Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume jun., Série 22/06, 2011, p.01-11.
Nos diferentes períodos históricos as sociedades humanas têm apresentado, como traço comum, a definição de critérios para a hierarquização social.
O que pode ser observado nas formas de ocupação no mundo do trabalho, nas restrições ao saber erudito ou formal, nos privilégios ligados ao lugar de nascimento, à condição econômica, ao acesso ao poder, bem como nas formas de tratamento social, que identificam o status individual ou coletivo.
A palavra hierarquia, aliás, do grego hieros, sagrado, e arquia, autoridade, ou do latim hierarchia, significa, na origem, a distinção entre os membros de uma mesma sociedade, inicialmente vinculada à dignidade do sacerdote e aos saberes reservados a um grupo social específico.
Desde a passagem das sociedades primitivas para as primeiras “civilizações”, com o advento da propriedade privada e da sociedade de classes, instituem-se a religião, a educação secreta, a autoridade paterna e a submissão das mulheres, filhos e trabalhadores, e a separação entre os que detêm o saber e os que estão subordinados aos poder.
Formar o homem para ocupar postos de comando, esse pode ser considerado o ideal da educação de diferentes povos, espaços e tempos.
E, assim, os bens culturais foram sendo mantidos como privilégios, até que a sociedade contemporânea estabelecesse novos critérios legais para garantida dos direitos.
Analisemos alguns exemplos históricos.
Hierarquia e poder no Egito Antigo.
No Egito antigo, o faraó, maior autoridade política, era considerado filho de Amon-Rá, o deus-sol, e também a encarnação de Hórus, o deus-falcão, o que indica uma hierarquia legitimadora de um governo teocrático.
O faraó comandava o exército, a justiça e o trabalho.
Devido às intrínsecas relações entre a dimensão política, social e religiosa, os egípcios possuíam uma cultura própria, segundo a qual se prostravam em frequentes rituais ao faraó, pois acreditavam que dele advinha toda a felicidade que o povo pudesse desfrutar.
A família do faraó era privilegiada.
Sua primeira esposa recebia o título de rainha, seus parentes cargos políticos e patentes militares, comandando o exército e a administração, de modo que não apenas constituíam a nobreza palaciana, mas usufruíam de grandes domínios e uma vida de ostentação e riquezas.
Uma categoria social privilegiada era a dos sacerdotes, cujo saber e posto eram transmitidos de pai para filho.
O mais importante dentre eles recebia a denominação de “Profeta de Amon”, fazendo parte da cúpula do poder e exercendo grande influência política.
Cabia aos sacerdotes a administração dos bens dos templos, além de suas propriedades particulares, que recebiam do Estado pelos serviços prestados.
Os escribas formavam-se nas escolas do palácio, com uma cultura diferenciada, tendo acesso ao conhecimento da escrita sagrada, hieroglífica, e os demais registros escritos, razão pela qual exerciam funções religiosas e burocráticas, podendo ocupar cargos de magistratura, inspeção, fiscalização e coleta de impostos.
Em determinadas épocas foram chamados “os olhos e ouvidos do faraó”.
Outra camada social de destaque era a dos militares, que cumpriam a função de controle territorial, econômico e social.
Artesãos e camponeses compunham as camadas inferiores da sociedade, eram trabalhadores mal remunerados, morando, vestindo-se e alimentando-se humildemente.
Finalmente, haviam os escravos, obtidos nas guerras por maiores domínios e riquezas.
Do ponto de vista da cultura e da educação, os sacerdotes e escribas eram os mais beneficiados, detendo os conhecimentos disponíveis e produzindo novos saberes, como a Matemática e a Geometria, que eram aproveitados na arquitetura dos templos, túmulos e palácios; a Medicina, na realização de cirurgias, no conhecimento da circulação do sangue e das infecções de olhos e dentes, e demais cuidados com o corpo, durante a após a vida; a Astronomia, nos estudos das cheias do Nilo e dos ciclos da Natureza, cujas investigações permitiram-lhes identificar planetas e constelações, construir o relógio de água, organizaram o calendário solar, dividindo o dia em 24 horas e a hora em minutos, segundos e terços de segundo.
A escrita sagrada, dos túmulos e templos, e a demótica, mais popular, usada nos documentos e textos poéticos, religiosos ou cotidianos redigidos pelos escribas preservaram informações fundamentais sobre aquele modo de vida.
