O presente
artigo trata-se de análise literária realizada no âmbito da disciplina Literatura
Brasileira do curso de pós-graduação em Estudos Linguísticos e Literários da
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Este trabalho teve como principal objetivo avaliar a partir do contexto
histórico representado a ironia machadiana presente no conto “Pai contra mãe”.
Para tanto, foram
retomados alguns trechos do conto citado, os quais são simultaneamente
acompanhados de reflexões sobre a temática abordada, neste caso, “a escravidão”.
Reflexões.
Uma crítica
sumária a sociedade da época, em que se entendia poder abortar qualquer desonra
e/ou pecado de escravos, através do mando e desmando, assim como, do uso
irrestrito de “trancas e cadeados”, o conto machadiano “Pai contra Mãe”, tem
como personagem central Cândido Neves (ou Candinho, conforme nos aponta o
narrador – notadamente em terceira pessoa).
Candinho, homem
de propósitos medíocres, lança mão de vários ofícios até se achar enredado numa
vida de “Capitão do mato”, em tempos de poucos escravos fujões.
De forma
elucidativa e ao mesmo tempo irônica, Machado inicia o conto discorrendo sobre
a escravidão e suas mazelas, assim como dos ofícios e aparelhos que ela (a
escravidão) levou consigo.
Texto forte e
notório por representar fidedignamente o Realismo, e caracterizar o “fenômeno
abominável” do período escravista no Brasil antes de sua total extinção
(abolição), a ironia sagaz machadiana se apresenta explicitamente no texto,
como se pode verificar neste trecho, onde o narrador discorre sobre a máscara
utilizada nos escravos para impedir que fizessem uso de bebidas,
“Era
grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o
grotesco, e alguma vez o cruel...”.
Observa-se que Machado
de Assis apresenta tal fato de forma simplista, que chega em certos momentos, a
apresentar-se como “algo normal”.
Apesar deste
conto ter sido escrito mais ou menos uma década após a abolição, a visão que o
autor coloca na superfície do texto sobre o quanto miseravelmente vale uma vida
humana é notado em vários momentos, como se percebe no seguinte passagem:
“Quem
perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse...”.
Em outros
momentos parece haver certo humor satírico e estereotipado ao apontar
acontecimentos ocorridos, como é o caso dos anúncios de escravos fujões
presentes nos jornais:
“Muita vez o anúncio trazia em cima
ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara no ombro, e
na ponta uma trouxa...”.
Uma passagem que,
não fosse o histórico massacrante que, permeia a realidade da época retratada,
poderia fazer rir o leitor mais sereno, ao imaginar a cena.
Candinho,
caçador de escravos, apaixona-se pela moça Clara, menina órfã, que convive com
a tia Mônica e que assim como o rapaz, não tem lá muitos propósitos de vida,
apesar de subtender-se no texto, ambições em melhorar, de ambas as partes.
Nesse trecho do
conto, o autor tende um pouco ao romantismo, dado aos amantes, ponto que pode
ser notado em:
“O
amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o
possível marido, o marido verdadeiro e único”.
Casam-se, com honras
e festas e vão morar com a tia Mônica numa casa pobre de aluguel.
Se analisarmos
mais detidamente, veremos que a bem da verdade, o amor ora presente no texto
através da figura do casal, cai por terra ao se confrontarem com a miséria que
os espreita ao encontrar-se Clara grávida e, Cândido com seu ofício ameaçado,
por conta dos poucos anúncios de escravos fugidos e da concorrência devido ao
desemprego crescente.
O fato de Candinho
ser um caçador de “escravos urbanos” dificultou em demasia seu ofício.
O desespero
assolou, mal tinham o que comer, os alugueis foram se acumulando e, como não
poderia deixar de ser (como na maioria das histórias) a “bruxa má” aqui, ora
denominada tia Mônica (que não foi má em todos os momentos, talvez um tanto
capitalista), traz a tona uma possibilidade de “conforto” para todos - levar o recém-nascido
à Roda dos enjeitados.
Vejamos novamente
aí, a sagacidade contundentemente machadiana.
Oras, se algo
não me cai bem, livro-me dele (como de uma coisa qualquer)! Pergunta-se: Quanto
vale uma vida?
Talvez tenha se
perguntado Machado, somos meros objetos? Coisas que
descartamos em qualquer lata de lixo de uma esquina de rua? E o leitor, o
que pensará de tudo isso?
Inapto ao
confronto, conforme o narrador nos revela no decorrer do conto, Cândido procura
solução para o problema apresentado.
Nada solucionado
nasce seu filho. Um menino!
A desesperança
já impera em suas atitudes, se nega a entregar seu filho, mas não ver outro
remédio.
Vê o anúncio de
uma negra fujona, pela qual se dar por recompensa cem mil réis de gratificação,
dinheiro que resolveria seus problemas, não necessitando assim, entregar seu
filho como enjeitado.
