Para
entender a história... ISSN
2179-4111. Ano 5, Volume jul., Série 07/07, 2014, p.01-10.
Prof. Odir Fontoura
Graduado em História pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Mestrando em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Professor do Cursinho
Pré-Vestibular Esperança Popular em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
“As pessoas tem que
ter mais fé e acreditar naquilo que deixaram pra nós. É um legado nosso que
deixaram, é uma cultura (...) das benzedeiras que existiram e ainda existem.
Qualquer que seja a religião, o que importa é que acreditem, religião, seita,
filosofia de vida, o que importa é que acreditem. O valor é o amor a todos
(...) Que acreditem naqueles que tem o dom de aliviar a dor dos outros”
(Eva Cunha, 2011, nora de Vó Celíria).
Introdução.
Este
artigo tem por objetivo mapear e analisar as percepções da atualidade das
crenças e práticas das benzedeiras do passado através de entrevistas com os
descendentes da falecida Vó Celíria, benzedeira de Tapes, cidade interiorana do
Rio Grande do Sul. Serão tratadas as memórias dos entrevistados no que toca às
origens do culto das benzedeiras, a questão do sincretismo, da figura social da
benzedeira, da concepção de catolicismo popular e oficial, bem como situar e
percepção e mentalidade de períodos históricos, tais como as noções
tradicionais, modernas e pós-modernas.
Os
depoimentos serão analisados em conjunto à pesquisa bibliográfica, verificando
os encontros e discrepâncias das informações coletadas.
Sobre a experiência da história
oral.
Não é com dificuldade que o trabalho em
questão pauta-se na concepção de que o ser humano é um ser complexo por si só,
formado de várias esferas que devem ser analisadas em sua devida complexidade e
heterogeneidade.
É um animal cuja complexidade vai além
de questões econômicas, sociais ou políticas.
(...) Temos constantemente o homem
‘explicado’, à luz da ciência, na dimensão de manifestação singular de fenômeno
físico, quando na verdade isso, ao contrário de fazer-nos conhecer o homem, o
reduz a uma faceta empobrecida de sua especificidade de ser social. Todo estudo
meramente descritivo, principalmente os que se esgotam nas chamadas ‘análises
estruturais’, incorre nesse mesmo falseamento da realidade humana (BRANDÃO,
2004, p. 19).
Ainda
que se trate de uma compilação de memórias individuais através dos depoimentos
acerca de uma personalidade específica, do sujeito Vó Celíria, o objetivo das
entrevistas será o de exemplificar, manifestar e materializar um cosmos devidamente organizado e
compartilhado que ao longo de algumas gerações, permanece relativamente
estável. Partindo de uma análise do sujeito em questão, microcósmico, tem-se
por objetivo o resultado de uma análise, por conseqüência, também de um âmbito
maior e macrocósmico.
Como
já dissera Macedo (1989, p. 7), “(...)
Estaremos interessados em compreender o fenômeno religioso em termos da
dinâmica da sociedade e da cultura, e não em termos individuais, psicológicos”.
Além
disso, as entrevistas confrontar-se-ão com pesquisas bibliográficas,
explicitando dessa forma os pontos de encontros, justaposições até
possibilidades de discrepâncias das memórias individuais e coletivas comparadas
às concepções acadêmicas e historiográficas sobre o fenômeno das benzedeiras.
Como
fundamento teórico para a pesquisa, utiliza-se uma metodologia fundamentada nos
princípios da história oral, assumindo que frente à necessidade de traduzir uma
mentalidade organizada a partir de depoimentos e testemunhos sobre um objeto
específico – o ofício das benzedeiras –, acreditamos ser essa concepção
metodológica a mais apropriada ao estudo do caso. Para Rosa (2007, p. 1), “A história oral aparece como via
privilegiada da humanização da História, apesar dos contextos inibidores quer
de natureza política, quer acadêmica”.
