Esse texto compreende parte de um estudo
monográfico, através do qual se objetivou analisar as relações existentes entre
infância e trabalho rural, tendo como foco as crianças moradoras rurais do
município de Conceição do Almeida – BA[1], nas
décadas de 1940 a 1960.
Procurou assim investigar os
significados dessas relações para os sujeitos participantes, além de verificar
uma possível existência da exploração do trabalho infantil.
A pesquisa baseou-se fundamentalmente,
nos relatos orais de indivíduos que vivenciaram uma infância trabalhadora no
contexto em análise, valendo-se da metodologia da História Oral.
Utilizou-se também pesquisas em
documentos de cunho estatísticos, obras memorialísticas, poéticas e
dissertações para análise contextual, além de uma bibliografia de áreas diversas
sobre a temática.
Trabalho rural
infantil: exploração ou ajuda?
[...] os pais da
gente eram obrigados a colocar a gente para trabalhar, porque não tinha como
eles viverem sem que a gente trabalhasse, então a gente tinha que trabalhar
mesmo.[2]
O
Sr. Benedito, ao relatar sua infância como trabalhador rural, afirma acreditar
que a sua vida estava destinada ao trabalho “duro”.
Esse
trabalho às vezes aparece como imposto pelos pais, outras vezes como uma
consciência que a criança tinha de começar a trabalhar desde cedo.
Diante
disso, é preciso relativizar ao caracterizar essas práticas de trabalho
infantil, como exploração ou ajuda e socialização.
Nos
dicionários de língua portuguesa poderemos encontrar várias definições para o
termo “trabalho”: aplicação das forças e faculdades humanas para um determinado
fim; atividade de caráter físico e/ou intelectual, necessária à realização de
uma tarefa, serviço; atividade remunerada ou assalariada, emprego; lida, labuta[3].
Mediante
tais definições, resumidamente, trabalho corresponde a qualquer atividade
desempenhada para um fim específico, essa pode ser física ou mental, remunerada
ou não.
De
acordo com Margarete Gomes o trabalho se relaciona com a cotidianidade dos
trabalhadores e de suas famílias, “constituindo as relações humanas que se
formam dentro e fora do local de trabalho” [4].
Ou
seja, além de compreender uma prática necessária e comum, torna-se um veículo
de relações entre os sujeitos.
Historicamente o
trabalho infantil existe desde a Antiguidade. Ao longo da história variam as
razões e finalidades da utilização de crianças e adolescentes nas mais diversas
atividades de trabalho. Nas Idades
Antiga e Média, o propósito mais comum era o aprendizado de um ofício e a
formação profissional, tendo no espaço doméstico seu principal ambiente. Mais
tarde, a revolução industrial introduz a exploração e o assalariamento. As
crianças são, então, adultizadas e transformam-se as relações familiares.[5]
O
trabalho infantil no Brasil surgiu no período escravocrata, iniciado a partir
da introdução da criança nas atividades ligadas às práticas domésticas, e se
estendeu para as vastas plantações agrícolas.
Daí
por diante, a criança pobre tornou-se sujeito presente nos ambientes de
trabalho rural.
Com
a industrialização, percebemos também a presença dos pequenos em meio aos
adultos nas fábricas, auxiliando seus pais, ou mesmo, representando a única mão
de obra da casa.
Esses
sujeitos representavam mãos de obras ágeis e baratas, fundamentais em muitas
atividades que aos adultos tornavam-se complicadas as execuções.
Nesse
sentido, Maria Pinheiro, aborda que a presença da criança trabalhadora foi
notada por muitos viajantes que estiveram no Brasil no decorrer do século XIX,
sendo que na visão de alguns desses viajantes “[...] por volta de cinco ou seis
anos, os meninos passavam a compartilhar com os escravos adultos as ‘fadigas e
dissabores do trabalho”[6].
De
acordo com a fonte, a criança escrava começava a penetrar no mundo adulto desde
cedo.
Considerando
os questionamentos de Mary Del Priore[7],
cabe analisarmos se o lugar da criança teria sido sempre o mesmo ao longo dos
tempos, e se ela teria sido atendida sempre da mesma forma por parte dos órgãos
responsáveis.
Poderemos
considerar que ao longo da história houve alterações quanto às representações
da infância e da criança em todo o mundo, todavia, existe um antigo e indigesto
legado a respeito da história da criança no Brasil.
