Publicação brasileira técnico-científica on-line independente, no ar desde sexta-feira 13 de Agosto de 2010.
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Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Relações diplomáticas entre Estados: uma abordagem acerca do acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé.


Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 4, Volume jul., Série 03/07, 2013, p.01-12.



Prof. Jorge Donizetti Pereira.
Especialista em Geopolítica e Relações Internacionais (CEUCLAR).
Licenciado em Filosofia (CEUCLAR).




O presente texto analisa o “Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”.
Apresenta algumas notas peculiares tanto ao Estado brasileiro como ao Estado da Cidade do Vaticano e a Santa Sé. Procura analisar a relação Estado/Igreja no Brasil ao longo do tempo, perpassando as Constituições já vigoradas.
Expõe algumas considerações acerca dos Direitos Humanos e da Liberdade Religiosa e, por fim, analisa de per si o texto do Acordo, dispondo, posteriormente, algumas reflexões no que concerne à questão da validade e licitude da implementação de tal Acordo.
 

Introdução.
O presente artigo apresenta uma abordagem acerca do Acordo celebrado entre o Brasil e a Santa Sé.
Por se tratar de uma relação jurídico-diplomática entre um Estado laico e um Estado confessional, de tal Acordo emergem variadas questões que permeiam os âmbitos legal, cultural, ético e social.
A problemática da validade e licitude no que concerne ao estabelecimento de um Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, por meio de um Tratado entre dois Estados legitimamente constituídos e internacionalmente reconhecidos, comporta, pois, uma análise objetiva da questão, procurando-se, assim, responder às interrogações mais relevantes, diretamente ligadas aos tratados internacionais na ordem jurídica brasileira, aos direitos humanos, dentre os quais a liberdade religiosa, bem como aos reflexos sócio-culturais decorrentes.
Por conseguinte, objetiva-se também a reflexão acerca da real possibilidade de assinatura e implantação de tratados de tal espécie, com o total resguardo das assertivas próprias às leis mantenedoras do Brasil como Estado Democrático de Direito, soberano em suas decisões, seja no âmbito interno ou no contexto internacional.
À guisa de preâmbulo serão apresentadas algumas características próprias ao Estado brasileiro e à Santa Sé.
Posteriormente serão elencados alguns traços acerca da relação Igreja/Estado no Brasil, de acordo com as indicações legais.
Em continuidade, visando um embasamento filosófico-legal, será analisada a questão da liberdade religiosa e dos direitos humanos.
Por fim, dadas às abordagens anteriores, será analisado de per si o texto do Acordo em questão, apresentando os argumentos que denotam sua validade.


Metodologia.
O texto em questão foi desenvolvido a partir da leitura e análise criteriosa das contribuições de autores renomados, bem como da coleta dos dados objetivos relevantes à temática, proporcionando-lhe, pois, o necessário suporte às asserções ora manifestas.
Anteriormente à análise dos textos de comentadores, integrantes da revisão bibliográfica, a pesquisa dirigiu-se às leis maiores de cada um dos Estados envolvidos na presente abordagem, isto é, a Constituição da República Federativa do Brasil e a Lei Fundamental da Cidade do Vaticano.
Também concorreu para o resultado da pesquisa ora exposto o Código de Direito Canônico (Ocidental) da Igreja Católica Apostólica Romana - que rege as expressões da Santa Sé junto aos Estados nos quais a mesma mantém representatividade diplomática e manifestação religiosa. Mencionam-se ainda as relevantes contribuições provenientes da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do texto oficial do Acordo ora avaliado.
Concomitantemente, desenvolveu-se uma abordagem crítica ante os documentos, artigos e ensaios constantes nas referências bibliográficas.