Ainda
assim, também cabe ressaltar que a escolha de uma abordagem apoiada na história
oral corresponde, satisfatoriamente, a complexidade de uma problemática
relacionada a dificuldade de “recortar” a história a partir de testemunhos:
Ao passo que a história oral não pode nunca ser ‘compartimento’ da
história, propriamente; é uma técnica que, presumivelmente, pode ser utilizada
em qualquer ramo da disciplina. Sua denominação também sugere – na verdade
requer – uma área de trabalho diferenciada, quando de fato, para quem quer que
tenha coletado evidência oral em campo, durante qualquer espaço de tempo, é
evidente que compilar fontes orais é uma atividade que aponta para a conexão
existente entre todos os aspectos da história e não para as divisões entre
eles. (LEVI, 200, p. 272).
Entretanto, partindo dos
testemunhos orais sobre os ofícios das benzedeiras em si, entende-se que esse
último pertencerá, de certa forma, a uma esfera macro-cósmica partindo do ponto
em que queremos traduzi-lo a partir das memórias frente a uma benzedeira em
específico, constituindo então uma esfera micro-cósmica: Vó Celíria. Serão os
depoimentos que giram em torno dessa importante figura, fundamental para
compreender um processo histórico de âmbito maior, ligado ao mundo social,
mental e cultural.
Logo, “a pesquisa micro-histórica tende a envolver-se cada vez mais com o
privado, o pessoal, o vivido (...). Mostra ainda mais a representação de
indivíduos, pequenos grupos e suas identidades, delimitadas experiências de
vida, do que propriamente a ação desses indivíduos e grupos. Assim, cada objeto
micro-histórico é sempre a possibilidade de si mesmo” (ROSA, 2007, p. 7).
Sobre os conceitos de magia,
religião, memória e rito.
Para
Berger (1985), o conceito de “religião”
em si está intrinsecamente ligado a um papel legitimador e organizador do
cosmos.
Entende-se
a religião como um instrumento de identificação que além de individual também é
social.
Enquanto
que o caos pressupõe anomia (ausência de regras), um cosmos devidamente
estabelecido compõe uma heteronomia – regras estabelecidas que compõe uma
organização.
A
religião por si só surge como consequência, compondo um importante e complexo
quadro tanto individual quanto social que serve para uma “cosmificação” do
mundo, ou seja, tem o papel de situar o homem no seu lugar no universo.
Para
o este autor, “A religião é a ousada
tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo” (BERGER,
1985, p. 41).
Portanto,
uma vez o sacerdote católico é imbuído de um papel ordenador, organizador e
esclarecedor, a atribuição da benzedeira como um tipo de sacerdotisa periférica
será o de empreender mudanças e transformações da realidade visível que
geralmente manifesta-se através das curas. A este processo aplicaremos o
conceito de “magia”.
Para
Cinira (1989, p. 22), “Na religião, o
indivíduo é considerado subordinado à vontade dos seres sobrenaturais. Na
magia, considera-se que, sob certas condições, o indivíduo pode dominar e
controlar as forças sobrenaturais.” Este indivíduo será a benzedeira, que
com o auxílio das divindades católicas (Deus, Jesus Cristo, Nossa Senhora e os
santos) é que empreenderá essas mudanças.
Como
já assumiu-se que o pensamento mágico é essencialmente ordenador e organizador,
cabe aqui estender que essas modificações, dentro da mentalidade da benzedeira
ou daqueles que passam por suas curas, não constituem algo “sobrenatural” na
medida em que “sobre” pressupõe estar acima do “natural” ou, então, da
“natureza”.
A
operação da benzedura faz parte desse cosmos organizado, está dentro do
processo, não rompe com qualquer limitação cosmogônica.
“A
atuação do mago não é um atuação contra a natureza. baseia-se no princípio de
que há uma regularidade no mundo e é possível descobri-la” (MACEDO, 1989, p.
136).
Ainda
frente a Macedo (1989) o pensamento mágico pressupõe conexões simbólicas que
agem todo o tempo, bem como uma visão de que tudo é influenciável e está, de
uma ou de outra forma, interligado.
