Publicação brasileira técnico-científica on-line independente, no ar desde sexta-feira 13 de Agosto de 2010.
Não possui fins lucrativos, seu objetivo é disseminar o conhecimento com qualidade acadêmica e rigor científico, mas linguagem acessível.


Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Criança e sofrimento: algumas considerações.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume ago., Série 03/08, 2011, p.01-02.


A primeira cena é clássica: a criança abre o presente, sorri, está contente.
Mas a segunda cena, também: muxoxos, palavras condescendentes, troca de implicâncias entre os pais.
Seus corpos falam sem nada dizer.
A tensão aumenta.
A corrente elétrica se instala entre pólos contrários.
Eles se evitam, se procuram, se encostam, se irritam.
Uma pergunta aciona a descarga: “mas o que é que você tem?”.
A tal pergunta assinala o mal entendido, à distância entre o que cada um deseja, a falha na demanda nunca atendida.
As portas batem, os lábios se cerram, as lágrimas rolam, os insultos explodem contra a parede.
Eles se dizem coisas inomináveis.
E no interior dessa cena, onde cada um tem seu lugar, percebe-se furtivamente uma criança que chora, refém da tormenta entre seus pais.
É a criança a quem se pede que seja testemunha, que escolha um campo.
Começa, muitas vezes, assim, o duro aprendizado da separação.
Cada vez mais, crianças “vêem esse filme”.
Na vida real ou na virtual que lhes apresenta a televisão, lá está a briga, a violência, a disputa.
Natural e incorporada ao quotidiano, sua reprodução é tão mais perigosa quanto ela não dá espaço para que a criança se revolte e diga: basta!
Mas, há ainda outra cena na qual a criança ouve: “é para o seu bem”.
E em nome desse bem, quantas punições injustas, humilhações arbitrárias e violências cometidas.
Quantos pequenos corpos não trazem as marcas desse texto ilegível?
O pior é quando paira um silêncio suspeito na cena e a cortina cai.
Frente ao mutismo da criança, os pais concluem: “ela é difícil...”.
Vivendo numa sociedade açodada pela violência fora (nas ruas, na cidade, no mundo) poucos de nós se dá conta da violência dentro: no coração do social, na família.
Alguns especialistas tem chamado a atenção para a “surdez psíquica” dos adultos, surdez que os impede de ouvir a voz das crianças.
Afinal, não são elas que nos colocam as perguntas mais radicais ou espinhosas?
“Por que vocês brigam?”: é uma delas.
Muitos pais negam a violência por sua total incapacidade de elaborá-la ou porque preferem reproduzi-la “para educar”.
Não são poucos os que ainda não entenderam que a infância é lugar de alegria, sonho e felicidade.
Ou como dizia Cecília Meirelles: “nossa infância é o último esquecimento, derradeiro consolo e suprema poesia de nossa existência.
Tudo mais pode cobrir-se de sombras – nossa infância será um sol nítido – mesmo quando não haja sido tão brilhante, nem feliz”.
Boas palavras, as da educadora e poetisa, para serem, sempre, lembradas.


Texto: Profa. Dra. Mary Del Priore.
Doutora em História Social pela USP, com Pós-Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris/França).
Lecionou História do Brasil Colonial nos Departamentos de História da USP e da PUC/RJ.
Autora de mais de cinqüenta livros e atualmente professora do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO/NITERÓI.
Membro do Conselho Editorial de "Para entender a história..." desde 14/01/2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Esteja a vontade para debater ideias e sugerir novos temas.
Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.