A República Federativa do Brasil.
A Constituição da República Federativa do Brasil menciona em seu Preâmbulo a instituição de um Estado Democrático, cuja missão é promover e assegurar o livre exercício dos direitos sociais e individuais como a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.
Estes são os supremos valores assegurados por nossa Carta Magna, princípios que visam contemplar a uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
O fundamento de tais valores, segundo nossa Lei Maior, são a harmonia social e o compromisso, resguardadas a ordem interna e internacional, com a solução pacífica de eventuais controvérsias.
O conteúdo do texto de abertura da Constituição Federal é a mais eloquente exposição daquilo que retrata a vocação da nação brasileira. Trata-se do “norte da bússola”, o ponto de partida para a gradual resposta à vocação de um povo, cuja cultura é sempre direcionada para a paz e a concórdia.
Ao se estabelecer um paralelo da realidade que se nos apresenta com o texto constitucional, de pronto, há que se concluir por uma gama de disparidades e evidentes contradições.
A sociedade brasileira padece de uma série de mazelas às quais o devido cumprimento da Constituição sanaria de modo substancial.
Todavia, a Lei Fundamental do Brasil resguarda os valores próprios de um Estado marcado pela pacífica equidade dos direitos e deveres dos Poderes constituídos, bem como de cada cidadão em particular.
O Brasil é traduzido na Constituição, por meio de sua disposição natural e de seu potencial promissor, com um país que se encontra em estado de caminho, de construção.
Sem a recusa em admitir a grande dimensão das questões sociais e obstáculos a serem transpostos pela nação brasileira, há que se reconhecer, contanto, que o Brasil é um país de idade pueril - se comparado às nações europeias, por exemplo.
Deste modo, a paciência histórica e o cuidado para com o cumprimento da missão que lhe cabe, transformarão o Brasil em um país que passará, recorrendo a um postulado aristotélico, da potência ao ato.
Um traço relevante de nossa Lei Federal é o cuidado para com a liberdade e a preservação dos direitos fundamentais do ser humano, apreço este que tem uma efetiva representatividade, seja no cabedal de conhecimentos e proposições do Direito, seja na cultura que especifica e caracteriza o povo brasileiro.

O Artigo 5º da Constituição Federal assevera:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
(Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em 18 jun. 2012.).

Infere-se do anteposto que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito que abriga sob sua Constituição a liberdade, em seu sentido essencial, garantindo a igualdade perante a lei no que tange aos direitos e deveres do cidadão, da sociedade e dos Poderes.
Ademais, evidencia-se explicitamente no supracitado Artigo 5º da Constituição o pleno direito à adoção por parte de cada cidadão de um credo religioso de sua escolha e ao exercício das atividades próprias à sua crença natural e/ou sobrenatural.
Todavia, o Brasil é um Estado laico; portanto, não detém para si, legalmente, um credo religioso oficial, tampouco impõe à sociedade a adesão ou não a determinada religião ou filosofia de vida.
O presente texto tratará desta questão em um item subsequente.


O Estado da Cidade do Vaticano (A Santa Sé).
Como qualquer outro país, o Estado da Cidade do Vaticano possui uma Constituição própria, a Lei Maior que rege os demais aspectos e instrumentos legais do mencionado Estado confessional, garantindo-lhe a independência e a soberania.
Desde vinte e dois de fevereiro de 2001 está em vigor a Nova Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano, outorgada pelo Papa João Paulo II, em substituição à anterior, primeira, emanada em 1929 pelo Papa Pio XI.

Os Artigos 1 e 2 da mencionada Lei asseveram:

Art. 1 - O Sumo Pontífice, Soberano do Estado da Cidade do Vaticano, tem a plenitude dos poderes legislativo, executivo e judicial.
Art. 2 - A representação do Estado nas relações com os Estados estrangeiros e com os outros sujeitos de direito internacional, para as relações diplomáticas e a conclusão dos tratados, é reservada ao Sumo Pontífice, que a exerce por meio da Secretaria de Estado.
(Disponível em: <http://www.vatican.va/vatican_city_state/legislation/documents/scv_doc_20001126_legge-fondamentale-scv_po.html> Acesso em: 27 ago. 2012.).