Eis
a explicação cosmológica para a eficácia da interferência das benzeduras:
através das rezas e das orações, a benzedeira então impõe sua capacidade de
interferir no cosmos.
Já
Nogueira (2004) por si só já deixa claro a dificuldade epistemológica de
estabelecer o conceito de magia por estar, este, muito próximo à definição
religiosa.
Para
o autor, são fenômenos praticamente indissociáveis.
A
partir do momento em que a benzedeira nunca atuará fora de um âmbito religioso
– seja através das referências às divindades cristãs nas orações ou nos gestos
sagrados – a concepção de Nogueira (2004) também corrobora e faz sentido:
Magia e religião se miscigenam e se
interpretam, impondo, em última instância, uma estrutura dialética sem a qual
não existiria o conjunto sacro-profano, uma ordem moral – um ethos coletivo – e
uma existência simbólico-imaginária onde se inscreve a possibilidade de
superação mental de uma realidade social. Em resumo, todo sistema religioso
funciona em conjunto ou não funciona. (NOGUEIRA, 2004, pg. 64).
Assim
como Magnani (1984), se descarta uma visão evolutiva em que coloca o pensamento
mágico como anterior a um processo religioso e até “positivo” ou intelectual da
humanidade.
Acredita-se
que existem elementos de mentalidade e aplicação simbólica – tais como as
representações totêmicas, por exemplo – que permanecem nessas diferentes
esferas, e nos chegam até hoje, negligenciando então, uma possibilidade gradualmente
evolutiva de crenças mágico-religiosas avançando para uma esfera intelectual e
científica.
Ainda
para o mesmo autor (1984, p. 130), “Os
antropólogos vão mostrar que, na base do pensamento primitivo como do
pensamento científico, a operação mental é a mesma. O pensamento mágico
simplesmente coloca uma ordem no caos (...). A falta total de ordem é de certa
maneira incompatível com a necessidade das pessoas de classificarem as coisas e
se situarem dentro do mundo”.
Segundo Catroga (2001), “a história é filha da memória”, tal
como a “memória é filha da história”,
estabelecendo assim uma relação dialética de diferenças, mas também de semelhanças.
Enquanto que a memória pode ser tanto
individual quanto coletiva e compreende um processo carregado de afetividade,
identidade e “sentimento de pertença”,
é “inconsciente das suas deformações e vulnerável a
todas as manipulações, sendo ainda suscetível de longas latências e de
repentinas revitalizações”.
Já o conceito
de história carece de uma “estrutura
crítica, conceitual e certo distanciamento, formando então uma ma laicizadora
operação intelectual, assente na análise e na atitude crítica”.
Já o rito por si só atribuirá uma
identidade ao indivíduo, que no caso do ofício das benzeduras se aplicará tanto
à benzedeira – sacerdotisa, atribuída de um “dom” de Deus – quanto ao benzido,
receptor da identidade e da memória, gerando assim um “sentimento de pertença”
em uma questão teleológica[i],
formadora de um cosmos.
Marginalidade e periferia: o papel
social da benzedeira.
Ainda
que a benzedeira não esteja ligada necessariamente a uma instituição oficial –
nesse caso a Igreja católica –, sua forma de expressão de crenças e práticas
que permeiam o seu mundo “sobrenatural”
pode não deixar de ser cristã, espiritual ou inclusive religiosa, como já
pode-se observar.
A
expressão religiosa é viva e constante, formando um interessante quadro de
análise que vai além do cotidiano das igrejas, dos padres e dos cultos
oficiais:
(...) Se o fervor religioso não é
sempre intenso e o se afirmar membro de uma Igreja não é sinal de que se esteja
diante de um autêntico fiel, é preciso também ter em conta que na vida de todo
mundo – mesmo na dos que se afirmam rigorosamente ateus – há sempre um lugar e
um momento para a presença do ‘sobrenatural’ (...). O sagrado está entre nós.
(MACEDO, 1989, p. 5-6).
