Para
entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 4, Volume jul., Série 03/07, 2013,
p.01-12.
Prof. Jorge Donizetti Pereira.
Especialista em Geopolítica e
Relações Internacionais (CEUCLAR).
Licenciado em Filosofia (CEUCLAR).
O presente texto analisa o “Acordo entre a República
Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja
Católica no Brasil”.
Apresenta
algumas notas peculiares tanto ao Estado brasileiro como ao Estado da Cidade do
Vaticano e a Santa Sé. Procura analisar a relação Estado/Igreja no Brasil ao
longo do tempo, perpassando as Constituições já vigoradas.
Expõe
algumas considerações acerca dos Direitos Humanos e da Liberdade Religiosa e,
por fim, analisa de per si o texto do
Acordo, dispondo, posteriormente,
algumas reflexões no que concerne à questão da validade e licitude da
implementação de tal Acordo.
Introdução.
O presente artigo apresenta uma abordagem acerca do Acordo celebrado entre o Brasil e a
Santa Sé.
Por se tratar de uma relação jurídico-diplomática entre um Estado
laico e um Estado confessional, de tal Acordo
emergem variadas questões que permeiam os âmbitos legal, cultural, ético e
social.
A problemática da validade e licitude no que concerne ao
estabelecimento de um Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, por meio
de um Tratado entre dois Estados legitimamente constituídos e internacionalmente
reconhecidos, comporta, pois, uma análise objetiva da questão, procurando-se,
assim, responder às interrogações mais relevantes, diretamente ligadas aos
tratados internacionais na ordem jurídica brasileira, aos direitos humanos, dentre
os quais a liberdade religiosa, bem como aos reflexos sócio-culturais decorrentes.
Por
conseguinte, objetiva-se também a reflexão acerca da real possibilidade de
assinatura e implantação de tratados de tal espécie, com o total resguardo das
assertivas próprias às leis mantenedoras do Brasil como Estado Democrático de
Direito, soberano em suas decisões, seja no âmbito interno ou no contexto
internacional.
À
guisa de preâmbulo serão apresentadas algumas características próprias ao
Estado brasileiro e à Santa Sé.
Posteriormente
serão elencados alguns traços acerca da relação Igreja/Estado no Brasil, de
acordo com as indicações legais.
Em
continuidade, visando um embasamento filosófico-legal, será analisada a questão
da liberdade religiosa e dos direitos humanos.
Por
fim, dadas às abordagens anteriores, será analisado de per si o texto do Acordo
em questão, apresentando os argumentos que denotam sua validade.
Metodologia.
O
texto em questão foi desenvolvido a partir da leitura e análise criteriosa das
contribuições de autores renomados, bem como da coleta dos dados objetivos relevantes
à temática, proporcionando-lhe, pois, o necessário suporte às asserções ora
manifestas.
Anteriormente à análise dos textos de comentadores, integrantes da
revisão bibliográfica, a pesquisa dirigiu-se às leis maiores de cada um dos
Estados envolvidos na presente abordagem, isto é, a Constituição da República
Federativa do Brasil e a Lei Fundamental da Cidade do Vaticano.
Também concorreu para o resultado da pesquisa ora exposto o Código
de Direito Canônico (Ocidental) da Igreja Católica Apostólica Romana - que rege
as expressões da Santa Sé junto aos Estados nos quais a mesma mantém
representatividade diplomática e manifestação religiosa. Mencionam-se ainda as
relevantes contribuições provenientes da Declaração Universal dos Direitos
Humanos e do texto oficial do Acordo
ora avaliado.
Concomitantemente, desenvolveu-se uma abordagem crítica ante os
documentos, artigos e ensaios constantes nas referências bibliográficas.
A República Federativa do Brasil.
A
Constituição da República Federativa do Brasil menciona em seu Preâmbulo a
instituição de um Estado Democrático, cuja missão é promover e assegurar o
livre exercício dos direitos sociais e individuais como a liberdade, a segurança,
o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.