Por se tratar de um Estado sui generis, elencaremos a seguir informações cujo objetivo é estabelecer um parâmetro de compreensão que possa refletir as singularidades do Estado da Cidade do Vaticano e da Santa Sé. Segundo dispõe o sítio oficial da Santa Sé (Disponível em: <http://www.vatican.va> Acesso em 10 jun. 2012.), a Sancta Sedis Episcopalis, está sediada na Cidade do Vaticano.
Trata-se da máxima expressão da Igreja Católica Apostólica Romana em todo o orbe.
A chefia do Estado da Cidade do Vaticano é exercida mediante uma monarquia absoluta eletiva teocrática - o Papa (que detém para si os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário).
O idioma oficial é o Latim, língua na qual são primeiramente redigidos os documentos oficiais da Santa Sé.
A moeda adotada atualmente é o Euro.
De tal Sede, por meio da Cúria Romana, particularmente da Secretaria de Estado, administra-se não somente a população oficial do Estado em questão (menos de mil habitantes), mas também a expressão religiosa de mais de um bilhão de Católicos espargidos pelos cinco continentes.
O território do Estado da Cidade do Vaticano preenche 0,44 quilômetros quadrados.
Não possui forças armadas, propriamente, exceto a Guarda Suíça, com cerca de cem integrantes, responsável primeiramente pela segurança do Sumo Pontífice e, sucessivamente, pelo espaço territorial do Estado.
Além da Guarda Suíça, o Papa conta com o denominado Corpo de Segurança, isto é, pessoas devidamente capacitadas que o acompanham em suas visitas apostólicas mundo afora.
Importa frisar ainda que o Estado ora descrito não possui sequer um único aeroporto, apenas um heliporto e uma estação ferroviária; possui, todavia, extramuros, em Castel Gandolfo, um Observatório Astronômico a serviço da Santa Sé, um dos mais antigos do mundo, fundado pelo Papa Gregório XIII, em 1572; cita-se também no contexto a Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano, fundada em 1603 - que teve como um de seus membros Galileu Galilei.
Atualmente a mencionada Academia conta com a colaboração de 22 cientistas “prêmios Nobel” de variados campos.
O Estado da Cidade do Vaticano conta ainda com a mais antiga biblioteca da Europa – a Biblioteca Apostólica Vaticana – e sob seus cuidados estão obras raríssimas, chegando à casa dos 1,7 milhões de unidades (incunábulos, códices manuscritos, pergaminhos, gravuras, moedas, etc.).
Outro pormenor interessante de se mencionar é a riqueza cultural sob guarda do Estado da Cidade do Vaticano em seus museus e monumentos arquitetônicos.
São obras diversas que perpassam a produção artística desde a antiguidade, passando pelo período clássico, medievalidade, modernidade, até a contemporaneidade.
Neste ínterim, há que se explicitar que o Tratado de Latrão, celebrado entre o Brasil e a Itália, proíbe qualquer espécie de comércio das obras de arte acondicionadas e preservadas pelo Estado Vaticano.
De acordo com o sítio oficial do Estado da Cidade do Vaticano (Disponível em: <http://www.vaticanstate.va/IT/homepage.htm> Acesso em 25 out. 2012.), o mesmo define-se como uma Cidade-Estado, reconhecida desde 1929, com a assinatura do Tratado de Latrão. Todavia, a Santa Sé se distingue do Estado da Cidade do Vaticano, isto é, a Santa Sé é responsável pelas expressões religiosas da Igreja Católica Apostólica Romana em todo o mundo; já o Estado da Cidade do Vaticano é um Estado independente, que sedia a Igreja Católica Apostólica Romana e cuida das questões político-administrativas estatais, mormente por intermédio da Secretaria de Estado e do Corpo Diplomático.
Tanto o Estado da Cidade do Vaticano, quanto a Santa Sé emitem passaportes: o primeiro os ordinários; a segunda, passaportes diplomáticos e de serviços, pois a Santa Sé não é um Estado, embora possua personalidade jurídica.

Trata-se de um Estado sui generis, cuja pretensão ao reconhecimento no concerto político internacional não se relaciona com um eventual poder econômico, nem com uma força militar, que não possui; sua importância decorre da sua autoridade moral, enquanto representa uma instituição milenar dedicada à defesa da dignidade humana, da justiça e da paz na convivência entre os povos. Essa autoridade é bem reconhecida e prestigiada pelas representações diplomáticas (Nunciaturas e Delegações Apostólicas) presentes em mais de 190 países e pelos representantes ou observadores que mantém em cerca de 20 Organismos Governamentais Internacionais, que vão desde a ONU até à organização da Liga dos Estados Árabes (SCHERER, 2009, p. 34).