Procura e não
acha a negra. Deve entregar o pequeno.
O drama da
pessoa humana, carne e sangue se se convergem em migalhas de uma linhagem fraca de
personalidade.
A vida de um,
depende da vida do outro. Para que eu
exista você tem que sumir, e assim
por adiante.
Com o filho nos
braços prestes a entregá-lo (e por sorte dele e azar dela), deu com a negra em
uma rua escura. Consegue capturá-la com seu laço.
Arminda, assim
se chamava a negra fujona, implora por caridade. É explicito o seu desespero no
trecho a seguir,
“Estou
grávida meu senhor! [...] Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor
dele que me solte; eu serei sua escrava”.
A ironia
apontada nesta passagem, põe em cheque o amor do pai pelo seu filho recém-nascido,
e o da futura mãe pela sua criança ainda não nascida.
Essa é a relação
que dá nome ao conto, a relação que muito possivelmente confunde a muitos
leitores.
Agora pensemos!
Se houvesse outro final para este conto, senão o dado a ele por Machado,
ousaria Cândido dar seu filho como enjeitado e livrar àquela mulher do horror
dos açoites que possivelmente a esperavam?
A ela e,
futuramente ao seu filho? É um questionamento que Machado propõe implicitamente
ao leitor, a título de instigar o confronto de ideias.
Candinho entrega
a escrava ao seu dono, recebe os cem mil réis em duas notas de quinhentos e as
guarda, e ali mesmo na sala do seu senhor, Arminda aborta.
O
fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os
gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia
que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que
ele fez sem querer conhecer as consequências do desastre.
Machado, apesar
de resguardar a delicadeza do amor paterno, pois Cândido corre a Rua da Ajuda
para buscar seu filho na farmácia, onde o havia deixado para caçar a negra
Arminda, aponta a naturalidade com a qual nosso personagem central recebe o
aborto da negra e a ainda denomina a cena, como um “espetáculo”, como se o
episódio não passasse apenas de um passatempo burlesco.
“O
pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há
pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor”.
Uma vida, por
outra vida! Sagazmente, através da narrativa melindrosa, a lei da selva se
justifica, o mais forte vence.
Quem poderá
condenar os “Candinhos” por amarem tanto a seus pequenos filhos e, fazerem
qualquer coisa por eles?
Quem será pelas “Armindas”
que veem seus filhos tirados de seus braços? Quem é réu e quem é juiz? Machado
deixa a nosso critério decidir.
“Cândido
Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se
lhe dava do aborto”.
Concluindo.
Não se tem aqui
a pretensão de realizar resumos ou de estabelecer premissas quanto ao que levou
Machado a escrever tal conto e deixar essa lacuna quanto ao julgamento do
personagem, porém o que mais chama atenção nestes escritos é a aproximação e ao
mesmo tempo o afastamento que a narrativa machadiana apresenta ao leitor, quando
nas entrelinhas do texto ele nos pergunta sobre qual seria nossa atitude diante
de tal situação.
Ele nos convida
a atirar a primeira pedra, se formos capazes de fazê-lo.
Se nos detivermos
um pouco mais sobre o texto veremos aí, o nosso personagem central descrito
sagazmente, como algoz e como vítima de um mesmo sistema.
A frieza,
característica capitalista e a esperança nitidamente resultante do amor marital
e, antes de tudo paternal, são pontas opostas de um mesmo cordão, o que torna
tudo tão dicotômico e nos aproxima mais do personagem.
Pois não é a
vida uma grande dicotomia? Não vivemos entre altos e baixos? Entre o bem e o
mal? Quem ousaria em sã consciência atirar essa pedra que pende pesada, em
nossas mãos? Ou melhor, que ousaria não fazê-lo?
O tema
escravidão por sua vez, traz a tona, as amarras com as quais até hoje
convivemos.
A escravidão,
como instituição social quase deflagrada na época representada, ainda assim, é
associada aos cadeados e trancas de uma vida sem liberdade.
Então, Machado
se utiliza de um jogo retórico e, contradizendo a falta de liberdade associada à escravidão, tão detalhadamente caracterizada
no início do conto aqui em mote, dá “liberdade” ao leitor, através de sua
narrativa, de julgar a seu bel prazer o personagem.
Para
saber mais sobre o assunto.
ASSIS, M. de. Pai contra mãe. In: . Contos: uma antologia.
Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. v.2, p.483-94.
PESAVENTO, Sandra Jutahy. História e Literatura:
uma velha-nova história. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos. História Cultural do Brasil.
(Debates). Jan/2006.
QUANTO vale ou é por quilo? Direção de Sérgio Bianchi, 2005. 108
min, color., son. DVD.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Esteja a vontade para debater ideias e sugerir novos temas.
Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.