Devido a tais registros, é possível perceber que o conceito de cidadania não está sistematizado no Egito antigo, embora houvesse distinções segundo estruturas sociais, econômicas e de poder.
Cidadania e exclusão na Antiguidade grega.
Para se falar em cidadania é necessário redirecionar o olhar para outro tempo e espaço: a Antiguidade Clássica.
Até hoje temos a influência do modelo criado, primeiramente, na Grécia antiga, e depois atualizado ao longo da história, nos vários momentos em que os direitos individuais e coletivos foram debatidos, exigidos ou institucionalizados.
Entre os gregos e os romanos o direito à cidadania excluía estrangeiros, mulheres e escravos, sendo que apenas alguns homens tinham direitos políticos e eram, portanto, considerados cidadãos.
Por exemplo, a sociedade da polis ateniense, isto é, da cidade-estado de Atenas, era formada por três categorias: os cidadãos eram os homens livres, nascidos na cidade, filhos das famílias tradicionais, proprietários de terras e escravos.
Os estrangeiros, denominados metecos, ainda que livres ou ricos, não tinham a possibilidade de integrarem-se ao corpo de cidadãos.
Os escravos, adquiridos em disputas militares ou assim tornados por dívidas, formavam o grupo social menos privilegiado.
Quanto aos que podiam usufruir dos direitos políticos, a cidadania estava fundamentada no ócio, ou seja, o trabalho constituía-se em atividade menos digna.
Assim, para ser cidadão era preciso possuir bens e escravos para a produção, de modo que os homens das famílias mais ricas podiam viver na cidade e se dedicar à política, à filosofia, ao esporte, à arte, enquanto as suas terras eram trabalhadas.
Existiam também os homens livres de condição social mais modesta, que trabalhavam como artesãos em pequenas oficinas ou possuíam pequenos lotes de terras, onde se ocupavam com o trabalho agrícola, juntamente com outros membros da família e alguns poucos escravos.
Os estrangeiros eram, na maioria, comerciantes e por não terem nascido na polis, ainda que ricos, não poderiam ser considerados cidadãos.
Os metecos de condição média trabalhavam em oficinas, na fabricação de artefatos, móveis e armas, na produção de obras de arte ou ourivesaria, e nas construções públicas.
Em Atenas, os escravos eram comercializados, tal como outros produtos de valor, sendo que todo cidadão, para manter seu status, deveria possuir ao menos um escravo, e mais de dez escravos para ser considerado com boa condição de vida.
Em A Política, Aristóteles afirma:
“Mas, já que estamos a examinar qual a constituição política perfeita, sendo essa constituição a que mais contribui para a felicidade da cidade [...], os cidadãos não devem exercer as artes mecânicas nem as profissões mercantis; porque este gênero de vida tem qualquer coisa de vil, e é contrário à virtude [...] É preciso mesmo, para que sejam verdadeiramente cidadãos, que eles não se façam lavradores; porque o descanso lhes é necessário para fazer nascer a virtude em sua alma, e para executar os deveres civis”.
E o que cabia ao cidadão nessa sociedade?
A política, o debate de ideias, a participação nos cerimoniais religiosos, a prática do esporte, o culto à retórica, a busca do saber e da beleza eram as atividades próprias do cidadão.
Tais atividades, notoriamente, manifestavam-se na ágora, o espaço público, que dava visibilidade à condição social e ao status que o cidadão orgulhosamente ostentava.
Escravos, trabalhadores livres e mulheres, inclusive esposas de cidadãos, não participavam da vida pública cidadã, pois todas as atividades, funções e ocupações ligadas ao provimento da sobrevivência, como comer, vestir, procriar etc. deveriam estar limitadas ao espaço privado, doméstico, ao oikos.
A educação também era uma atividade restrita ao cidadão, como explica a própria palavra escola, do grego, o lugar do ócio, era o espaço destinado aos que dispunha, portanto, de tempo livre para cultivar o intelecto.
Cidadania e exclusão na república romana.
A sociedade romana também era formada por hierarquias ligadas ao poder econômico, ao mundo do trabalho e à condição de nascimento.
De acordo com a tradição, Rômulo, o fundador, teria escolhido para conselheiros cem pater famílias, pais de família, que teriam formado o primeiro Senado romano, e cujos descendentes passaram a ser chamados patrícios, constituindo a categoria social detentora dos privilégios, da propriedade das terras, dos direitos políticos e dos escravos.