No âmbito do Direito Internacional, há que se esclarecer que o Estado da Cidade do Vaticano e a Santa Sé possuem, cada qual, personalidade jurídica própria, sendo que o Vaticano é reconhecido como Estado independente e soberano - e este fator lhe concede personalidade jurídica; já a Santa Sé tem sua personalidade jurídica internacionalmente reconhecida na pessoa do próprio Papa, que também é chefe do Estado da Cidade do Vaticano. Corroborando o anteposto, evidencia-se que a partir do Tratado de Latrão, celebrado em 11 de fevereiro de 1929, subscrito por Benito Mussolini, então Primeiro Ministro do governo da Itália, e o representante da Igreja, a Santa Sé teve por reconhecida a plenitude de sua personalidade jurídica, configurada na própria pessoa do Papa.
Este, por sua vez, passou a ser, além de chefe supremo da Santa Sé, chefe do governo do Estado da Cidade do Vaticano.
Por conseguinte, com o Tratado de Latrão, surgiu um novo sujeito do Direito Internacional, o Estado da Cidade do Vaticano.
Este é o ponto central para um entendimento da distinção entre o Estado da Cidade do Vaticano e a Santa Sé. De acordo com Mazzuoli (2008, p.369), o Estado da Cidade do Vaticano é um Estado Instrumental a serviço da Santa Sé.
Um é o Estado, política e juridicamente concebido; o outro é a máxima representação da Igreja Católica Apostólica Romana – cujo envolvimento abrange o mundo todo.


A Igreja e o Estado.
A história do Brasil está intimamente ligada ao cristianismo, particularmente ao Catolicismo.
Desde o Descobrimento encontram-se traços de religiosidade em terras brasileiras. Episódios significativos são encontrados ao longo da estruturação político-constitucional do Brasil.
A primeira Constituição, de 1824, menciona a Santíssima Trindade e no seu artigo 5º expõe a religião Católica Apostólica Romana como religião oficial do Império.
Sendo assim, pode-se afirmar que o Brasil em sua primeira etapa política se desenvolveu mediante uma união entre a Igreja e o Estado, embora tenha havido alguns conflitos no campo religioso.
Uma série de atos decorrentes de uma união entre a Igreja e o Estado repercutiu na estrutura jurídica brasileira.
É o caso, por exemplo, do registro de nascimentos por meio das celebrações batismais; o registro de casamentos através dos enlaces matrimoniais; e o registro dos óbitos para os falecidos que recebiam alguma assistência religiosa da Igreja.
Trata-se, pois, da constituição de uma base de dados legais relevantes à vida pessoal e social da época, não obstante padecerem do vínculo com alguma instituição pública.

Todos esses aspectos decorrem não só do primeiro documento constitucional brasileiro, mas de vivencias religiosas tradicionais, herdadas de Portugal que servem de base a uma aliança muito influente entre o Governo e a Instituição Católica. Sob certo aspecto, a Igreja desta forma vai sofrer uma ingerência do Poder Estatal que lhe será prejudicial (ANDRADA, 2009, p. 22).

A ingerência mencionada acima ficou conhecida como Padroado, circunstância de um acordo político-administrativo em que autoridades eclesiásticas eram nomeadas mediante pressão do poder público em prol de interesses de poder.
A extinção oficial do Padroado deu-se em 1890, logo após a Proclamação da República, ato este que favoreceu a instituição jurídica da Igreja perante o Estado brasileiro, inclusive declarando sua laicidade (que viria a figurar constitucionalmente na Carta Magna de 1891).

Com a República, houve uma alteração fundamental nessas relações e prevaleceu entre nós o pensamento positivista de Augusto Comte, com uma tendência agnóstica preponderando em grande parte das nossas elites. O país passou a submeter-se a uma nova Carta Constitucional, a de 1891, que determinava a separação do Estado em face da Igreja, embora não fosse de forma conflitante ou violenta, mas em termos bem claros e evidentes. O documento em que o Estado brasileiro regulamentou essa situação foi o Decreto 119, de 20 de janeiro de 1890, no governo do Marechal Deodoro da Fonseca, onde vamos encontrar as determinações do desligamento da Igreja com o Estado republicano (ANDRADA, 2009, p. 22).