Conforme
Irma Rizzini:
O Brasil tem uma
longa história de exploração da mão-de-obra infantil. As crianças pobres sempre
trabalharam [...] Para seus donos [...]; para os ‘capitalistas’ do inicio da
industrialização [...]; para os grandes proprietários de terras como
bóias-frias; nas unidades domésticas de produção artesanal ou agrícola; nas
casas de família; e [...] nas ruas, para manterem a si e as suas famílias
[...].[8]
No
período anterior às décadas em estudo (1940 a 1960) já existiam leis que
proibiam a utilização da mão de obra infantil abaixo de certa idade, em
determinados horários, locais e atividades.
É
o caso do Código de Menores de 1927[9]
e da Constituição de 1934[10].
Porém,
resta saber se essas leis vigoravam no contexto rural das pequenas localidades
brasileiras, visto que, conforme Art. 121, § 4º. da Constituição, “O trabalho agrícola será objeto de
regulamentação especial, [...] quanto
possível [grifo nosso], ao
disposto neste artigo”.
Inaiá
de Carvalho[11],
aponta que essas leis normalmente eram burladas, além de praticamente não se
estenderem ao meio rural, onde grande parcela de mão de obra infanto-juvenil
encontra-se ocupada, principalmente como parte da força de trabalho familiar.
Para
tentarmos compreender como podemos caracterizar o trabalho da criança moradora
rural almeidense como exploração ou ajuda é fundamental expor brevemente o
histórico dos entrevistados: dos oito sujeitos entrevistados, sete residem na
zona rural do município, nos povoados da Viração e São Francisco de Mombaça, quatro
destes praticam ainda algumas atividades agrícolas.
Apenas
dona Deusdete, reside na sede municipal e não possui mais vínculo direto com o
campo.
Já
o Sr. Benedito Batista, na época da entrevista realizava algumas pequenas
atividades rurais, porém, devido a problemas de saúde, atualmente, não exerce
mais nenhuma atividade, e o Sr. Benedito Ferreira, faleceu tempos depois da
entrevista.
De
forma geral, todos os entrevistados possuem (iam) origem humilde, moradores da
zona rural, que viviam basicamente do que produziam, e alguns complementando a
renda com a prática do “dar dia” em terras de fazendeiros.
Embora
três destes trabalhassem em suas propriedades, a situação econômica era
difícil, tornando-se necessário recorrer a outros serviços, como foi o caso do
Sr. Benedito Ferreira e sua irmã Maria do Carmo e o Sr. Cosme Lessa.
Os
demais, caracterizados como rendeiros, trabalhavam em terras arrendadas para
consumo próprio, pagavam a renda do terreno com “o suor do trabalho”, e ainda
vendiam dias de trabalho para ajudar na complementação da renda.
Uma
das atividades realizadas no âmbito rural que se associa muito mais com o
trabalho infantil como exploração do que os trabalhos na agricultura familiar,
consiste na venda do dia de trabalho, o “dar dia”.
Normalmente
essa prática era adotada, e ainda é bastante utilizada no meio rural, para
suprir algumas necessidades, as quais não são possíveis apenas com o fruto do
roçado.
O
“dar dia” se caracteriza como uma atividade masculina, onde pai e filhos saiam
para trabalhar em outras propriedades, vendendo o seu dia de trabalho.
Embora
não muito comum, as mulheres e meninas também poderiam vir a dar dias de
trabalho, como foi o caso de Maria da Conceição Neri[12]
que afirma ter trabalhado nas roças da família e trabalhou muito nas roças de
terceiros, para ganhar dinheiro.
O
Sr. Benedito Batista alerta que só seria possível trabalhar fora apenas três ou
quatro dias da semana, pois um a dois dias eram destinados ao pagamento do
arrendamento.
Ou
seja, o pagamento do uso da terra para moradia e plantio era pago muitas vezes
com a força de trabalho. Conforme os recenseamentos agrícolas do Município de
Conceição do Almeida, verificamos o seguinte quadro:
Esses
dados sinalizam para a questão da acumulação da propriedade rural no município,
visto que, não só grande parte das terras pertencia a uma pequena parcela de
latifundiários, como ainda assim, a população pobre tinha que pagar a eles para
ter o direito a desfrutar de moradia, mesmo precária, e de uma pequena produção
agrícola.
Na
última década em análise, em 225 estabelecimentos arrendados o pagamento era
realizado em dinheiro, sendo apenas 12 com o pagamento em produtos produzidos
nas terras.