Estes
são os supremos valores assegurados por nossa Carta Magna, princípios que visam
contemplar a uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
O
fundamento de tais valores, segundo nossa Lei Maior, são a harmonia social e o
compromisso, resguardadas a ordem interna e internacional, com a solução
pacífica de eventuais controvérsias.
O
conteúdo do texto de abertura da Constituição Federal é a mais eloquente
exposição daquilo que retrata a vocação da nação brasileira. Trata-se do “norte
da bússola”, o ponto de partida para a gradual resposta à vocação de um povo,
cuja cultura é sempre direcionada para a paz e a concórdia.
Ao
se estabelecer um paralelo da realidade que se nos apresenta com o texto
constitucional, de pronto, há que se concluir por uma gama de disparidades e
evidentes contradições.
A
sociedade brasileira padece de uma série de mazelas às quais o devido cumprimento
da Constituição sanaria de modo substancial.
Todavia,
a Lei Fundamental do Brasil resguarda os valores próprios de um Estado marcado
pela pacífica equidade dos direitos e deveres dos Poderes constituídos, bem
como de cada cidadão em particular.
O
Brasil é traduzido na Constituição, por meio de sua disposição natural e de seu
potencial promissor, com um país que se encontra em estado de caminho, de
construção.
Sem
a recusa em admitir a grande dimensão das questões sociais e obstáculos a serem
transpostos pela nação brasileira, há que se reconhecer, contanto, que o Brasil
é um país de idade pueril - se comparado às nações europeias, por exemplo.
Deste
modo, a paciência histórica e o cuidado para com o cumprimento da missão que
lhe cabe, transformarão o Brasil em um país que passará, recorrendo a um
postulado aristotélico, da potência ao ato.
Um
traço relevante de nossa Lei Federal é o cuidado para com a liberdade e a
preservação dos direitos fundamentais do ser humano, apreço este que tem uma
efetiva representatividade, seja no cabedal de conhecimentos e proposições do
Direito, seja na cultura que especifica e caracteriza o povo brasileiro.
O
Artigo 5º da Constituição Federal assevera:
Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei;
IV - é
livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[...]
VI - é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e a suas liturgias;
VII - é
assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII -
ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a
todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
(Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>
Acesso em 18 jun. 2012.).
Infere-se
do anteposto que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito
que abriga sob sua Constituição a liberdade, em seu sentido essencial,
garantindo a igualdade perante a lei no que tange aos direitos e deveres do
cidadão, da sociedade e dos Poderes.
Ademais,
evidencia-se explicitamente no supracitado Artigo 5º da Constituição o pleno
direito à adoção por parte de cada cidadão de um credo religioso de sua escolha
e ao exercício das atividades próprias à sua crença natural e/ou sobrenatural.
Todavia,
o Brasil é um Estado laico; portanto, não detém para si, legalmente, um credo
religioso oficial, tampouco impõe à sociedade a adesão ou não a determinada
religião ou filosofia de vida.
O
presente texto tratará desta questão em um item subsequente.
O Estado da Cidade do Vaticano (A
Santa Sé).
Como
qualquer outro país, o Estado da Cidade do Vaticano possui uma Constituição
própria, a Lei Maior que rege os demais aspectos e instrumentos legais do
mencionado Estado confessional, garantindo-lhe a independência e a soberania.
Desde
vinte e dois de fevereiro de 2001 está em vigor a Nova Lei Fundamental do
Estado da Cidade do Vaticano, outorgada pelo Papa João Paulo II, em
substituição à anterior, primeira, emanada em 1929 pelo Papa Pio XI.
Os
Artigos 1 e 2 da mencionada Lei asseveram:
Art. 1 - O Sumo Pontífice, Soberano do Estado da Cidade do Vaticano, tem a
plenitude dos poderes legislativo, executivo e judicial.
Art. 2 - A
representação do Estado nas relações com os Estados estrangeiros e com os
outros sujeitos de direito internacional, para as relações diplomáticas e a
conclusão dos tratados, é reservada ao Sumo Pontífice, que a exerce por meio da
Secretaria de Estado.
(Disponível
em: <http://www.vatican.va/vatican_city_state/legislation/documents/scv_doc_20001126_legge-fondamentale-scv_po.html>
Acesso em: 27 ago. 2012.).