A Constituição republicana de 1891, ao contrário da monárquica, determinava, pois, um afastamento entre as ações da Igreja e do Estado. Houve, inclusive, práticas discriminatórias em que foi cerceado o direito de voto aos religiosos e imposto aos mesmos uma série de obrigações incongruentes às ocupações espirituais.
Com o advento da Revolução de 1930 e, consequentemente, de uma nova Constituição, a de 1934, houve uma aproximação da religião e do Estado, eliminando, assim, as discriminações contidas na primeira Carta Magna republicana e evidenciando a vocação religiosa do povo brasileiro.
Em 1937, com o período ditatorial de Vargas, há uma nova reaproximação da Constituição de 1937 com relação à de 1991, onde não se faz menção a Deus e o texto exibe um aparente agnosticismo, não obstante assegurar a liberdade de culto.
A Constituição de 1946, por sua vez, volta a referir-se a Deus e retoma a tradição de 1934 e de 1824 no que tange à formulação do respeito pelas religiões, mantendo, porém, o caráter da laicidade estatal, não se referindo explicitamente em favor desta ou daquela religião, mas generalizando a liberdade à adesão e culto religioso no país.
As Constituições subsequentes, ou seja, as de 1967, 1969 e a de 1988, todas, sem exceção, afirmam o respeito e pedem a proteção de Deus em seu Preâmbulo.
Asseveram, também, a liberdade religiosa de modo amplo e irrestrito, sem discriminação.
Ademais, a atual Constituição enfatiza a relevância e a necessidade das relações internacionais com os mais diferentes povos e admite, sem mais, a aproximação com todos os credos religiosos, em plena consonância com as garantias próprias aos direitos humanos.

Na história brasileira, portanto, o único texto que coloca a Igreja afastada do Estado, em termos bem claros, é a Constituição de 1891 ao incorporar a orientação do célebre Decreto nº 119, de 20 de janeiro 1890, no qual se sente a presença do pensamento positivista agnóstico e de certa forma ecletista. Por outro lado é de se registrar que a Constituição de 1937 retroagiu, reiterando o posicionamento de 1891 no tocante às relações do Estado com a Igreja, revelando no seu preâmbulo, como acontece com a primeira Constituição republicana, uma clara omissão no tocante a referência a Deus, ao contrário de todas as outras Constituições brasileiras (ANDRADA, 2009, p. 23).


Dada a explanação que percorre aspectos das constituições já elaboradas para a nação brasileira, infere-se, pois, que a relação entre a Igreja e o Estado tem uma história que adentra e perpassa os campos legal, social e cultural.
As garantias constitucionais vigentes refletem um avanço nas tratativas concernentes à liberdade religiosa.
O Estado é laico; o povo, no entanto, tem direito à religião.
Direito que não se limita à esfera particular, intimista, mas expande-se à possibilidade de manifestação pública da fé que se professa, independente do credo.
Por conseguinte, o mencionado direito não se limita ao Catolicismo, mas abrange um direito essencialmente humano a todos, a liberdade religiosa.



Liberdade Religiosa e Direitos Humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos seus Artigos XVIII, XIX e XX, enfatiza categoricamente:

Artigo XVIII: Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Artigo XIX: Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo XX: Toda pessoa tem direito à  liberdade de reunião e associação pacíficas. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
(Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso em: 19 jun. 2012.).


A liberdade religiosa tem sua garantia estabelecida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e, em plena consonância com a mesma, com o Direito Internacional e com diversos tratados internacionais que versam sobre o assunto, a Constituição brasileira de 1998 em vigência expõe em seu Artigo 5º a inviolabilidade da consciência religiosa, a liberdade de culto, bem como a proteção aos locais dos mesmos, garante a assistência religiosa às entidades civis e militares e a garantia da não privação de direitos por motivo de crença religiosa, filosófica ou política.
Estabelece-se, pois, no âmbito jurídico e legal, a plena garantia do livre acesso e adesão a qualquer credo e/ou culto religioso ao povo brasileiro, resguardada a laicidade estatal nos termos de nossa Lei Maior.
 


