Publicação brasileira técnico-científica on-line independente, no ar desde sexta-feira 13 de Agosto de 2010.
Não possui fins lucrativos, seu objetivo é disseminar o conhecimento com qualidade acadêmica e rigor científico, mas linguagem acessível.


Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Reflexões acerca da história social presente na ironia sagaz machadiana em pai contra mãe.



Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 5, Volume jul., Série 03/07, 2014, p.01-05.




Profª. Janete de Jesus Neves.

Licenciada em Pedagogia pela Faculdade de Ciência e Tecnologia Albert Einstein - FACTAE.
Especialista em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Federal da Bahia – UFBA.
Professora das séries iniciais na rede pública de ensino em Cruz das Almas/ BA.
 
 
O presente artigo trata-se de análise literária realizada no âmbito da disciplina Literatura Brasileira do curso de pós-graduação em Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Federal da Bahia (UFBA).  Este trabalho teve como principal objetivo avaliar a partir do contexto histórico representado a ironia machadiana presente no conto “Pai contra mãe”.
Para tanto, foram retomados alguns trechos do conto citado, os quais são simultaneamente acompanhados de reflexões sobre a temática abordada, neste caso, “a escravidão”.     

Reflexões.
Uma crítica sumária a sociedade da época, em que se entendia poder abortar qualquer desonra e/ou pecado de escravos, através do mando e desmando, assim como, do uso irrestrito de “trancas e cadeados”, o conto machadiano “Pai contra Mãe”, tem como personagem central Cândido Neves (ou Candinho, conforme nos aponta o narrador – notadamente em terceira pessoa).
Candinho, homem de propósitos medíocres, lança mão de vários ofícios até se achar enredado numa vida de “Capitão do mato”, em tempos de poucos escravos fujões.
De forma elucidativa e ao mesmo tempo irônica, Machado inicia o conto discorrendo sobre a escravidão e suas mazelas, assim como dos ofícios e aparelhos que ela (a escravidão) levou consigo.
Texto forte e notório por representar fidedignamente o Realismo, e caracterizar o “fenômeno abominável” do período escravista no Brasil antes de sua total extinção (abolição), a ironia sagaz machadiana se apresenta explicitamente no texto, como se pode verificar neste trecho, onde o narrador discorre sobre a máscara utilizada nos escravos para impedir que fizessem uso de bebidas,
 
“Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel...”.
Observa-se que Machado de Assis apresenta tal fato de forma simplista, que chega em certos momentos, a apresentar-se como “algo normal”.
Apesar deste conto ter sido escrito mais ou menos uma década após a abolição, a visão que o autor coloca na superfície do texto sobre o quanto miseravelmente vale uma vida humana é notado em vários momentos, como se percebe no seguinte passagem:
“Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse...”.
Em outros momentos parece haver certo humor satírico e estereotipado ao apontar acontecimentos ocorridos, como é o caso dos anúncios de escravos fujões presentes nos jornais:
“Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara no ombro, e na ponta uma trouxa...”.
Uma passagem que, não fosse o histórico massacrante que, permeia a realidade da época retratada, poderia fazer rir o leitor mais sereno, ao imaginar a cena.
 
Candinho, caçador de escravos, apaixona-se pela moça Clara, menina órfã, que convive com a tia Mônica e que assim como o rapaz, não tem lá muitos propósitos de vida, apesar de subtender-se no texto, ambições em melhorar, de ambas as partes.
Nesse trecho do conto, o autor tende um pouco ao romantismo, dado aos amantes, ponto que pode ser notado em:
“O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único”.
 