Por
se tratar de um Estado sui generis,
elencaremos a seguir informações cujo objetivo é estabelecer um parâmetro de
compreensão que possa refletir as singularidades do Estado da Cidade do
Vaticano e da Santa Sé. Segundo dispõe o sítio oficial da Santa Sé (Disponível
em: <http://www.vatican.va> Acesso em 10 jun. 2012.), a Sancta Sedis Episcopalis, está sediada
na Cidade do Vaticano.
Trata-se
da máxima expressão da Igreja Católica Apostólica Romana em todo o orbe.
A
chefia do Estado da Cidade do Vaticano é exercida mediante uma monarquia
absoluta eletiva teocrática - o Papa (que detém para si os Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário).
O
idioma oficial é o Latim, língua na qual são primeiramente redigidos os
documentos oficiais da Santa Sé.
A moeda adotada atualmente é o Euro.
De
tal Sede, por meio da Cúria Romana, particularmente da Secretaria de Estado,
administra-se não somente a população oficial do Estado em questão (menos de
mil habitantes), mas também a expressão religiosa de mais de um bilhão de
Católicos espargidos pelos cinco continentes.
O
território do Estado da Cidade do Vaticano preenche 0,44 quilômetros quadrados.
Não
possui forças armadas, propriamente, exceto a Guarda Suíça, com cerca de cem
integrantes, responsável primeiramente pela segurança do Sumo Pontífice e,
sucessivamente, pelo espaço territorial do Estado.
Além
da Guarda Suíça, o Papa conta com o denominado Corpo de Segurança, isto é,
pessoas devidamente capacitadas que o acompanham em suas visitas apostólicas
mundo afora.
Importa frisar ainda que o Estado ora descrito não possui sequer
um único aeroporto, apenas um heliporto e uma estação ferroviária; possui,
todavia, extramuros, em Castel Gandolfo, um Observatório Astronômico a serviço
da Santa Sé, um dos mais antigos do mundo, fundado pelo Papa Gregório XIII, em
1572; cita-se também no contexto a Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano,
fundada em 1603 - que teve como um de seus membros Galileu Galilei.
Atualmente
a mencionada Academia conta com a colaboração de 22 cientistas “prêmios Nobel”
de variados campos.
O
Estado da Cidade do Vaticano conta ainda com a mais antiga biblioteca da Europa
– a Biblioteca Apostólica Vaticana – e sob seus cuidados estão obras
raríssimas, chegando à casa dos 1,7 milhões de unidades (incunábulos, códices
manuscritos, pergaminhos, gravuras, moedas, etc.).
Outro
pormenor interessante de se mencionar é a riqueza cultural sob guarda do Estado
da Cidade do Vaticano em seus museus e monumentos arquitetônicos.
São
obras diversas que perpassam a produção artística desde a antiguidade, passando
pelo período clássico, medievalidade, modernidade, até a contemporaneidade.
Neste
ínterim, há que se explicitar que o Tratado de Latrão, celebrado entre o Brasil
e a Itália, proíbe qualquer espécie de comércio das obras de arte
acondicionadas e preservadas pelo Estado Vaticano.
De
acordo com o sítio oficial do Estado da Cidade do Vaticano (Disponível em: <http://www.vaticanstate.va/IT/homepage.htm>
Acesso em 25 out. 2012.), o mesmo define-se como uma Cidade-Estado, reconhecida
desde 1929, com a assinatura do Tratado de Latrão. Todavia, a Santa Sé se
distingue do Estado da Cidade do Vaticano, isto é, a Santa Sé é responsável
pelas expressões religiosas da Igreja Católica Apostólica Romana em todo o
mundo; já o Estado da Cidade do Vaticano é um Estado independente, que sedia a
Igreja Católica Apostólica Romana e cuida das questões político-administrativas
estatais, mormente por intermédio da Secretaria de Estado e do Corpo
Diplomático.
Tanto o Estado da Cidade do Vaticano, quanto a Santa Sé emitem
passaportes: o primeiro os ordinários; a segunda, passaportes diplomáticos e de
serviços, pois a Santa Sé não é um Estado, embora possua personalidade jurídica.
