Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume mar., Série 09/03, 2011, p.01-08.
Nesse ano de 2011, completam-se cento e quarenta anos de nascimento e fim da Comuna de Paris, o que nos leva a repensá-la e a novamente trazer à tona as inúmeras discussões historiográficas sobre o tema.
Foram inúmeros os trabalhos escritos e publicados sobre tal experiência histórica, desde seu fim definitivo em maio de 1871, cada um deles com um enfoque teórico diferente, mas sempre buscando compreendê-la em toda a sua complexidade.
Hoje, ao relembramo-la, vale a pena pensarmos também as maneiras de estudá-la, interpretá-la e mesmo buscar formas de reescrever esta história.
Isto, no entanto, nos leva a inúmeras indagações e discussões.
Por exemplo, é muito comum lermos que a Comuna foi uma tentativa derrotada de revolução social comunista ou mesmo uma experiência pequeno-burguesa e ingênua.
Essas interpretações, carregadas de intencionalidades tão próprias do trabalhão dos historiadores e sociólogos, são expressão da própria diversidade de pensamento e ação dos seus militantes e da forma complexa e diversa como a temática foi organizada por eles.
A Comuna de Paris foi obra de militantes de inúmeras tendências político-ideológicas, como bakuninistas, proudhonianos, blanquistas, marxistas e republicanos.
Lutaram juntos contra o armistício proposto pelo Governo Imperial e, posteriormente, Republicano.
Houve uma união após a proclamação da república, incitada pela própria população de Paris, em 4 de setembro de 1870.
Além da contribuição da guerra franco-prussiana, considerada uma traição pela maior parte do povo de Paris, que buscava também, e acima de tudo, construir uma nova forma de organização da vida política, econômica e social.
Estas tendências não defendiam os mesmos métodos e princípios de organização social.
Bakuninistas defendiam a proclamação revolucionária de uma comuna livre e igualitária, a expropriação e a coletivização dos modos de produção, das terras e do trabalho.
Proudhonianos defenderam a Comuna como forma de organização de uma sociedade de livres produtores.
Blanquistas observavam-na como a possibilidade de construir um governo esclarecido e contrário ao armistício e a invasão prussiana.
Republicanos, pensavam-na como uma república popular e de defesa da pátria da ameaça estrangeira.
Marxistas, enxergavam na Comuna a possibilidade de luta para se chegar à ditadura do proletariado e à construção do comunismo.
Historiadores e militantes destas várias tendências buscaram interpretar a Comuna de Paris desde sua hecatombe e produziram grandes trabalhos historiográficos e sociológicos sobre o tema.
Cada um deles tentando explicar seu funcionamento e, principalmente, as razões de seu fim.
O materialismo histórico e a Comuna de Paris.
As variadas tendências político-ideológicas presentes durante os dois meses de existência da Comuna de Paris influenciaram as interpretações posteriores sobre ela e a historiografia sobre o tema.
Marx e Engels, por exemplo, afirmavam a Comuna como uma obra heróica de pessoas que deram a própria vida em nome da luta.
Porém afirmavam que, para ser vitoriosa, essa experiência deveria ter seguido o processo histórico inevitável, defendido por eles no “Manifesto Comunista” de 1848.
Ou seja, a Comuna haveria fracassado por causa de “circunstâncias históricas inevitáveis” (MARX e ENGELS, 1979, p.01).
Ela não teria obedecido nem o desenvolvimento das forças produtivas, nem a preparação do proletariado.
“Para que uma revolução social possa triunfar são necessárias pelo menos duas condições: forças produtivas altamente desenvolvidas e um proletariado bem preparado. Mas em 1871 estas duas condições estavam ausentes. O capitalismo estava ainda pouco desenvolvido e a França era sobretudo um país de pequena burguesia (artesões, camponeses, lojistas, etc). Não existia partido operário; a classe operária não tinha nem preparação nem grande arrebatamento e, no seu conjunto, não tinha mesmo uma idéia muito clara das suas tarefas e dos meios de as realizar. Não havia nem uma real organização política do proletariado, nem sindicatos nem associações cooperativas de massa” (LENIN, apud: MARX e ENGELS, 1979, p.21).
Dessa forma, a Comuna de Paris não havia obedecido às etapas, que segundo Marx e seu companheiro Engels, eram essenciais à vitória da classe operária para que alcançasse seu objetivo final: a ditadura do proletariado e, posteriormente, o comunismo.
Para o autor de O Capital, o movimento contava com militantes com “energia revolucionária, mas com pouca propensão para análise das condições objetivas da sociedade” (MARX, apud: GONZÁLEZ, 1982, p.96).
A Comuna não havia esperado que as condições históricas necessárias ao processo revolucionário tivessem se desenvolvido.