O
pagamento com o trabalho era aceito quando não se podia pagar a quantia
estipulada em espécie.
Dessa
forma, muitos chegavam a trabalhar até uma semana completa para o arrendador
como forma de quitar a dívida. Isso é o que relata o Sr. José Barreto:
[...] Meus irmãos
foram para São Paulo, eu fiquei sozinho pagando renda, eram dois dias de renda,
e quando era fim de ano que a gente não pagava. Não podia pagar, aí eu pagava
quatro dias, tinha vezes de trabalhar a semana toda pagando renda e não podia
arranjar outro trabalho.[13]
Dessa
forma, restavam poucos dias destinados a adquirir dinheiro com a venda do dia
de trabalho, e aos sábados e domingos, normalmente eram realizados os trabalhos
nas lavouras domésticas.
Senhor
Benedito Batista alega que era um dia de renda paga, e quando o pai não podia,
ele pagava com dois dias, com o trabalho.
O
pai pagava com os serviços que realizava como marceneiro, por exemplo.
Conforme
o entrevistado, era “uma renda cara danada”, pois o pai ganhava entre trinta e
cinquenta contos dentro da fazenda, os quais ficavam por conta de um dia de
renda.
Ao
nos reportar ao relato que ilustra o início desta análise, questionando-o se
considerava ter sofrido uma exploração infantil, o entrevistado relata que “a
exploração era maior” naquele contexto, visto que os pais necessitavam que os
filhos trabalhassem.
Ao
mesmo tempo, ao afirmar que teria sofrido uma exploração do trabalho,
lamenta-se ao recordar um pensamento que lhe veio à memória, já na idade
adulta: “Benedito, tu começou a subir a ladeira com sete anos, e ainda não
acabou de subir?”[14]
A
reflexão demonstra certo descontentamento com relação ao seu histórico de
trabalho desde a infância.
Num
momento anterior, o mesmo afirma que não era obrigado a trabalhar, defendendo
uma consciência de que era dever trabalhar para ajudar os pais.
Ah!
Papai entrava para dentro de casa no dia de domingo, ia colocar fundo em lata
que a turma deixava lá, em bacia, fazer mesa, fazer banco de encomenda, e
dizia: vão tudo para roça terminar a tarefa. E eu tomava conta de 12 carneiros
na corda, meu e [trecho confuso]. Doze carneiros na corda, duas novilhas e
ainda tirava doze, treze caminhos de mandioca por dia, e lá eu terminava o meu,
e os outros iam deixando dois, três. Papai contava tudo, quando era no dia de domingo,
ele entrava pra dentro de casa, ia trabalhar: vão tudo pra roça terminar as
tarefas, senão não come hoje aqui. E não comia mesmo, mamãe se perdia. Não
comia não!
[15]
Contrapondo
a ideia de não obrigatoriedade do trabalho, Sr. Benedito Batista relata no trecho
acima que ao ser delegada certa tarefa às crianças, a qual deveria ser cumprida
em um determinado período, o pai se mostrava rígido na cobrança, sinalizando a
autoridade da figura paterna nesse contexto.
Na
mesma entrevista aparece em alguns momentos a tentativa de ocultar essa relação
de poder do pai para como seus filhos, se configurando como uma maneira de
tentar se supervalorizar e valorizar o trabalho realizado, a consciência da
necessidade do mesmo para a sobrevivência do grupo familiar.
A
todo o momento ele procura ser evidenciado, por ser o filho mais velho, aquele
que deveria dar o exemplo para os demais e ser respeitado pelos mesmos na
ausência da figura paterna, valorizando a ética do trabalho.
O
Sr. Benedito Ferreira também acentua a rigidez exercida por parte dos pais na
obrigatoriedade do trabalho: “Era! Era obrigado. Ah bom! Tinha que andar
direito, não é? Porque se não andar direito, pronto, acabou, nada tinha [...].
O caso era trabalhar, não tinha jeito [...]”. Vejamos também o depoimento de
dona Maria do Carmo que sinaliza para esse contexto:
Não queria? Como
é que não queria, a pulso, não tinha outro jeito. Se não tinha outro jeito.
Agora, para mim Benedito não sabe leitura por causa disso. Porque ele foi
crescendo já trabalhando, trabalhando. Olha, não brinca! A vida da gente não
foi moleza em pequeno, ai, ai. [...]. O que?! Ai, ai, quando a gente era
pequeno não era brincadeira.