No outro lado estavam os plebeus.
Ainda que nascidos nas mesmas terras, não eram considerados herdeiros da linhagem patrícia e, por isso, ainda que livres ou ricos, não tinham direitos políticos e somente após o século V a.C. receberam o direito de se casarem com pessoas de outra condição social.
Havia também os plebeus camponeses, que quando endividados tinham como propriedade a oferecer apenas a sua própria pessoa, estando sujeitos aos abusos e explorações.
O poder político era exercido pelos patrícios magistrados, eleitos pela Assembleia para os cargos de cônsules, pretores, censores, questores, tribunos da plebe e edis.
Os cônsules tinham as funções de comandar o exército, convocar o Senado e presidir os cultos públicos.
Os pretores eram os responsáveis pelas questões ligadas à justiça e poderiam, inclusive, ser nomeados para governar províncias conquistadas pelos romanos.
Os censores tinham mandado de cinco anos, período em que deveriam realizar o censo para identificar os cidadãos e suas riquezas, bem como verificar sua conduta e orientar os trabalhos públicos.
Os questores prestavam orientação financeira aos cônsules e administravam o tesouro depositado no Templo de Saturno.
Os tribunos da plebe deveriam zelar pelo interesse do seu grupo social e em épocas de paz vetar as leis que fossem contrárias aos seus interesses.
Os edis eram encarregados de vigiar e conservar os trabalhos públicos quanto aos mercados, policiamento e abastecimento.
O Direito Romano assim definia:
“A principal diferença entre as pessoas, quanto ao direito, é esta: todos os homens são ou livres ou escravos.
Os homens livres subdividem-se em nascidos livres e libertos ou forros. São nascidos livres os que assim nasceram; são libertos os que foram alforriados.
Está determinado em Lei que os escravos que, a título de pena, tiverem sido encarcerados pelos seus senhores, ou marcados a ferro em brasa, ou tenham sido punidos por um delito cometido, ou entregues ao combate contra animais selvagens ou como gladiadores ou na prisão e que, depois, tenham sido alforriados pelos seus próprios donos ou por alguém mais, terão eles, tornando-se livres, a mesma condição dos estrangeiros que não são cidadãos romanos [...].”
No Império Romano, as contradições sociais e econômicas eram evidentes, mas a política do “pão e circo” faziam com que os desempregados, excluídos dos direitos e desprovidos dos bens materiais se reunissem para apreciar as lutas entre feras e homens e receber, como prêmio, o mínimo de alimento.
Tal forma de conduzir a sociedade, somada ao mito da grandeza do Império, foram eficientes para conter a população faminta, ao menos por certo tempo.
Mas a própria expansão territorial e econômica fez com que Roma se tornasse espaço de concentração de diferentes povos e culturas, o que levaria, mais tarde, à queda do Império e à desestruturação daquele modelo sociocultural.
Direitos e privilégios na Europa medieval.
Com o fim do Império Romano, organizou-se na Europa um novo modo de vida, com a destruição das cidades, suas instituições políticas e produções culturais, e um amplo processo de ruralização.
Apesar das rupturas, assim como na Antiguidade, na Idade Média havia divisão social baseada no poder econômico e nos direitos socialmente instituídos, de modo que permaneceu a diferenciação entre os que tinham e os que não tinham acesso à educação.
Basicamente a sociedade estava dividida entre nobres e camponeses, mas existiam as subdivisões, com pequenas hierarquias entre elas.
Os nobres, proprietários de terras, os feudos, tinham todos os direitos reservados, cobrando obrigações dos seus servos.
Com isso, podiam dedicar-se à política, à religião, à guerra e aos divertimentos.
Devido à tradição de legar os bens como herança ao filho primogênito, muitas vezes o segundo ou outro filho era encaminhado aos trabalhos religiosos, compondo um grupo social específico, o clero católico.
Mas se o filho da nobreza não herdasse terras ou bens que o pudessem manter, encaminhava-se para os serviços da cavalaria, que era praticamente uma categoria social a parte, pois seus membros eram identificados pela atuação em batalhas, como também por pertencerem a um código cavalheiresco, com ritos e obrigações próprias.