Trata-se de um Estado sui generis, cuja
pretensão ao reconhecimento no concerto político internacional não se relaciona
com um eventual poder econômico, nem com uma força militar, que não possui; sua
importância decorre da sua autoridade moral, enquanto representa uma
instituição milenar dedicada à defesa da dignidade humana, da justiça e da paz
na convivência entre os povos. Essa autoridade é bem reconhecida e prestigiada
pelas representações diplomáticas (Nunciaturas e Delegações Apostólicas)
presentes em mais de 190 países e pelos representantes ou observadores que
mantém em cerca de 20 Organismos Governamentais Internacionais, que vão desde a
ONU até à organização da Liga dos Estados Árabes (SCHERER, 2009, p. 34).
No
âmbito do Direito Internacional, há que se esclarecer que o Estado da Cidade do
Vaticano e a Santa Sé possuem, cada qual, personalidade jurídica própria, sendo
que o Vaticano é reconhecido como Estado independente e soberano - e este fator
lhe concede personalidade jurídica; já a Santa Sé tem sua personalidade
jurídica internacionalmente reconhecida na pessoa do próprio Papa, que também é
chefe do Estado da Cidade do Vaticano. Corroborando o anteposto, evidencia-se
que a partir do
Tratado de Latrão, celebrado em 11 de fevereiro de 1929, subscrito por Benito
Mussolini, então Primeiro Ministro do governo da Itália, e o representante da
Igreja, a Santa Sé teve por reconhecida a plenitude de sua personalidade
jurídica, configurada na própria pessoa do Papa.
Este, por sua vez, passou
a ser, além de chefe supremo da Santa Sé, chefe do governo do Estado da Cidade
do Vaticano.
Por
conseguinte, com o Tratado de Latrão, surgiu um novo sujeito do Direito
Internacional, o Estado da Cidade do Vaticano.
Este
é o ponto central para um entendimento da distinção entre o Estado da Cidade do
Vaticano e a Santa Sé. De acordo com Mazzuoli (2008, p.369), o Estado da Cidade
do Vaticano é um Estado Instrumental a serviço da Santa Sé.
Um
é o Estado, política e juridicamente concebido; o outro é a máxima
representação da Igreja Católica Apostólica Romana – cujo envolvimento abrange
o mundo todo.
A Igreja e o Estado.
A história do Brasil está
intimamente ligada ao cristianismo, particularmente ao Catolicismo.
Desde o Descobrimento encontram-se
traços de religiosidade em terras brasileiras. Episódios significativos são
encontrados ao longo da estruturação político-constitucional do Brasil.
A primeira Constituição, de 1824,
menciona a Santíssima Trindade e no seu artigo 5º expõe a religião Católica
Apostólica Romana como religião oficial do Império.
Sendo assim, pode-se afirmar que o
Brasil em sua primeira etapa política se desenvolveu mediante uma união entre a
Igreja e o Estado, embora tenha havido alguns conflitos no campo religioso.
Uma série de atos decorrentes de
uma união entre a Igreja e o Estado repercutiu na estrutura jurídica
brasileira.
É o caso, por exemplo, do registro
de nascimentos por meio das celebrações batismais; o registro de casamentos
através dos enlaces matrimoniais; e o registro dos óbitos para os falecidos que
recebiam alguma assistência religiosa da Igreja.
Trata-se, pois, da constituição de
uma base de dados legais relevantes à vida pessoal e social da época, não
obstante padecerem do vínculo com alguma instituição pública.
Todos esses aspectos decorrem não só do primeiro
documento constitucional brasileiro, mas de vivencias religiosas tradicionais,
herdadas de Portugal que servem de base a uma aliança muito influente entre o
Governo e a Instituição Católica. Sob certo aspecto, a Igreja desta
forma vai sofrer uma ingerência do Poder Estatal que lhe será prejudicial
(ANDRADA, 2009, p. 22).
