso governamental, um movimento comemorativo parece nos envolver: centenários, novas rotas turísticas, festas e manifestações locais enchem a agenda.
É a utilização comercial do patrimônio histórico, ainda muito insipiente e subvalorizada entre nós brasileiros.
Essa « comemoratividade » caminha ao lado de um fenômeno sem precedentes.
Em todas as regiões se multiplicam os museus, conserva-se todo o tipo de objeto, recolhe-se um documento aos arquivos.
Destruir passou a ser proibido.
Luta-se para conservar não apenas os grandes monumentos, mas testemunhos antes não valorizados de nosso passado: receitas de bolo, flores de papel, um ponto de bordado.
O lema devia ser “não toquem no meu passado”.
O ser humano tem instinto de colecionismo.
Todos temos uma “canastra da Emília dentro de nós”, canastra, diga-se, capaz de permitir a evocação de sentimentos.
Canastra que é parte da luta contra o esquecimento e a morte.
Nosso patrimônio – ou que sobrou dele - dá lógica e sentido a tudo isto.
Para que ele seja memória viva e não memória do além, é bom começar a protestar contra o seu desaparecimento.
Concluindo.
A terra onde canta o sabiá, será cordial, como descreve o poeta?
Não. Somos uma sociedade em guerra.
Não nos damos conta, mas certa mobilização nos assoma a cada vez que saímos de casa. Vamos para um combate; uma luta em diferentes níveis.
Não é a mesma que tem seu palco na Palestina ou na Macedônia.
Mas, ainda assim, uma luta... precisamos lutar pela preservação do nosso passado.
É preciso votar pensando em quem tiver plataformas voltadas para o passado e não para o futuro.
Para dirimir nossas guerras internas que acontecem agora, antes é necessário entender quem somos.
Para dirimir o caos, antes de olhar para o futuro, precisamos preservar nosso patrimônio histórico, ele é nossa memória.
Talvez assim possamos ouvir novamente cantar o sabiá.
Para saber mais sobre o assunto.
DEL PRIORE, Mary. “A Biblioteca Jesuitica 'Les Fontaines': Um Paraiso A Beira da Floresta” In: Revista de História, n. 136. São Paulo: USP, 1997, p. 169-171.
DEL PRIORE, Mary. “A Bibliotheque Nationale de Paris” In: Revista de História, n. 127. São Paulo: USP, 1992, p. 235-238.
DEL PRIORE, Mary (Org.). Catálogo Estampas do Rio - A cidade nas décadas de 1940 a 1960. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
DEL PRIORE, Mary. “Culture materielle et quotidien dans le journal d'un maitre de moulin a sucre (Les stratégies du métissage)” In: Bernard Lavellé. (Org.). Transgressions et stratégies du métissage en Amérique Coloniale. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, v. 1, p. 75-95.
DEL PRIORE, Mary & NEVES, M. F. Documentos Para A Historia do Brasil. de Cabral Aos Nossos Dias. São Paulo: Scipione, 1996.
DEL PRIORE, Mary. “Memória e História de Mulheres: uma biblioteca feminista” In: Revista de História, n. 138. São Paulo: USP, 1998, p. 175-177.
Texto: Profa. Dra. Mary Del Priore.
Doutora em História Social pela USP, com Pós-Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris/França).
Lecionou História do Brasil Colonial nos Departamentos de História da USP e da PUC/RJ.
Autora de mais de cinqüenta livros e atualmente professora do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO/NITERÓI.
Membro do Conselho Editorial de "Para entender a história..." desde 14/01/2011.
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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
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