 
Casam-se, com honras e festas e vão morar com a tia Mônica numa casa pobre de aluguel.
Se analisarmos mais detidamente, veremos que a bem da verdade, o amor ora presente no texto através da figura do casal, cai por terra ao se confrontarem com a miséria que os espreita ao encontrar-se Clara grávida e, Cândido com seu ofício ameaçado, por conta dos poucos anúncios de escravos fugidos e da concorrência devido ao desemprego crescente.
O fato de Candinho ser um caçador de “escravos urbanos” dificultou em demasia seu ofício.
O desespero assolou, mal tinham o que comer, os alugueis foram se acumulando e, como não poderia deixar de ser (como na maioria das histórias) a “bruxa má” aqui, ora denominada tia Mônica (que não foi má em todos os momentos, talvez um tanto capitalista), traz a tona uma possibilidade de “conforto” para todos - levar o recém-nascido à Roda dos enjeitados.
Vejamos novamente aí, a sagacidade contundentemente machadiana.
Oras, se algo não me cai bem, livro-me dele (como de uma coisa qualquer)! Pergunta-se: Quanto vale uma vida?
Talvez tenha se perguntado Machado, somos meros objetos? Coisas que descartamos em qualquer lata de lixo de uma esquina de rua? E o leitor, o que pensará de tudo isso?
Inapto ao confronto, conforme o narrador nos revela no decorrer do conto, Cândido procura solução para o problema apresentado.
Nada solucionado nasce seu filho. Um menino!
A desesperança já impera em suas atitudes, se nega a entregar seu filho, mas não ver outro remédio.
Vê o anúncio de uma negra fujona, pela qual se dar por recompensa cem mil réis de gratificação, dinheiro que resolveria seus problemas, não necessitando assim, entregar seu filho como enjeitado.
Procura e não acha a negra. Deve entregar o pequeno.
O drama da pessoa humana, carne e sangue se se convergem  em migalhas de uma linhagem fraca de personalidade.
A vida de um, depende da vida do outro. Para que eu exista você tem que sumir, e assim por adiante.
Com o filho nos braços prestes a entregá-lo (e por sorte dele e azar dela), deu com a negra em uma rua escura. Consegue capturá-la com seu laço.
Arminda, assim se chamava a negra fujona, implora por caridade. É explicito o seu desespero no trecho a seguir,
“Estou grávida meu senhor! [...] Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava”.
A ironia apontada nesta passagem, põe em cheque o amor do pai pelo seu filho recém-nascido, e o da futura mãe pela sua criança ainda não nascida.
Essa é a relação que dá nome ao conto, a relação que muito possivelmente confunde a muitos leitores.
Agora pensemos! Se houvesse outro final para este conto, senão o dado a ele por Machado, ousaria Cândido dar seu filho como enjeitado e livrar àquela mulher do horror dos açoites que possivelmente a esperavam?
A ela e, futuramente ao seu filho? É um questionamento que Machado propõe implicitamente ao leitor, a título de instigar o confronto de ideias.
Candinho entrega a escrava ao seu dono, recebe os cem mil réis em duas notas de quinhentos e as guarda, e ali mesmo na sala do seu senhor, Arminda aborta.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as consequências do desastre.
Machado, apesar de resguardar a delicadeza do amor paterno, pois Cândido corre a Rua da Ajuda para buscar seu filho na farmácia, onde o havia deixado para caçar a negra Arminda, aponta a naturalidade com a qual nosso personagem central recebe o aborto da negra e a ainda denomina a cena, como um “espetáculo”, como se o episódio não passasse apenas de um passatempo burlesco.
“O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor”.
Uma vida, por outra vida! Sagazmente, através da narrativa melindrosa, a lei da selva se justifica, o mais forte vence.
Quem poderá condenar os “Candinhos” por amarem tanto a seus pequenos filhos e, fazerem qualquer coisa por eles?
Quem será pelas “Armindas” que veem seus filhos tirados de seus braços? Quem é réu e quem é juiz? Machado deixa a nosso critério decidir.
“Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto”.
 
Concluindo.
Não se tem aqui a pretensão de realizar resumos ou de estabelecer premissas quanto ao que levou Machado a escrever tal conto e deixar essa lacuna quanto ao julgamento do personagem, porém o que mais chama atenção nestes escritos é a aproximação e ao mesmo tempo o afastamento que a narrativa machadiana apresenta ao leitor, quando nas entrelinhas do texto ele nos pergunta sobre qual seria nossa atitude diante de tal situação.
Ele nos convida a atirar a primeira pedra, se formos capazes de fazê-lo.
Se nos detivermos um pouco mais sobre o texto veremos aí, o nosso personagem central descrito sagazmente, como algoz e como vítima de um mesmo sistema.
A frieza, característica capitalista e a esperança nitidamente resultante do amor marital e, antes de tudo paternal, são pontas opostas de um mesmo cordão, o que torna tudo tão dicotômico e nos aproxima mais do personagem.
Pois não é a vida uma grande dicotomia? Não vivemos entre altos e baixos? Entre o bem e o mal? Quem ousaria em sã consciência atirar essa pedra que pende pesada, em nossas mãos? Ou melhor, que ousaria não fazê-lo?
O tema escravidão por sua vez, traz a tona, as amarras com as quais até hoje convivemos.
A escravidão, como instituição social quase deflagrada na época representada, ainda assim, é associada aos cadeados e trancas de uma vida sem liberdade.
Então, Machado se utiliza de um jogo retórico e, contradizendo a falta de liberdade associada  à escravidão, tão detalhadamente caracterizada no início do conto aqui em mote, dá “liberdade” ao leitor, através de sua narrativa, de julgar a seu bel prazer o personagem.
 
Para saber mais sobre o assunto.
ASSIS, M. de. Pai contra mãe. In: . Contos: uma antologia. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v.2, p.483-94.
PESAVENTO, Sandra Jutahy. História e Literatura: uma velha-nova história. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos. História Cultural do Brasil. (Debates). Jan/2006.
QUANTO vale ou é por quilo? Direção de Sérgio Bianchi, 2005. 108 min, color., son. DVD.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Esteja a vontade para debater ideias e sugerir novos temas.
Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.