O Acordo Brasil - Santa Sé.
O Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil, foi assinado em 13 de novembro de 2008 na Cidade do Vaticano, pelo Papa Bento XVI e o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
Após análise e votação pelo Congresso Nacional, o mencionado Acordo foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 698, de 7 de outubro de 2009, entrando em vigor em 10 de dezembro de 2009. Por fim, através do Decreto nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010, deu-se a Promulgação do Acordo.
Quando da assinatura do Acordo entre o Brasil e a Santa Sé houve algumas manifestações no sentido de um temor com relação a uma possível transgressão à laicidade do Estado, garantida pela Constituição.
Supôs-se que o mencionado Acordo legasse privilégios específicos à Igreja Católica Apostólica Romana.
Tal hermenêutica, no entanto, é infundada.
Basta uma leitura atenta e imparcial do conteúdo do Acordo para se concluir que o mesmo é um verdadeiro tratado que garante a liberdade religiosa não apenas aos cristãos católicos, mas a todos os que professam uma religião, qualquer que seja.


De acordo com Stacchini (2009, p. 74):

Para que essa laicidade do Estado seja levada à prática, sem prejudicar a vida social, é necessário precisar o significado concreto de laicidade; e, para tanto, o primeiro registro é o seguinte: dizer que um Estado é laico significa dizer que será um Estado no qual não haverá uma ‘religião oficial’, em que as confissões religiosas são tratadas sem discriminação ou favorecimento pelos órgãos do Estado, todas alçadas ao mesmo patamar de igualdade e de respeito; será um Estado administrado e regido conforme o ordenamento jurídico nele vigente, e não por dispositivos constantes de textos religiosos, como a Bíblia ou o Alcorão. Ademais, em um Estado laico, os agentes públicos alcançam seus postos de comando em conformidade com a Constituição e as Leis, e não por serem membros de uma determinada hierarquia religiosa.

Importa explicitar que também a Igreja Católica Apostólica Romana defende a laicidade do Estado como um valor que enaltece a civilização.

É o que se vê, por exemplo, já em documentos do Concilio Ecumênico Vaticano II. Assim, a Constituição pastoral Gaudium et spes, em seu ponto número 76, com o título “a comunidade política e a Igreja”, registra que a Igreja não é chamada à administração do âmbito temporal, porque “em razão da sua missão e da sua competência, de modo algum se confunde com a comunidade política e não está vinculada a qualquer sistema político determinado”. No recente Compêndio da Doutrina Social da Igreja (cf. especialmente os pontos 571 e 572) encontramos a mesma ideia, exposta em termos diferentes, com a afirmação expressa no sentido de que a laicidade do Estado “é um valor adquirido e reconhecido pela Igreja, e pertence ao patrimônio de civilização que se logrou atingir” (STACCHINI, 2009, p. 75).


Contudo, o princípio da laicidade não deve ser confundido com a ideologia laicista - que visa banir da sociedade qualquer manifestação religiosa.
Tal posicionamento encerra um viés equivocado e totalitário, e se baseia numa deturpação da laicidade do Estado.
A laicidade positiva exige respeito às confissões religiosas, assegurando a elas o livre exercício de suas atividades de culto e caridade.
No mundo atual existe uma tendência ao pluralismo e, sendo assim, a laicidade consiste em uma oportunidade de diálogo entre as diferentes confissões religiosas e tradições espirituais com a nação.
Todos, portanto, devem ter garantido o seu direito de livre exercício da sua atividade religiosa e espiritual.
A Igreja Católica Apostólica Romana empreendeu o Acordo em questão visando estabelecer juridicamente o seu lugar perante o governo e a sociedade.
Todavia, a assinatura de tal instrumento, longe de inviabilizar a ação de outras religiões ou mesmo de beneficiar a Igreja, significa uma oportunidade de também as outras religiões firmarem acordos com o Estado brasileiro.
 
No que tange ao ensino religioso o Acordo Brasil - Santa Sé dispõe em seu Artigo 11:

A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.
§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação (Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, 2009, p. 11, grifo nosso).


O artigo acima não afasta a possibilidade de se ministrar o ensino de outras confissões religiosas; pelo contrário, o prevê.
Cabe aqui o régio princípio da liberdade religiosa, isto é, seja a Igreja Católica Apostólica Romana, seja qualquer outra religião, cada qual de seus fiéis em idade escolar tem o direito de receber o ensino religioso concernente ao seu credo.
Importa frisar que a matrícula nas mencionadas aulas de ensino religioso é facultativa.
Ademais, o Estado, juntamente com as confissões religiosas que pleitearem ensino de seu credo, deverá deliberar os meios para a possibilidade prática do exercício de tal direito.
O que se depreende do Acordo ora analisado é que o mesmo é o mais clarividente reflexo da tradição cultural brasileira de acolhimento, abertura e não discriminação.
O que a Igreja nele defende para si, não o impede para os demais grupos religiosos legalmente constituídos, mas protege e promove os direitos humanos fundamentais.