Tal modelo interpretativo não dá conta dos sujeitos atuantes na Comuna, da sua pluralidade de pensamentos e ações, dos seus vários componentes ideológicos, das ações reais do dia-a-dia, da nova organização do viver de sujeitos anônimos para a sociedade da época.
Esses sujeitos atuaram e lutaram sem se submeterem a modelos e a sujeitamentos, suas lutas foram autônomas e autogeridas.
Como já afirmava Thompson (2008), historiador marxista heterodoxo e defensor da história das pessoas comuns, os sujeitos atuam nas “fissuras” das relações de poder e dominação para construírem sua cultura e seu viver.
“[...] Revolução com autores. [...] Formaram um exército e um governo, dirigiram a cidade durante dois meses, promulgaram numerosos decretos. Exerceram o poder, desde o sufrágio universal até um póstumo ensaio de “terror”. As ideologias marcharam com o fuzil ao ombro, os fuzilados davam eles mesmos a voz de fogo, gritando “Viva a Comuna” e não faltou, à hora do testemunho final um emocionado e estranho. Viva a Humanidade” (GONZÁLEZ, 1982, p.107).
A História Social e a Comuna de Paris.
Como já observamos acima, embora sucintamente, outra maneira de se observar a e escrever a história da Comuna de Paris é a “história vista de baixo” ou das pessoas comuns - a história social.
Historiadores como Edward Palmer Thompson, Paul Thompson e o estudioso da Escola de Frankfurt, que escreveu teses sobre a história, Walter Benjamin, nos ajudam compreender essa corrente historiográfica desta experiência histórica, mesmo sem terem se dedicado ao estudo dela.
A História Social também foi utilizada pelos anarquistas das mais variadas correntes de pensamento e ação (bakuninistas, proudhonianos e comunistas) para contar a história da Comuna de 1871.
Walter Benjamin nos afirmava em seu último escrito Sobre o conceito de História (1940) que o termo História (Geschichte) “designa tanto o processo de desenvolvimento da realidade no tempo, como o estudo desse processo ou relato” (GAGNEBIN, apud: BENJAMIN, 1994, p.07).
Ou seja, designa uma realidade, um acontecimento que o historiador define como histórico e não é uma representação de algo que se apreende como um suposto real, não é somente um discurso, é o estudo de uma realidade ou de um relato sobre essa realidade realizado por um cronista que “[...] narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a História” (MENDES, 2010, p. 10).
“Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1994, p.223).
O historiador, diferentemente do cronista que não é obrigado a explicar os episódios com que lida, é o responsável por buscar experiências vividas.
O historiador não se contenta em só representar as experiências, como faz um cronista, não estrutura apenas uma “transmissão pura do que está sendo narrado” (MENDES, 2010, p.10).
Ele tenta fazer uma reconstrução (e não reconstituição) de um passado que não existe mais.
Para tal, coloca sua subjetividade em ação, como colocava Paul Thompson em A voz do passado (1992).
Sob essa perspectiva, o historiador social, que busca experiências vividas nos dois meses de existência da Comuna de Paris, pode entendê-las a partir do que dizem seus militantes, através de suas memórias e relatos deixados para a posteridade.
A reconstrução da história de vida dessas pessoas deve levar em conta os ideais e concepções nas quais estavam envolvidas, nos quais buscavam explicações para suas vidas e sua militância e sobre os quais as próprias puderam imprimir suas próprias formas de pensar e agir (MENDES, 2010, p.10 e 11).
Essa constitui uma forma de deixá-las falar para se escrever uma história de um evento ora esquecido, ora estigmatizado por modelos interpretativos rígidos.
Entender as memórias pessoais e relatos do cotidiano dos participantes da Comuna significa resgatar a própria memória dessa experiência, relembrada hoje, mais de um século depois, como experiência de grande relevância histórica.
Em 26 de março de 1871 a população parisiense votou pela Comuna.
Soldados, exército e marinha entraram no edifício da Câmara Municipal com bandeiras e faixas vermelhas, assim como com o busto da República.
Dois dias depois, em 28 de março do mesmo ano, entre os intervalos dos tiros de canhão o povo proclamava a Comuna, aos gritos de “Viva a Comuna!”.
Esta população não acreditava que se deveria esperar um momento histórico específico para construir uma forma de viver de acordo com princípios de auto-organização e descentralização do poder, não foram ingênuos, nem assujeitados.
Lutaram até maio do mesmo ano, diante da implacável perseguição do governo republicano, instalado em Versalhes, empunharam armas, ergueram barricadas e organizaram uma nova estrutura de governo, descentralizado, para uma cidade já tão castigada pela guerra.