Ainda
junto ao mesmo autor (1989), no que toca aos resquícios da Igreja católica na
cultura popular, frente aos processos de intercâmbios e trocas culturais,
assume-se:
A presença constante da Igreja
deixou marcas profundas na cultura popular, em que a religiosidade é intensa.
Paralelamente às práticas oficiais da Igreja, desenvolve-se todo um conjunto de
práticas populares em que proliferam curandeiros, rezadeiras, festas de santo e
formas de culto não necessariamente marcadas pelas mesmas preocupações da
Igreja oficial (MACEDO, 1989, p. 31).
Aqui,
tal como Ginzburg (1986, p. 16), assume-se então uma concepção de circularidade
cultural, rompendo com o discurso tradicional de oposição cultura erudita vs.
cultura popular.
Porém,
frente à comparação do material das memórias através das entrevistas com a
produção bibliográfica, eis que encontra-se talvez a maior discrepância
conceitual: as práticas que denominam-se por catolicismo popular pelos autores
supracitados, não são chamadas de forma apropriada pelos que comentam as
histórias da Vó Celíria.
Para
duas das entrevistadas, a benzedeira não era católica. Frente a Nelci, quando
questionada sobre as práticas denominadas por catolicismo popular (2011): “Será que era catolicismo? Acho que não”[ii].
Para
Rita (2011):
Sabe o que confunde um pouco? Que
as benzedeiras usam os santos da igreja católica para as benzedeiras (...) Isso
confunde um pouco. (...) A vó celíria não se dizia católica, ela não ia a
missa. Era prática de família, aprendeu pela vó dela. [Apesar de que] ela
rezava muito, ela tinha imagens de santos no quarto dela.[iii]
Assumindo
ou não o ofício heterogêneo das benzedeiras como uma extensão metamorfoseada da
instituição religiosa oficial – ainda que se prefira continuar com a concepção
aceita bibliograficamente devido à concordância acadêmicas –, pressupõe-se
então, que a benzedeira ainda assim terá consciência do papel espiritual e
religioso das suas práticas, que independem do culto oficial, bem como
abertamente assume essa identidade mítica quando reconhece seu ofício como um
“dom” recebido diretamente de Deus para com os outros, desempenhando – tal como
os padres e os sacerdotes oficiais – a religião em seu papel social e
comunitário.
[As instituições] Transcendem a
morte dos indivíduos e a dissolução de coletividades inteiras, porque se fundam
agora em um tempo sagrado no qual a história humana é um simples episódio. Num
certo sentido, por conseguinte, tornam-se imortais. (...) Ele [o indivíduo
religioso] é tudo aquilo com que a sociedade o identificou em virtude de uma
verdade cósmica, por assim dizer, e seu ser social arraiga-se na realidade
sagrada do universo (BERGER, 1985, p. 50).
Conforme
vemos na entrevista de Rubens (2011), o reconhecimento da sacralidade das
práticas das benzedeiras é reconhecido por aqueles que trazem sua memória:
Naqueles momentos em que a gente
não consegue fazer nada, em que nos não temos mais nada pra fazer, Deus vem
abrir a porta, e eu tenho provas disso aí. Quando a gente invoca Deus, que não
tem mais o que fazer, ele se manifesta, ele age.[iv]
Sincretismo e pluralidade de
catolicismos.
Porém,
uma vez assumida a possibilidade de trânsito cultural e de metamorfose de
práticas cultas e oficiais, marginalizadas para uma camada periférica
religiosa, não exclui-se, entretanto, a possibilidade de sincretismo das
crenças e práticas das benzedeiras com outras vertentes espirituais não
necessariamente advindas do catolicismo romano, o que vai de encontro com os
testemunhos obtidos através das entrevistas.
(...) O fato da repressão não
significou, contudo, que as religiões desses outros povos [negros e indígenas]
desaparecessem. Em muitos casos ocorreu a mistura de elementos. (...) Isso
significa que a preservação de cultos e mitos originais aconteceu, mas
significa também que sua re-elaboração é um fato concreto em que as tradições
se adaptaram a um novo contexto. (MACEDO, 1989, p. 31).