A ingerência mencionada acima ficou
conhecida como Padroado, circunstância de um acordo político-administrativo em
que autoridades eclesiásticas eram nomeadas mediante pressão do poder público
em prol de interesses de poder.
A extinção oficial do Padroado
deu-se em 1890, logo após a Proclamação da República, ato este que favoreceu a
instituição jurídica da Igreja perante o Estado brasileiro, inclusive
declarando sua laicidade (que viria a figurar constitucionalmente na Carta
Magna de 1891).
Com a República, houve uma alteração
fundamental nessas relações e prevaleceu entre nós o pensamento positivista de
Augusto Comte, com uma tendência agnóstica preponderando em grande parte
das nossas elites. O país passou a submeter-se a uma nova Carta Constitucional,
a de 1891, que determinava a separação do Estado em face da Igreja, embora não
fosse de forma conflitante ou violenta, mas em termos bem claros e evidentes. O
documento em que o Estado brasileiro regulamentou essa situação foi o Decreto
119, de 20 de janeiro de 1890, no governo do Marechal Deodoro da Fonseca, onde
vamos encontrar as determinações do desligamento da Igreja com o Estado
republicano (ANDRADA, 2009, p. 22).
A
Constituição republicana de 1891, ao contrário da monárquica, determinava,
pois, um afastamento entre as ações da Igreja e do Estado. Houve, inclusive,
práticas discriminatórias em que foi cerceado o direito de voto aos religiosos
e imposto aos mesmos uma série de obrigações incongruentes às ocupações
espirituais.
Com
o advento da Revolução de 1930 e, consequentemente, de uma nova Constituição, a
de 1934, houve uma aproximação da religião e do Estado, eliminando, assim, as
discriminações contidas na primeira Carta Magna republicana e evidenciando a
vocação religiosa do povo brasileiro.
Em
1937, com o período ditatorial de Vargas, há uma nova reaproximação da
Constituição de 1937 com relação à de 1991, onde não se faz menção a Deus e o
texto exibe um aparente agnosticismo, não obstante assegurar a liberdade de
culto.
A
Constituição de 1946, por sua vez, volta a referir-se a Deus e retoma a
tradição de 1934 e de 1824 no que tange à formulação do respeito pelas
religiões, mantendo, porém, o caráter da laicidade estatal, não se referindo
explicitamente em favor desta ou daquela religião, mas generalizando a liberdade
à adesão e culto religioso no país.
As
Constituições subsequentes, ou seja, as de 1967, 1969 e a de 1988, todas, sem
exceção, afirmam o respeito e pedem a proteção de Deus em seu Preâmbulo.
Asseveram, também, a liberdade religiosa de modo amplo e irrestrito, sem
discriminação.
Ademais,
a atual Constituição enfatiza a relevância e a necessidade das relações
internacionais com os mais diferentes povos e admite, sem mais, a aproximação
com todos os credos religiosos, em plena consonância com as garantias próprias
aos direitos humanos.
Na história brasileira, portanto, o único texto que
coloca a Igreja afastada do Estado, em termos bem claros, é a Constituição de
1891 ao incorporar a orientação do célebre Decreto nº 119, de 20 de janeiro
1890, no qual se sente a presença do pensamento positivista agnóstico e de
certa forma ecletista. Por outro lado é de se registrar que a Constituição de
1937 retroagiu, reiterando o posicionamento de 1891 no tocante às
relações do Estado com a Igreja, revelando no seu preâmbulo, como acontece com
a primeira Constituição republicana, uma clara omissão no tocante a referência
a Deus, ao contrário de todas as outras Constituições brasileiras (ANDRADA,
2009, p. 23).
Dada
a explanação que percorre aspectos das constituições já elaboradas para a nação
brasileira, infere-se, pois, que a relação entre a Igreja e o Estado tem uma
história que adentra e perpassa os campos legal, social e cultural.
As
garantias constitucionais vigentes refletem um avanço nas tratativas
concernentes à liberdade religiosa.
O
Estado é laico; o povo, no entanto, tem direito à religião.
Direito
que não se limita à esfera particular, intimista, mas expande-se à
possibilidade de manifestação pública da fé que se professa, independente do
credo.