Partindo
da fala de dona Maria do Carmo, é possível empreender que além do fato do
trabalho da criança ser algo necessário, visto que não havia muitas
alternativas para evitá-lo, esta, apesar das atividades que desempenhava, não
era vista como um adulto, nem possuía liberdade para agir da forma que lhe
conviesse.
Ainda
assim, o trabalho da criança também representava um meio para que na fase
adulta já obtivesse um conhecimento para praticá-lo com maior maturidade.
A
entrevistada também demonstra em sua fala, certa revolta por conta do trabalho
excessivo ter impossibilitado o acesso à educação escolar, principalmente por
parte do seu irmão.
O
Sr. José Barreto já defende a consciência da obrigação de trabalhar:
[...] eu acho
que era obrigação da gente começar a trabalhar logo novo, não é. Os pais da
gente forçavam a trabalhar, tem que fazer isso, a gente tinha que fazer. [...]
Se não cumprisse, eu não vou dizer que eles batiam [...] agora não dizia de não
reclamar. Agora, bater não batia não. Papai pra fazer aquelas coisas ele não
batia não. Meu pai saia para o trabalho, ele também trabalhava o dia todo na
fazenda do finado Guilherme [...]. Tinha três, eu, Nezinho e Cosme, ele mandava
a gente fazer aquelas obrigações [...].[16]
O
entrevistado acima procura evidenciar que as atividades desempenhadas pelas
crianças naquela época não era uma exploração, ocorria devido a uma consciência
da necessidade do trabalho, porém, existe uma contradição no discurso, na
medida em que ele afirma que os pais forçavam o trabalho, e reclamava caso a
atividade não fosse realizada.
Por
outro lado, podemos inferir que na ótica do entrevistado, ao utilizar-se do
“forçar a trabalhar” ele queira se referir ao incentivo ao trabalho, e não a
obrigação que poderia se configurar como exploração.
De
acordo com Sérgio Schneider[17],
o trabalho rural familiar, no qual envolve a participação de crianças, não pode
ser caracterizado como uma exploração do trabalho infantil, embora possam
existir situações que se caracterizam como tal.
Conforme
o autor:
[...] não se
pode perder de vista que é preciso diferenciar o trabalho que degrada daquilo
que é labor produtivo (ainda que às vezes penoso) que viabiliza a subsistência
material e garante a reprodução social. Muitas vezes, esta diferença,
assenta-se, fundamentalmente, em uma construção simbólica, que se constitui em
uma representação do significado e do sentido do trabalho que orienta os
valores e a visão de mundo de indivíduos e dos grupos sociais.[18]
Contudo, o autor deixa claro, que seus argumentos
não significam uma justificativa ou legitimação do uso da mão de obra infantil
nos trabalhos agrícolas, especialmente em “atividades penosas ou que oferecem
riscos”.
Mas, procura realizar uma distinção entre o trabalho
explorativo e o trabalho familiar, que faz uso da mão de obra infantil como um
tipo de atividade que tem o caráter de ‘ajuda’, sendo fundamental para a
subsistência familiar e como, uma atividade formativa e enobrecedora.
Compartilhando
da mesma análise, Joel Marin e Rafaela Vendruscolo[19],
apontam que para as famílias rurais, o trabalho das crianças, assume um papel
pedagógico e moralizador, haja vista, caracterizar como uma maneira de
“socialização e formação dos futuros agricultores e herdeiros”, no processo de
aprendizagem por meio da prática, acompanhando os mais velhos.
Os
autores destacam que os estudos sobre as sociedades rurais das décadas de 1940
e 1950 evidenciam que “a infância constituía mera figurante da unidade
familiar”, visto que normalmente era salientada a participação das crianças
como aprendizes da vida no contexto do trabalho em família. [20]
Dessa
forma, o ofício seria transmitido de pai para filho, porém, como alerta
Schneider[21],
não era regra que o filho viesse a seguir a profissão do pai, ainda mais,
levando em consideração que muitos jovens das gerações seguintes, saíram da
zona rural em direção as capitais.
Vale
salientar que as famílias rurais geralmente acreditavam possuir o dever de
educar seus filhos, livrando-os da malandragem e viam no trabalho, um
importante meio para tal fim, além de incentivá-los a contribuir
“solidariamente” no trabalho rural em grupo.[22]
Soraya
Conde[23]
alerta para o fato de as famílias rurais caracterizarem o trabalho das crianças
como ‘ajuda’.