A
memória dos descendentes de Vó Celíria frequentemente faz alusões à influência
africana em suas práticas. Para Nelci quando questionada sobre as origens do
ofício da benzedeira (2011), “Vinha do
tempo dos escravos, eles tinham escravos em casa (...)”[v].
Já
Eva (2011) alude sobre as possíveis origens e relaciona o mesmo com suas
práticas pessoais, fundamentando uma mentalidade cíclica, permanente e de
longa-duração: “Eles [os índios] tinham o
pagé, e acreditavam nele, assim como acreditavam na lua, no sol etc. quando eu
peço, quando eu quero uma coisa de verdade, eu mentalizo e consigo”.[vi]
Considerando
as práticas das benzeduras como catolicismo ou não, cabe compreender a variação
na forma em lidar com esse cosmos organizado e toda uma complexidade de elementos
micro e macrocósmicos que contribuem para essa pluralidade de representação:
Um outro aspecto importante do
catolicismo brasileiro é que, em virtude das diferenças existentes no país
(regionais, do rural para o urbano, de classes sociais), acaba por ocorrer uma
diferenciação no ritmo das transformações dentro do próprio catolicismo. Embora
todos se afirmem igualmente católicos, há uma visão de Igreja tradicional que
se opõe a uma visão de Igreja mais moderna e liberal. Assim, todos são
católicos, mas é possível identificar um catolicismo tradicional rural, um
catolicismo tradicional urbano, um catolicismo moderno rural, um catolicismo
moderno urbano e outras variantes em torno do mesmo tema. Esse processo de
diferenciação é dinâmico, está constantemente se refazendo (MACEDO, 1989, p.
33-34).
Já
Negrão (1984, p.15) por fins metodológicos, dentro do que é chamado catolicismo
popular, dicotomiza-o em catolicismo popular rural e catolicismo popular
urbano, também chamado catolicismo rústico por vezes.
Sobre
esse último, no qual detemos nossa pesquisa, diz a autora que “é (ou foi) intimamente associada às
comunidades rurais dispersas por vastas extensões territoriais ao longo de todo
o território nacional, em regime de economia de (quase) subsistência. Cada família
ocupava sua terra e nela trabalhava relativamente isolada de seus vizinhos”.
O
testemunho de Nelci (2011) corrobora com um quadro social que acaba por
refletir, se atenta a leitura, também um interessante quadro mental: “Não tinha outro jeito (...) Nós mesmos,
morávamos a 40 quilômetros da cidade (...) Eu tinha médico, levava as crianças,
pegava o ônibus, gente um pouco mais esclarecida que as outras pessoas, né. Mas
para as pessoas de lá, médico para eles era a Vó Celíria.[vii]
Para
Magnani (1984, p. 137), “A religião
católica, como qualquer outra religião, está permeada de elementos mágicos.
Evidentemente, isso não é aceito nem incentivado pela hierarquia, porque
negaria o princípio da relação fundamental hierárquica e vertical (...)”.
de forma muito interessante, a abordagem de Magnani (1984) é complementada com
o depoimento de Rita (2011), que nega a atribuição do termo “católico” às
benzedeiras: “Sobre bênção, três pessoas
segundo a Igreja Católica podem abençoar uma pessoa: o pai, a mãe e o padre (...)
e isso pode confundir um pouquinho”.
Logo,
não é com dificuldade que lembra-se que benzedeira que presta auxílio a sua
comunidade não pertence a esta tríade sagrada.
As benzedeiras no mundo de hoje:
tradicionalismo, modernidade e pós-modernidade.
Para
Macedo (1989, p. 36), várias são as contribuições para as novas concepções da
espiritualidade e da religiosidade do mundo de hoje.
Para
a autora, percebemos um gradual abandono ao apego e às tradições em prol de uma
concepção de progresso, típica das sociedades fundamentadas no capitalismo –
que visa o lucro, que por si só gera o consumo e pressupõe transformações
rápidas e lineares.