Por
conseguinte, o mencionado direito não se limita ao Catolicismo, mas abrange um
direito essencialmente humano a todos, a liberdade religiosa.
Liberdade Religiosa e Direitos
Humanos.
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos seus Artigos XVIII, XIX e XX, enfatiza
categoricamente:
Artigo XVIII: Toda pessoa tem direito
à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a
liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa
religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância,
isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Artigo XIX: Toda pessoa tem direito à
liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem
interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e
idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo XX: Toda pessoa tem direito
à liberdade de reunião e associação pacíficas. Ninguém pode ser
obrigado a fazer parte de uma associação.
(Disponível
em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso em: 19 jun. 2012.).
A
liberdade religiosa tem sua garantia estabelecida pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos e, em plena consonância com a mesma, com o Direito
Internacional e com diversos tratados internacionais que versam sobre o
assunto, a Constituição brasileira de 1998 em vigência expõe em seu Artigo 5º a
inviolabilidade da consciência religiosa, a liberdade de culto, bem como a
proteção aos locais dos mesmos, garante a assistência religiosa às entidades
civis e militares e a garantia da não privação de direitos por motivo de crença
religiosa, filosófica ou política.
Estabelece-se,
pois, no âmbito jurídico e legal, a plena garantia do livre acesso e adesão a
qualquer credo e/ou culto religioso ao povo brasileiro, resguardada a laicidade
estatal nos termos de nossa Lei Maior.
O Acordo Brasil - Santa Sé.
O
Acordo entre o Governo da República
Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica
Apostólica Romana no Brasil, foi assinado em 13 de novembro de 2008 na Cidade
do Vaticano, pelo Papa Bento XVI e o Presidente da República, Luiz Inácio Lula
da Silva.
Após
análise e votação pelo Congresso Nacional, o mencionado Acordo foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 698, de 7 de
outubro de 2009, entrando em vigor em 10 de dezembro de 2009. Por fim, através
do Decreto nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010, deu-se a Promulgação do Acordo.
Quando
da assinatura do Acordo entre o
Brasil e a Santa Sé houve algumas manifestações no sentido de um temor com
relação a uma possível transgressão à laicidade do Estado, garantida pela
Constituição.
Supôs-se
que o mencionado Acordo legasse
privilégios específicos à Igreja Católica Apostólica Romana.
Tal
hermenêutica, no entanto, é infundada.
Basta
uma leitura atenta e imparcial do conteúdo do Acordo para se concluir que o mesmo é um verdadeiro tratado que
garante a liberdade religiosa não apenas aos cristãos católicos, mas a todos os
que professam uma religião, qualquer que seja.
De
acordo com Stacchini (2009, p. 74):
Para que essa laicidade do Estado seja levada à
prática, sem prejudicar a vida social, é necessário precisar o significado
concreto de laicidade; e, para tanto, o primeiro registro é o seguinte: dizer
que um Estado é laico significa dizer que será um Estado no qual não haverá uma
‘religião oficial’, em que as confissões religiosas são tratadas sem
discriminação ou favorecimento pelos órgãos do Estado, todas alçadas ao mesmo
patamar de igualdade e de respeito; será um Estado administrado e regido
conforme o ordenamento jurídico nele vigente, e não por dispositivos constantes
de textos religiosos, como a Bíblia ou o Alcorão. Ademais, em um Estado laico,
os agentes públicos alcançam seus postos de comando em conformidade com a
Constituição e as Leis, e não por serem membros de uma determinada hierarquia
religiosa.
Importa
explicitar que também a Igreja Católica Apostólica Romana defende a laicidade
do Estado como um valor que enaltece a civilização.
É o que se vê, por exemplo, já em documentos do
Concilio Ecumênico Vaticano II. Assim, a Constituição pastoral Gaudium et
spes, em seu ponto número 76, com o título “a comunidade política e a
Igreja”, registra que a Igreja não é chamada à administração do âmbito
temporal, porque “em razão da sua missão e da sua competência, de modo algum
se confunde com a comunidade política e não está vinculada a qualquer sistema
político determinado”. No recente Compêndio da Doutrina Social da Igreja
(cf. especialmente os pontos 571 e 572) encontramos a mesma ideia, exposta
em termos diferentes, com a afirmação expressa no sentido de que a laicidade do
Estado “é um valor adquirido e reconhecido pela Igreja, e pertence ao
patrimônio de civilização que se logrou atingir” (STACCHINI, 2009, p. 75).