“[...] Haviam criado seus próprios espaços culturais, possuíam meios de fazer valer as suas normas, e cuidavam para receber o que lhes era devido. Talvez não fossem os direitos de hoje em dia, mas não eram sujeitos passivos da história”. (THOMPSON, 2008, p. 346).
As primeiras medidas da Comuna foram: a abolição dos cultos e proibição da venda de objetos Mont-de Pieté; a confiscação dos bens de raiz; a instituição de pensão para os federados feridos na guerra, revertendo-a para a mulher ou filho em caso de morte em combate do mesmo.
Além disto, instituíram a pensão alimentar dada as mulheres que se separassem com provas válidas; a abolição dos processos; interdição de investigações sem mandados regulares; a proibição da acumulação de empregos e fixação do ordenado máximo de seis mil francos anuais.
Para estimular a continuidade da luta promulgaram os pagamentos aos membros da Comuna de quinze francos por dia; a organização de um tribunal civil; aquisição de oficinas, abandonadas pelos donos, pelas sociedades do trabalho.
Foram mais longe ao estabelecer o pagamento de professores em dois mil francos; a derrubada da Coluna de Vendôme (erguida em homenagem a Napoleão); a proibição de multas nas oficinas; abolição de discursos políticos e profissionais; e o fim da execução dos prisioneiros de Versalhes (MENDES, 2010, p. 134) .
Não houve extinção da propriedade privada, nem expropriação dos meios de produção, como pensavam anarquistas e marxistas.
Nem por isso, seus militantes deixaram de lutar e acreditar no que até então era um sonho: a construção de uma nova sociedade.
Quando dissemos isso, não queremos dizer que se deva descartar tudo o que foi escrito até hoje sobre o período, nem os estudos baseados em modelos que afirmam a Comuna como vitoriosa ou perdedora, mas que devemos buscar novos olhares e uma história dos sujeitos atuantes, como defenderam os anarquistas, assim como historiadores Edward Palmer Thompson e Paul Thompson.
Pensar que uma experiência história somente perdeu ou venceu significaria abrir mão das vivências, da experiência histórica em sua complexidade e diversidade e, como afirmou Walter Benjamin nada do que já foi vivido pode ser considerado irrelevante para a história.
A Comuna de 1871 é um grande exemplo disso, e, por isso, buscamos relembrá-la e mesmo reescrever sua história nesse mês de março de 2011, cento e quarenta anos depois de seu surgimento.
“O historiador quer saber como viviam em tal época os membros de que se compunha tal nação, quais eram as suas crenças e os seus meios de existência, qual era o seu ideal social, e que meios possuíam para caminharem para este ideal. E pela ação de todas estas forças, outrora desprezadas, interpretará os grandes fenômenos históricos. [...] A história, depois de ter sido a história dos reinos, tende a ser a história dos povos, e, por fim, o estudo dos indivíduos”. (KROPOTKIN, 2001, p.30-31).
Certamente contar a história da Comuna significa contar a história dos indivíduos, como já defendia o anarquista Piotr Kropotkin no início do século XX.
Concluindo.
Pudemos perceber que a História da Comuna de Paris foi contada de inúmeras maneiras, assim como eram inúmeras as tendências políticas que estavam presentes nos seus dois meses de existência.
A História Social é uma dessas maneiras ela nos permite pensar a Comuna como obra de sujeitos históricos que pensaram e agiram para além das diferenças que ali estavam colocadas e guiados pelo sonho de construir uma nova forma de viver, não submissa a um governos único e aos modelos capitalistas de economia.
Para saber mais sobre o assunto.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris - os assaltantes do céu. São Paulo: Brasiliense, 1982.
KROPOTKIN, Piotr. A anarquia: sua filosofia, seu ideal. São Paulo: Imaginário, 2001.
MARX, Karl e ENGELS, Fredrich. A Comuna de Paris. Belo Horizonte: Aldeia Global, 1979.
MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas na cidade de São Paulo (1889-1930). Franca: Unesp, 2010. Dissertação de mestrado. disponível em: http://www.franca.unesp.br/poshistoria/samanta.pdf
MICHEL, Louise. A Comuna 1. Lisboa: Editorial Presença, 1971.
MICHEL, Louise. A Comuna 2. Lisboa: Editorial Presença, 1971.
MICHEL, Louise. Cartas a Victor Hugo. Vinhedo/São Paulo: Ed. Horizonte, 2005.
MICHEL, Louise. Mis recuerdos de la Comuna. México. D. F: Siglo Veintiuno Editores, 1973.
Texto: Profa. Ms. Samanta Colhado Mendes.
Graduada em História e Mestre em História e Cultura Social pela Unesp.
Membro do Conselho Editorial de “Para entender a história...”
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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
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