Ajuda,
que para a ela é uma forma de permitir que as crianças participem de
“atividades consideradas nocivas” ao seu desenvolvimento, e sejam mantidas, de
forma a ocultar o “caráter de exploração” existente.[24]
Dessa
forma, a autora, acredita que o trabalho da criança pobre encontra-se em meio à
vida cotidiana, e principalmente nos espaços domésticos, portanto, passa
despercebido, ou é considerado natural. [25]
Maria Pinheiro aponta que no século XIX, “a
sociedade brasileira não via com bons olhos a ociosidade da criança pobre”[26],
visto que tal ócio era um caminho livre para a vadiagem e a mendicância. Sendo
assim, esses males deveriam ser combatidos, o que favoreceu a criação de vários
órgãos, como escolas rurais, creches e orfanatos, os quais visavam
“disciplinar, controlar e formar uma mão de obra útil a nação”.[27]
Percebe-se então, que a atenção voltada à criança
pobre a partir do século XIX, se estendendo as primeiras décadas do século XX,
não era simplesmente com o intuito de zelar por ela, por si só, mas, sobretudo,
temendo a concentração de crianças vadias, que influenciariam na desorganização
social.
Segundo a autora, a criança era vista como um
problema do Estado e controlá-la seria uma maneira de constituir mão de obra
adestrada[28].
Para Schneider, é preciso apontar as razões para que
se interprete o trabalho da criança de modo distinto quando o local de
atividade e as condições sociais forem caracterizados pela agricultura
familiar, a qual ele define como:
[...] uma forma social que envolve unidades [...]
que compreendem a posse ou propriedade de uma parcela de terra (geralmente de
tamanho pequeno) em que trabalha um grupo de pessoas ligadas por laços de
parentesco e consangüinidade (podendo também haver membros que não possui estes
vínculos), produzindo, [...] para garantir a autosuficiência alimentar [...] e
a obtenção de excedentes destinados às trocas e/ou aos mercados [...][29].
Dessa forma, considera-se que a agricultura familiar
compreende as relações de trabalho em que está envolvido basicamente o grupo
social formado pela família, fazendo parte deste, pai, mãe, filhos e avôs, cada
um com suas tarefas específicas.
Além disso, é preciso ressaltar que o uso da força
de trabalho do conjunto familiar se caracteriza, conforme o autor como uma
estratégia de reprodução social e um traço identitário, visto que tais
atividades em conjunto passam a dar uma identidade local para o contexto do
trabalho rural[30].
Entretanto, de acordo com os sujeitos históricos que
vivenciaram a infância na zona rural almeidense, a agricultura familiar
existia, porém havia uma forte predominância do trabalho fora de casa, em
virtude deste, proporcionar maior lucro para a sobrevivência, ficando a agricultura
familiar apenas como meio de suprir algumas necessidades mais básicas.
Eu trabalhei
mais para outras pessoas e em casa também. Empatava minha filha! Se eu desse
dois ou três dias fora, já dava para tapear qualquer coisa, e os outros dois,
três dias eu vinha trabalhar em casa. Fazia uma moitinha de roça para mim,
plantava um pezinho de batata, um pezinho de aipim... um pé de fumo, de
mandioca. Tudo isso eu plantava, e eu já com sete, oito, dez anos vamos dizer.[31]
Percebe-se
que a agricultura familiar nunca foi a única opção da população rural em geral,
visto que a mesma não se destinava apenas para o consumo próprio, mas também
com fins de troca e venda nas feiras e mercados.
Conforme
o Sr. Cosme Lessa[32],
na sua época as plantações domésticas, que na maioria das vezes aparecem como
pequenas produções, eram destinadas a venda e a manutenção familiar.
Para
sobreviver era preciso lutar na roça com mandioca, fazer farinha, para vender
na feira, plantar fumo, um pouco de amendoim, dentre outros produtos básicos.
Dona
Deusdete São Boaventura dos Anjos[33],
afirma que na época da sua infância e juventude, anterior ao momento citado por
Sr. Cosme, a alimentação era tirada do “suor dos braços”, de forma que, se
plantava, tinha, e não era necessário comprar.
Ainda
afirma que nada era vendido, “era só para o consumo mesmo e dar a quem não
fazia”.