Verifica-se, agora analisando o conteúdo da Concordata, que os objetivos que perseguem tanto a Igreja Católica, através da Santa Sé, quanto da República Federativa do Brasil através do Governo Federal, são os de proteção e promoção dos DIREITOS HUMANOS. É inegável, sem qualquer dúvida, que o trabalho da Igreja Católica, através de sua estrutura eclesiástica e seus representantes, sacerdotes, bispos e demais colaboradores, é de vital importância para a defesa dos Direitos Humanos em nossa sociedade. Ao passo que cuida das questões espirituais de seus fiéis, nossos cidadãos brasileiros, incute nestes um sentimento de fraternidade, igualdade entre os semelhantes, amor e respeito para com o próximo, valores morais da doutrina cristã, que são também estimuladores de uma convivência Justa, Pacífica e Cordial entre os indivíduos. A proteção e difusão de valores morais, sociais e individuais agregam uma força consistente às nossas estruturas sociais, que somente vem em benefício do grupo social como um todo. Não se trata, absolutamente, de fanatismo ou exageros, mas de conceitos fundamentais presentes não somente na religião católica, mas que de uma forma geral verifica-se igualmente em outras profissões de fé, como também na filosofia e pensamento humanista (Guimarães; Guimarães, 2009, p. 140).

 
Concluindo.
O Acordo estabelecido entre o Brasil e a Santa Sé está em plena consonância com os dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro, com os tratados internacionais e com a Constituição Federal.
A alegação de inconstitucionalidade padece da ausência de argumentos sólidos e convincentes.
A laicidade do Estado não reflete o caráter de cerceamento da liberdade religiosa em qualquer âmbito.
O Estado é laico, mas o povo que o constitui tem por direito constitucional professar a religião de sua escolha.
A Igreja Católica Apostólica Romana pleiteou um Estatuto Jurídico que norteasse sua expressão no território brasileiro.
O mesmo pode fazer as demais confissões religiosas, sem qualquer discriminação.
Igualmente se exprime no que diz respeito ao ensino religioso católico de matrícula facultativa no Ensino Fundamental público brasileiro, isto é, idêntico direito têm as demais religiões de fazê-lo, pleiteando junto às autoridades competentes a isonomia garantida pela Constituição Federal e, inclusive, pelo Acordo ora abordado (Art. 11, § 1).
No mais, o Acordo entre o Brasil e a Santa Sé é um verdadeiro Tratado de Direitos Humanos que vem ratificar a liberdade do pleno exercício da atividade religiosa no País.
Atividade esta que inclui a diversidade cultural e a pluralidade religiosa como pressupostos, bem como a legalidade (nacional e internacional) no amplo espectro da análise.
Conclui-se, pois, a ampla e irrestrita validade e licitude do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé.

 

Para saber mais sobre o assunto.
Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé. Lumen – Revista de Estudos e Comunicações, São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36, p. 7-14, jun. 2009.

ANDRADA, B. Relatório apresentado na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional – Congresso Nacional. Lumen – Revista de Estudos e Comunicações, São Paulo: IESP/UNIFAI, v. 15, n. 36, p. 15-31, jun. 2009.

A NOVA LEI FUNDAMENTAL DA CIDADE DO VATICANO. Disponível em: <http://www.vatican.va/vatican_city_state/legislation/documents/scv_doc_20001126_legge-fondamentale-scv_po.html> Acesso em: 27 ago. 2012.

A SANTA SÉ. Disponível em: <http://www.vatican.va> Acesso em 10 jun. 2012.

BIBLIOTECA APOSTÓLICA VATICANA. Disponível em: <http://www.vaticanlibrary.va/> Acesso em: 02 out. 2012.

CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/cdc/index_po.htm> Acesso em 19 jun. 2012.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em 18 jun. 2012.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso em: 19 jun. 2012.

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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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