Os camponeses, servos, tinham como obrigações o trabalho na terra e o pagamento de impostos, sem se beneficiar dos bens comunais.
Pagavam a corveia, que era a prestação de serviços nas terras do senhor; a banalidade, pelo uso dos equipamentos de trabalho; a talha, uma porcentagem pela produção; o dízimo, pago à Igreja; a mão-morta, pelo recebimento de herança; o consórcio, uma autorização para o casamento; o pedágio, para cruzar as terras de outros feudos, dentre outros impostos.
No século VI d.C., o Papa Gregório apresentou suas reflexões sobre as hierarquias sociais e seu caráter divino:
“A Providência instituiu graus diversos e ordens distintas, para que se os inferiores testemunharem respeito aos superiores e sempre os superiores gratificarem com amor os inferiores, se realize a verdadeira concórdia e conjunção (contextio: a palavra evoca, muito concretamente, um tecido, uma trama), a partir da diversidade. De qualquer maneira, a comunidade não poderia em verdade subsistir, se a ordem global da disparidade não a preservasse. Que a criação não pode governar-se em igualdade é o que nos demonstra o exemplo das milícias celestes: há anjos e arcanjos que, manifestamente, não são iguais, diferindo uns dos outros pelo poder e pela ordem”.
As escolas eram os mosteiros, os alunos, os monges e, desse modo, somente o clero recebia educação formal, e alguns poucos nobres interessavam-se pela cultura.
Quando surgiram as universidades europeias, somente membros da Igreja e poucos nobres ou burgueses ricos tiveram acesso ao conhecimento superior.
Hierarquias e privilégios na Idade Moderna.
Na Modernidade, entre os séculos XV e XVIII, também havia divisão social baseada nos mesmos critérios de distinção dos períodos anteriores.
Na França moderna, por exemplo, a divisão social básica era: primeiro estado: o clero; segundo estado: a nobreza; terceiro estado: o restante da sociedade.
Os nobres eram proprietários de terras ou membros do clero, podiam ser ricos ou empobrecidos, cultos ou ignorantes, mas estavam no topo da sociedade, eram considerados superiores ao terceiro estado.
Os burgueses buscavam conquistar o direito de igualdade política e social, uma vez que eram os mais ricos, mas não tinham os privilégios dos nobres.
Assim, financiaram uma revolução cultural, o Renascimento, com o desenvolvimento da ciência e da arte, das grandes navegações e da colonização da América, onde foram implantadas sociedades escravistas.
Nas sociedades coloniais americanas, a divisão social básica era: homens livres e ricos, europeus e seus descendentes; homens livres e pobres, europeus e seus descendentes; indígenas, livres ou escravizados; e negros africanos e seus descendentes, escravizados.
Com o declínio do modelo escravista surgiu uma categoria sem status jurídico definido, a dos libertos.
Em todos os casos, a educação era um privilégio de classe, destinada apenas aos homens livres.
Na Europa, uma primeira tentativa de ampliar os direitos de educação ao corpo social ocorreu na época da Reforma protestante, quando Martinho Lutero, ao apontar a necessidade de o povo, em geral, conhecer as Sagradas Escrituras, defendeu a participação dos governantes na organização de sistemas públicos de ensino.
Embora esse pensamento tenha se propagado em diferentes partes do mundo, a estrutura social sofreu alterações apenas quando da ascensão da burguesia, contexto em o mundo do trabalho e da cultura organizou-se de modo a contemplar os anseios da nova classe dominante.
Após o Renascimento cultural, a Reforma protestante e a Contra-reforma católica, ampliou-se o número de colégios e centros de ensino superior, com farta produção científica, filosófica e artística.
Mas as ocupações da grande maioria dos trabalhadores não exigiam qualificações ligadas à educação formal, de modo que o saber, também nesse período histórico, manteve-se como prerrogativa das elites.
No final do período, dá-se a consolidação do poder da burguesia, que ao ascender economicamente passa a buscar meios de ocupar não apenas postos do poder político, mas acesso a todo tipo de bem produzido pela humanidade, com ênfase nos bens materiais e culturais.
Na Prússia, em 1694, inaugura-se a Universidade de Halle, atraindo estudantes das camadas abastadas da sociedade.
Lá, algum tempo depois, inicia-se uma campanha em prol da educação das crianças pobres, com repercussão em outros países, como França e Inglaterra.