Dessa
forma, o modo de vida rural se forma por uma teia de relações, apesar de
verificarmos variações nas entrevistas a respeito desse modelo.
Relações
estas, familiares, amigáveis, de vizinhança, que compõe um rico contexto,
possíveis de serem investigadas em outras pesquisas, que não serão possíveis
ser realizadas nesse momento.
Margarete
Gomes, se referindo as relações existentes no âmbito dos trabalhos realizados
no contexto doméstico aponta:
O trabalho
realizado nas casas criava uma melhor relação familiar, como um ponto de
encontro de conversas e de ensinamentos, mas também, um paradoxo: se olharmos
pela perspectiva do trabalho, veremos mais uma forma de exploração; mas, por
outro lado, além de fonte de renda trazia a proximidade da família [...][34]
É
preciso avaliar o trabalho infantil no contexto rural familiar, onde muitos
valores estão envolvidos nessas relações.
Não
basta simplesmente acusar a possível existência da exploração do trabalho
infantil, mas atentar para as condições materiais e produtivas em que as
crianças se encontram/ encontravam, além dos valores e representações que
constituem o trabalho para as famílias rurais.
Cabe
lembrar que no contexto do trabalho rural familiar as atividades na maioria das
vezes eram divididas por sexo e faixa etária.
Nesse
sentido, embora todos participassem das atividades, sejam no roçado, ou no contexto doméstico, o
trabalho das crianças, bem como dos membros que não constituíam ‘forças
plenas’, eram entendidos como uma ‘ajuda’.
Entretanto,
essa ajuda não tinha importância menor, ou não era isenta de esforços físicos,
é assim entendida, visto que, não representa um trabalho remunerado, mas uma
força auxiliar ou complementar nas tarefas desempenhadas pelo grupo doméstico.
O
Sr. Benedito Batista relata: “com sete anos, papai pegava a enxada pra fazer
uma cova, eu pegava atrás, quando eu chegava no meio do caminho ele já tinha
subido o dele, ele voltava pegava aquele da minha mão, eu voltava pra baixo
pegava outro, assim o dia todo.”
Nesse
sentido, Garcia Jr pondera que esse trabalho realizado pelos filhos juntamente
com os pais, se caracteriza como uma ajuda, visto que não há uma relação de
trabalho pago.
Para
o autor, “confrontados a um trabalhador
pago, o esforço dos filhos aparece
como gratuito, uma ajuda que é
prestada ao pai, um pequeno
produtor.” [35]
Partindo
desse aspecto, até mesmo as atividades desenvolvidas fora do roçado familiar,
ou seja, a prática do “dar dia” [36]
se apresenta por parte dos sujeitos entrevistados como uma ajuda.
O
trabalho fosse doméstico ou não, para eles era uma forma de complementar a
renda familiar ganhando um trocado, mesmo que esse trabalho fosse degradante,
pois “era o jeito que tinha, se a roça não dava, era aquela besteirinha, tinha
que trabalhar fora para fazer o tostão para no dia de sábado fazer o
“rebuliçozinho”[37]” [38].
O
Sr. Benedito Neiva[39]
relata as dificuldades que se tinha no contexto rural, evidenciando que as
roças domésticas eram insuficientes para o sustento de toda a família, que na
maioria dos casos era extensa.
Era
preciso “dar duro na roça dos outros” para poder ajudar os pais. Não haviam
outras alternativas.
Nota-se
que em alguns casos as atividades rurais foram iniciadas como brincadeira,
curiosidade, ou mesmo, na tentativa de imitar os mais velhos, esse foi o caso
de Dona Maria do Carmo[40],
refletido em suas falas ao declarar que o trabalho que ela realizava era como o
dos meninos de hoje que veem os outros fazerem e querem fazer também.
Após
essa fase da curiosidade, a entrevistada afirma que passou a ajudar os pais nos
trabalhos rurais e domésticos.
Questionando
o Sr. Benedito Batista acerca do motivo de ter começado a trabalhar cedo, ele
afirma que era preciso, visto que a família não tinha condições, e que o
dinheiro que se ganhava era insuficiente.
O
entrevistado atenta para o fato, de que a criança ganhava muito menos que um adulto,
e às vezes era preciso trabalhar mais para pagar o arrendamento do terreno onde
moravam e plantavam.
[...]