A
industrialização e a urbanização também são fenômenos que representam uma nova
maneira do homem lidar com o seu redor, sempre em função das transformações
sociais, mentais, tecnológicas e políticas que esse movimento contínuo
proporciona.
Para
a filosofia de Nietzsche (1882) “Deus
está morto”.
Uma
das interpretações para essa polêmica frase seria sobre essa mesma sociedade
modernizada que, do ponto de vista filosófico “matara” a Deus, colocando a
ciência e o progresso no seu lugar.
É
dentro desse contexto em que vemos o declínio do ofício das benzedeiras, que
outrora num ambiente tradicional ocupavam um papel de referência, mas que agora
na modernidade são marginalizadas não mais por uma Igreja oficial, mas pelo
próprio estigma de ir contra a uma corrente cultural fundamentada em noções de
evolução e progresso.
Assim,
compreende-se a possibilidade de organizar o fenômeno das benzedeiras em três
períodos distintos: o período tradicional, moderno e pós-moderno.
Por
tradicional, constitui-se o ambiente em que as benzedeiras eram respeitadas e
tidas como representações sociais e espirituais de uma cultura popular e
ruralizada.
Por
modernidade, entendemos o momento em que solidificam-se as concepções de avanço
e progresso, dá-se a urbanização e a benzedeira rural perde o seu lugar para a
medicina moderna e seus médicos homens.
Por
fim, por pós-moderno, entende-se o período em que esses dois momentos
anteriores acabam por confundir-se, sofrendo essa nomenclatura, de todo, as
concepções atuais acerca das crenças e práticas das benzedeiras, essas coletadas
para a organização deste artigo.
Concluindo.
Conclui-se,
portanto, que o descendente da benzedeira, pós-moderno, respeita suas tradições
e acredita na eficácia das suas práticas.
Porém,
a fé não é tradicional uma vez que, quando questionado sobre sua eficácia,
atribui isso ao fato da sociedade em questão ser ruralizada, relativamente
distante de centros urbanos, sem médicos ou de uma medicina avançada e muitas
vezes atribuindo os fenômenos de cura às propriedades físicas dos materiais
utilizados na benzedura – como, por exemplo, o “negocinho” branco da
Figueirinha que passava-se na verruga para cair.
Outrossim,
também as concepções atuais não podem encaixar-se numa categoria de modernidade,
pois não existe a negação na eficácia religiosa ou espiritual do ofício das
benzeduras.
A
crença em Deus, Jesus e na Virgem Maria ainda persistem, e o poder da fé é
igualmente valorizado. Tanto a fé do benzedeira quanto a fé do que recebe a
benzedura.
É
o poder das “energias”.
A
entrevista de Eva (2011) é um tanto quanto esclarecedora nesse aspecto, pois
evidencia temas típicos da mentalidade pós-moderna, como, por exemplo, a
concepção dual de bem ou mal e até certo ou errado, a fé na força criadora do
pensamento e a releitura de concepções esotéricas muito conhecidas na segunda
metade do séc. XX:
Pra mim, o que cura é a fé. É
aquilo que você acredita, e a fé no Ser maior. Antes, Deus imaginava as coisas
e criava, eu me questiono sobre essas coisas. Quem escreveu essas coisas foi o
homem. Jesus passou sobre essa terra (...) Por algum motivo ele veio, se há
dois mil anos ele é lembrado. Em outras línguas, em outras religiões, de alguma
forma ele é lembrado. (...) A força do mal existe e a força do bem existe.
Tanto podes forçar uma pessoa pra fazer o que ele não quer, quanto fazer pro
bem. Isso é uma coisa muito certa. A sua palavra bate e volta. O que tu disser
com tua palavra, não tem mais como aprisionar ela de volta (...) O seu
pensamento, o que você quer, você realiza. [Grifo nosso].[viii]
Eva
(2011) não se considera uma benzedeira, ainda que tivesse uma mãe que o fosse.
Ainda
assim, atribui-se de algumas das capacidades desse ofício tradicional, sob
novas perspectivas e releituras.