Contudo, o princípio da laicidade não
deve ser confundido com a ideologia laicista - que visa banir da sociedade
qualquer manifestação religiosa.
Tal posicionamento encerra um viés
equivocado e totalitário, e se baseia numa deturpação da laicidade do Estado.
A laicidade positiva exige respeito às
confissões religiosas, assegurando a elas o livre exercício de suas atividades
de culto e caridade.
No mundo atual existe uma tendência ao
pluralismo e, sendo assim, a laicidade consiste em uma oportunidade de diálogo
entre as diferentes confissões religiosas e tradições espirituais com a nação.
Todos, portanto, devem ter garantido o
seu direito de livre exercício da sua atividade religiosa e espiritual.
A Igreja Católica Apostólica Romana empreendeu
o Acordo em questão visando
estabelecer juridicamente o seu lugar perante o governo e a sociedade.
Todavia, a assinatura de tal instrumento,
longe de inviabilizar a ação de outras religiões ou mesmo de beneficiar a
Igreja, significa uma oportunidade de também as outras religiões firmarem
acordos com o Estado brasileiro.
No
que tange ao ensino religioso o Acordo
Brasil - Santa Sé dispõe em seu Artigo 11:
A República Federativa do Brasil, em observância ao
direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade
confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da
formação integral da pessoa.
§1º. O ensino
religioso, católico e de outras
confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a
Constituição e as outras leis vigentes, sem
qualquer forma de discriminação (Acordo entre a República Federativa do Brasil e a
Santa Sé, 2009, p. 11, grifo nosso).
O
artigo acima não afasta a possibilidade de se ministrar o ensino de outras
confissões religiosas; pelo contrário, o prevê.
Cabe
aqui o régio princípio da liberdade religiosa, isto é, seja a Igreja Católica
Apostólica Romana, seja qualquer outra religião, cada qual de seus fiéis em
idade escolar tem o direito de receber o ensino religioso concernente ao seu
credo.
Importa
frisar que a matrícula nas mencionadas aulas de ensino religioso é facultativa.
Ademais,
o Estado, juntamente com as confissões religiosas que pleitearem ensino de seu
credo, deverá deliberar os meios para a possibilidade prática do exercício de
tal direito.
O
que se depreende do Acordo ora
analisado é que o mesmo é o mais clarividente reflexo da tradição cultural
brasileira de acolhimento, abertura e não discriminação.
O
que a Igreja nele defende para si, não o impede para os demais grupos
religiosos legalmente constituídos, mas protege e promove os direitos humanos
fundamentais.
Verifica-se, agora analisando o conteúdo da
Concordata, que os objetivos que perseguem tanto a Igreja Católica, através da
Santa Sé, quanto da República Federativa do Brasil através do Governo Federal,
são os de proteção e promoção dos DIREITOS HUMANOS. É inegável, sem qualquer
dúvida, que o trabalho da Igreja Católica, através de sua estrutura
eclesiástica e seus representantes, sacerdotes, bispos e demais colaboradores,
é de vital importância para a defesa dos Direitos Humanos em nossa sociedade.
Ao passo que cuida das questões espirituais de seus fiéis, nossos cidadãos
brasileiros, incute nestes um sentimento de fraternidade, igualdade entre os
semelhantes, amor e respeito para com o próximo, valores morais da doutrina
cristã, que são também estimuladores de uma convivência Justa, Pacífica e
Cordial entre os indivíduos. A proteção e difusão de valores morais, sociais e
individuais agregam uma força consistente às nossas estruturas sociais, que
somente vem em benefício do grupo social como um todo. Não se trata,
absolutamente, de fanatismo ou exageros, mas de conceitos fundamentais
presentes não somente na religião católica, mas que de uma forma geral
verifica-se igualmente em outras profissões de fé, como também na filosofia e
pensamento humanista (Guimarães;
Guimarães, 2009, p. 140).