Um homem ganhava dois mil e quinhentos na enxada, duas moedas de dez tostões e
uma de quinhentos réis, e eu que vamos dizer, que era “meio homem” ganhava mil
e quinhentos. Papai caiu doente uma ocasião, Manoel, o finado Manoel, morreu já
rapazinho, tudo em cima da cama e eu ganhava quatro e quinhentos por semana.
Quer dizer que dois dias eram de renda, dois por um. Papai pagava um, quando papai
podia e eu do tamanho que estava pagava dois por um, dois por um dava quatro e
quinhentos, desses quatro e quinhentos eu ia para venda, comprava açúcar,
comprava café, comprava farinha... farinha não que a gente fazia um punhado cá,
já tinha mandioca, fazia um punhado, duas quartas, três, fazia, ai a gente
levava oito dias, quinze. Nós comprávamos de tudo e colocávamos dentro de casa
para criar o resto dos meus irmãos [...].[41]
Por meio das entrevistas é possível
verificar qual o principal fator que impulsionou a presença das crianças da
zona rural almeidense nos trabalhos nas produções domésticas e na venda do dia
de trabalho.
Normalmente se refere às condições
familiares como precárias e daí o desejo de tentar mudar aquela realidade.
Nesse relato podemos identificar
visivelmente a questão do trabalho como exploração, visto que o entrevistado
por ser criança, ao cumprir a tarefa do pai, trabalhava em dobro para um
patrão, no entanto recebia a quantia de um dia de trabalho.
Retrata-se aqui a importância do trabalho
da criança para o beneficiamento dos proprietários de terras, bem como, para o
sustento familiar e em contrapartida, a desvalorização dessa mão de obra.
O Sr. Benedito Neiva ratifica as
condições de vida das famílias rurais: “Era tudo pobrezinha rapaz,
eu ajudava meu pai a trabalhar para sustentar a família, meus irmãos, é! [...]”[42].
Em momento da sua fala, o Sr. Cosme
Lessa aponta também o trabalho fora de casa como possibilidade para suprir
algumas necessidades pessoais, como vestimentas e calçados, que conforme ele,
só era possível adquirir de tal forma, haja vista, todo fruto do trabalho na
produção familiar ser destinado a aquisição de alimentação.
Quando
aquele tempo que eu cheguei a trabalhar [fora], não cheguei a trabalhar muito,
esse dinheiro às vezes eu comprava um sapato, ou então uma calça e uma camisa,
porque meu pai e minha mãe não me davam, minha mãe ainda me dava, mas meu pai
nunca me dava. Então esse dinheiro a gente ganhava fora para comprar roupa para
vestir, porque o pai não dava a gente. A gente tinha que trabalhar fora, para
ganhar. O que plantasse aqui: amendoim, mandioca, fumo, tudo que nós
plantássemos aqui, tudo ia para ele, não ia nada para nós, tínhamos que ajudar
direto.[43]
O relato acima reflete um tom de
revolta, talvez pelo fato do entrevistado ter trabalhado nas lavouras
domésticas e todo lucro ser entregue ao pai, o qual seria o responsável por
aplicar no que lhe conviesse.
Charles Santana[44]
ressalta essa revolta expressa pelas experiências do trabalho durante a infância,
o que ele caracteriza como um radical importante para a representação das
situações vivenciadas pelos trabalhadores rurais ainda quando crianças.
Ressalta-se também a autoridade do pai,
representando a imposição do poder da figura masculina, que se sobrepõe aos
demais membros familiares.
Ainda podemos suscitar como base na
entrevista, a questão da autonomia, visto que, em alguns casos, como do Sr.
Cosme, a prática do “dar dia” era uma forma de suprir necessidades próprias, o
que confere certo grau de autonomia perante a família para aqueles que usaram
desta.
Essa autonomia também pode ser observada
quando à criança ou ao jovem é dada uma área para cultivo próprio.
Soraya
Conde procura ponderar algumas questões que deixam margens a análises e questionamentos
acerca da dificuldade de caracterizar o trabalho da criança rural, como uma
ajuda ou uma exploração forjada:
Onde termina a
ajuda da criança e começa a exploração é uma questão que nos desafia. [...]
Entretanto, à medida que a atividade da criança se dirige à troca por um
salário ou ocupa o trabalho/ emprego de outro adulto, recebe conotação
diferente. É preciso olhar o contexto em que a criança está situada [...]. O
ser criança, a atividade de ajuda desenvolvida e as relações com o modo de
produção capitalista.[xlv]
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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
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