Os resultados não foram imediatos, mas esse movimento representou um avanço, embora o tema da educação tenha ocupado lugar de destaque por ser pensada como instrumento de manutenção ou restauração da ordem social.
Em busca da cidadania e dos direitos.
No final do século XVIII, a Idade Contemporânea inaugurou uma nova lógica para o estabelecimento das hierarquias.
A Revolução Francesa quebrou a tradição ligada ao privilégio de nascimento da nobreza e do clero, e instituiu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789:
“1. Os homens nascem iguais e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem ser fundadas senão na utilidade comum [...]
4. A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem limites senão aqueles que assegurem aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos [...]
A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente [...].”
Assim, definiam-se novas bases a partir da quais todos os indivíduos passam a ser considerados “iguais em direitos”.
Os debates e reformas educacionais expressavam a crença de que toda criança deveria ser adequadamente educada, sendo, para tanto, necessária a organização de uma sistema nacional de ensino, com a construção de escolas e a formação de professores.
Tal projeto, que subvertia a ordem dos privilégios aristocráticos, começaria a apresentar resultados concretos apenas a partir dos séculos XIX e XX.
No que diz respeito ao aspecto econômico, o mundo do trabalho era, por aquele tempo, ainda dependente dos setores agrícola e extrativo, sendo os recursos retirados da natureza; artesanal, pela produção dos bens de consumo (roupas, calçados, etc.); comercial, pelas práticas mercantilistas que faiam circular as mercadorias entre diferentes partes do mundo; e bancário, que financiava os demais setores produtivos, ampliando as formas de produção e acumulação de riquezas.
E, a partir de então, passam a existir sistemas diferentes de produção de mercadorias para o comércio, especialmente ligados ao sistema fabril.
As fábricas, surgidas com a Revolução Industrial inglesa, trouxeram inovações tecnológicas e um movimento contínuo de mudanças nas sociedades, mesmo nas não industrializadas, com novas formas de controlar e disciplinar o trabalho e reordenamento das hierarquias sociais, processos que se expandem após a Segunda Revolução Industrial, do século XIX.
A maior concentração de oportunidades de emprego para os trabalhadores liberados do campo e das obrigações servis iria se localizar no meio urbano e no sistema de fábrica.
Desse modo, os trabalhadores passam a se submeter às péssimas condições de vida, morando em casas improvisadas, mal construídas ou cortiços, e às jornadas de trabalho, sem feriados, garantias ou assistência, valendo-se do trabalho feminino e infantil como forma de complemento dos ganhos escassos.
Após décadas de submissão, os trabalhadores passaram a demonstrar seu inconformismo e lutar contra os baixos salários e o alto custo de vida, e pela justiça na definição dos direitos trabalhistas e sociais, entre eles o de associação, reivindicação e igualdade de tratamento, perante as leis e perante o acesso aos bens materiais e culturais.
Um relatório encaminhado ao Parlamento Inglês, em 1832, resultou na determinação de normas de proteção ao trabalho feminino e infantil: crianças menores de nove foram proibidas de trabalhar em fábricas têxteis; crianças de 9 a 13 não poderiam trabalhar mais de 12 horas por dia, e de 13 a 18 anos poderiam trabalhar até 69 horas por semana; menores de 18 anos não poderiam trabalhar no período noturno.
Em 1844, outra lei proibiu as mulheres de trabalhar mais de 12 horas por dia e, em 1847, mulheres e crianças foram proibidas de trabalhar mais de 10 horas por dia nas fábricas têxteis.
A ideologia liberal, revolucionária no contexto dos séculos XVIII e XIX, converteu-se em campo fértil para as transformações políticas e jurídicas, definindo o princípio da igualdade como ideal.
Entretanto, a lógica da seleção das capacidades e as maiores oportunidades dadas aos detentores do capital fizeram com que a divisão social permanecesse baseada no poder econômico e nas regalias tradicionalmente mantidas.
Mas, no contexto da sociedade industrial, seria necessário educar rapidamente os indivíduos para o convívio social nos espaços urbanos, onde a concentração populacional tornou-se cada vez maior.
Assim, a expansão das oportunidades de educação não foi inicialmente pensada como mecanismo de equalização social, mas de controle dos sujeitos sociais por meio da educação e as escolas públicas ganharam destaque nos projetos nacionais.