Concluindo.
O
Acordo estabelecido entre o Brasil e
a Santa Sé está em plena consonância com os dispositivos do ordenamento
jurídico brasileiro, com os tratados internacionais e com a Constituição
Federal.
A
alegação de inconstitucionalidade padece da ausência de argumentos sólidos e
convincentes.
A
laicidade do Estado não reflete o caráter de cerceamento da liberdade religiosa
em qualquer âmbito.
O
Estado é laico, mas o povo que o constitui tem por direito constitucional professar
a religião de sua escolha.
A
Igreja Católica Apostólica Romana pleiteou um Estatuto Jurídico que norteasse
sua expressão no território brasileiro.
O
mesmo pode fazer as demais confissões religiosas, sem qualquer discriminação.
Igualmente
se exprime no que diz respeito ao ensino religioso católico de matrícula
facultativa no Ensino Fundamental público brasileiro, isto é, idêntico direito
têm as demais religiões de fazê-lo, pleiteando junto às autoridades competentes
a isonomia garantida pela Constituição Federal e, inclusive, pelo Acordo ora abordado (Art. 11, § 1).
No
mais, o Acordo entre o Brasil e a
Santa Sé é um verdadeiro Tratado de Direitos Humanos que vem ratificar a
liberdade do pleno exercício da atividade religiosa no País.
Atividade
esta que inclui a diversidade cultural e a pluralidade religiosa como
pressupostos, bem como a legalidade (nacional e internacional) no amplo
espectro da análise.
Conclui-se,
pois, a ampla e irrestrita validade e licitude do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé.
Para saber mais sobre o assunto.
Acordo entre a
República Federativa do Brasil e a Santa Sé. Lumen – Revista de Estudos e Comunicações, São Paulo: IESP/UNIFAI,
v. 15, n. 36, p. 7-14, jun. 2009.
ANDRADA,
B. Relatório apresentado na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa
Nacional – Congresso Nacional. Lumen –
Revista de Estudos e Comunicações, São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36, p.
15-31, jun. 2009.
A SANTA SÉ. Disponível em:
<http://www.vatican.va> Acesso em 10 jun. 2012.
BIBLIOTECA
APOSTÓLICA VATICANA. Disponível em: <http://www.vaticanlibrary.va/>
Acesso em: 02 out. 2012.
CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO.
Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/cdc/index_po.htm> Acesso
em 19 jun. 2012.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>
Acesso em 18 jun. 2012.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso em: 19 jun. 2012.
GUIMARÃES,
A. M. C.; GUIMARÃES, A. S. Santa Sé – Brasil: Um Tratado Internacional de
Direitos Humanos. Lumen – Revista de
Estudos e Comunicações, São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36, p. 131-141,
jun. 2009.
MARTINS, I. G. M. Tratado
Brasil-Vaticano. Lumen – Revista de Estudos
e Comunicações, São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36, p. 61-66, jun. 2009.
MAZZUOLI, V. O. Curso de Direito Internacional Público.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
NETO,
F. B. R. Pressupostos político-culturais para a compreensão do Acordo entre o
Brasil e a Santa Sé. Lumen – Revista de
Estudos e Comunicações, São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36, p. 89-98,
jun. 2009.
PINHO,
A. C. Recepção dos Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira. Lumen – Revista de Estudos e Comunicações,
São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36, p. 109-120, jun. 2009.
SCHERER, O. P. A Igreja e o Estado. Lumen – Revista de Estudos e Comunicações,
São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36, p. 33-36, jun. 2009.
SOUZA,
C. A. M. O Ensino Religioso no Brasil. Lumen
– Revista de Estudos e Comunicações, São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36,
83-88, jun. 2009.
STACCHINI,
A. P. O Acordo Brasil - Santa Sé e a laicidade do Estado: breves notas. Lumen – Revista de Estudos e Comunicações,
São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36, p. 71-82, jun. 2009.
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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
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