Fica
claro quando confessa: “Se eu quiser eu
posso, eu faço a minha oração e tiro o mal olhado”[ix].
Complementa
ainda, esclarecendo:
“Meu
pai era de uma corrente esotérica. Esotérico é assim, é ‘comunhão do
pensamento’. As seis horas da tarde, onde é que se estivesse, era pra tirar
dois minutos e fazer a corrente, pra fazer o bem: a corrente do pensamento. Não
era uma religião, era uma filosofia de vida.”[x]
E
mais tarde: “Os livros do pai... de 80 anos tem a linguagem de
agora”.[xi]
Uma
vez esclarecidas as delimitações sazonais do processo, cabe também ressaltar
que essas divisões servem tão somente a fim teórico, metodológico e de
compreensão conceitual.
Assumem-se,
aqui, as concepções de longue durée de
Braudel (2005) quando defende-se que essas delimitações acerca do
tradicionalismo, da modernidade e principalmente da mentalidade pós-moderna não
são estanques, fixas ou imóveis, mas que diferente disso, constituem barreiras relativas
e oscilantes dentro de um processo macrocósmico, muitas vezes confundindo-se
entre si.
Conclui-se,
portanto, que estudar a percepção atual de ofícios que envolvem concepções
religiosas e até sociais do passado torna-se um campo rico e muito fértil, dado
justamente a essa riqueza e dinâmica do processo que é vivo e sempre constante.
Para saber mais sobre o assunto.
CATROGA,
Fernando. Memória e História. In.
PESAVENTO, Sandra J. (org). Fronteiras do
Milênio. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001.
BERGER,
Peter. O Dossel Sagrado: Elementos para
uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
BRANDÃO,
Carlos Rodrigues. De tão longe eu venho
vindo: Símbolos, gestos e rituais do catolicismo popular em Goiás. Goiânia:
UFG, 2004.
BRAUDEL,
Fernand. História e ciências sociais. A longa
duração in: Escritos sobre a história.
2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
GINZBURG,
Carlo. O queijo e os vermes. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986.
LEVI,
Giovanni. A Herança imaterial: trajetória
de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
MACEDO,
Carmen Cinira. Imagem do Eterno:
Religiões no Brasil. São Paulo: Moderna, 1989.
NOGUEIRA,
Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e
história: as práticas mágicas no Ocidente cristão. Bauru: EDUSC, 2004.
PEREIRA,
José Carlos. Sincretismo religioso &
ritos sacrificiais. Zouk: São Paulo (2004).
ROSA,
Helena. História Oral e Micro-História:
Aproximações, limites e possibilidades. In: IV Encontro Regional Sul de História Oral - anais eletrônicos - Nº 01 /
2007. Disponível em http://www.cfh.ufsc.br/abho4sul/pdf/Helena%20Rosa.pdf.
Acesso em: 22/04/2011.
VANSINA,
J. A Tradição Oral e sua Metodologia.
In: História Geral da África. São
Paulo: Ática, 1981. V. III.
Notas.
[i] Por questões teleológicas,
compreende-se o estudo filosófico dos fins, dos motivos, das razões ou da
finalidade. Vem do conceito grego de telos,
a “causa final” estudada por Aristóteles. MORA, José Ferrater. Dicionário de
Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[ii] Entrevista realizada em
24.09.2011 com Nelci Cunha (nora), professora, nascida em 1949.
[iii] Entrevista realizada em
14.11.2011 com Rita Cilene (neta), professora, nascida em 1974.
[iv] Entrevista realizada em
14.11.2011 com Rubens Butes (filho), professor, nascida em 1948.
[v] Entrevista realizada em
14.11.2011 com Nelci Cunha (nora), professora, nascida em 1949.
[vi] Entrevista realizada em
25.09.2011 com Eva Cunha (nora), aposentada, nascida em 1955.
[vii] Entrevista realizada em
14.11.2011 com Nelci Cunha (nora), professora, nascida em 1949.
[viii] Entrevista realizada em
25.09.2011 com Eva Cunha (nora), aposentada, nascida em 1955.
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