Com a educação escolar destinada aos amplos segmentos sociais, surgem novas formas de estratificação social, com indivíduos que podem ser inseridos em várias categorias, ao mesmo tempo.
Estabelece-se, assim, a possibilidade de uma pessoa fazer parte da elite econômica e não fazer parte da elite intelectual ou política, ou fazer parte da elite política e não estar entre os membros da elite econômica ou intelectual.
As hierarquias passam a ser quebradas ou subvertidas e a estrutura social torna-se bem mais complexa.
Outro fator que diferencia a época contemporânea é a existência de direitos reconhecidos em leis, para garantir a igualdade de oportunidades, embora as leis nem sempre sejam cumpridas e os direitos usufruídos.
Não obstante, a educação é considerada direito de todos, não estando restrita à nobreza, ao clero ou à burguesia, e a cidadania passou a ser exigida como um bem comum.
Após o final da Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas, por meio da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, instituiu como princípio, para a organização política, econômica, social e cultural dos países-membro, as seguintes diretrizes:
“Artigo 1º. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.
Artigo 2°. Todos podem invocar os direitos e as liberdades proclamadas na presente Declaração sem distinção alguma, quer provenha de raça, quer de cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou outra situação [...].
Artigo 4º. Ninguém será mantido em escravatura ou servidão [...].
Artigo 23º. Todos têm o direito ao trabalho [...].
Artigo 26º. Todos têm o direito à educação [...].”
Os avanços legais traduzem um esforço para superar o histórico de desigualdade social, econômica, cultural etc., e são frutos de um caminho lentamente percorrido para dilatar os direitos, resguardando os indivíduos dos abusos do poder.
Assim, em diferentes ocasiões ao longo do século XX, a intolerância, a tirania e a exclusão foram expostas e gradativamente sendo substituídas por leis defensoras dos direitos humanos.
Mas, levando em conta que os diferentes países, regiões ou comunidades, não têm o mesmo acesso aos bens, inclusive jurídicos, as conquistas legais e educativas mostram-se distantes, especialmente para os grupos menos privilegiados do ponto de vista econômico, que permanecem excluídos, subordinados ou submetidos a condições sociais próximas às que se verificam em tempos históricos passados.
Concluindo.
Durante o século XX, houve uma progressiva ampliação das oportunidades de acesso à educação, primeiro pensada como forma de qualificar as massas para o mercado de trabalho e, depois, como forma de reparar, ou minimizar, distorções sociais causadas pela tradicional hierarquização da sociedade.
Ainda que as mudanças tenham se processado em ritmo aquém das necessidades, e nem sempre atendendo aos ideais mais igualitários, a tendência dos sistemas de ensino é a inclusão dos diferentes segmentos sociais, como instrumento de preparação para a vida em sociedade, de forma humana e justa.
Hoje é senso comum que a educação é o principal meio de aprimoramento individual e social e de superação das desigualdades.
Considera-se que a educação, o trabalho e a cidadania são o modo de assegurar a estabilidade social e o desenvolvimento humano.
Acentua-se a importância da educação universal e gratuita, e da adequação dos conteúdos e métodos educativos aos princípios éticos e igualitários.
Para saber mais sobre o assunto.
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1995.
ARISTÓTELES. A Política. Rio de Janeiro: Edições de Ouro. 1965.
DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982.
FAUSTO, Bóris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1998.
LIBÂNEO J.C; OLIVEIRA J.F; TOSCHI M.S. Educação escolar: políticas, estrutura e organização. São Paulo: Cortez 2003.
MACHADO, L.R.S., NEVES, M. de A., FRIGOTTO, G. et al. Trabalho e Educação. 2ª ed. Campinas: Papirus, 1994.
MANACORDA, M. A. História da Educação: da antiguidade aos novos dias. 10ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.
OLIVEIRA, Carlos Roberto de. História do Trabalho. São Paulo: Ática, 1995.
PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. Tradução de José Severo de Camargo Pereira. 19 ed. São Paulo: Cortez, 2001.
SAVIANI, Demerval et al. História e história da educação. O debate teórico-metodológico atual. Campinas: Autores Associados, 1998.
SAVIANI, Demerval. Trabalho e Educação. In: Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 34, jan./abr. 2007.
Texto: Profª Drª Marilda Aparecida Soares.
Doutora em História Social – FFLCH USP.
Professora das Faculdades Integradas de Ribeirão Pires.
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