Para
entender a história... ISSN
2179-4111. Ano 4, Volume jul., Série 09/07, 2013, p.01-04.
Samara de Jesus
Neves & Marineide de Jesus Ferreira.
Licenciadas em
História pela Universidade do Estado da Bahia.
Tomando como princípio os
movimentos historiográficos que giram em torno das novas possibilidades de se
trabalhar a história não apenas analisando documentos “antigos”, ou
propriamente, as ditas fontes oficiais, podemos perceber que embora ainda
recente, existem uma multiplicidade de fontes indispensáveis ao trabalho do
historiador, das quais poderemos destacar nesse momento, a influência da
literatura nos estudos históricos.
Essa
relação entre história e literatura incentivou os debates no campo
historiográfico a partir da década de 1970, evidenciando o quanto se torna
relevante a narrativa do documento histórico, considerando que tanto o
conhecimento histórico, quanto a narrativa literária seriam discursos sobre o
passado que se complementam, embora com suas particularidades, evidenciando uma
realidade.
História
e Literatura como aliadas?
Dessa forma, Antonio Montenegro
se propõe a realizar um trabalho pautado no diálogo entre literatura e
história, privilegiando a história oral de vida, e como temática de análise,
escolhe as crianças moradoras de rua.
Para tanto, o autor vale-se de
três obras literárias (Capitães da Areia, Jorge Amado; Pai contra mãe, Machado
de Assis; Oliver Twist, Charles Dickens), a partir das quais, os respectivos
autores buscaram retratar uma sociedade de sua época, por meio das criações
fictícias.
Montenegro ao trabalhar a
temática, busca estabelecer um contraponto entre literatura e fontes orais e
escritas, no intuito de evidenciar a importância da diversidade de fontes para
o trabalho do historiador.
Além disso, traz como proposta, a
introdução de relatos orais dentro da literatura, o que torna o trabalho ainda
mais enriquecedor.
Essa relação entre romance
histórico e fontes orais pode ser notada na obra de Jorge Amado, na qual o
referido autor procura trazer relatos orais fictícios que se assemelham a
descrições divulgadas na imprensa da época, sobre as condições das crianças
internadas nas casas correcionais.
Conforme Montenegro, apesar da
obra de Amado compreender uma criação literária, ela reflete a forma como a
sociedade da década de 1930 agia diante das realidades vivenciadas pelas
crianças de rua.
É no intuito de fazer perceber a
importância das narrativas ficcionais também intercaladas com outras fontes,
que Montenegro realiza a análise das obras literárias possíveis de serem
trabalhadas como fonte para discutir um determinado contexto em uma sociedade.
Pode-se inferir que Montenegro
defende, e pratica o uso da literatura para análise histórica.
Uma fonte como outra,
influenciada por múltiplos fatores, e produzida com determinado fim.
O contexto histórico presente
nessas obras não é puramente um dado ilustrativo, os autores refletem e
possibilitam transpor uma visão das condições de determinada sociedade.
Nas últimas décadas do século
passado as fronteiras entre história e literatura estavam abertas, embora
houvesse constantes polêmicas em torno desse cruzamento.
Os historiadores se posicionavam
muitas vezes em lados opostos, visto que alguns tinham a literatura como fonte,
um documento válido para a análise histórica, passível de falhas e/ou
contradições, possibilitando múltiplas leituras, e permitindo a descoberta de
outras fontes.
Enquanto, de outro lado, haviam
aqueles que a tomavam como uma representação da realidade, da História,
aproximando os discursos.
Nesse sentido, ao analisar as
obras literárias já mencionadas, Montenegro procura evidenciar a riqueza da
análise dos fatos históricos por meio das narrações literárias.
Por muito tempo não era
nitidamente distinguido ficção de realidade, sendo possível com maior
“segurança” só a partir do século XIX.
No entanto, Montenegro ao
trabalhar a temática das crianças de rua, constatou ser bastante difícil
delimitar as fronteiras entre literatura e história, visto que ambas percorrem
caminhos semelhantes.
No Brasil alguns literatos, ou
romancistas históricos se propuseram a retratar a vida cotidiana, visto se
tratar de preocupações dos mesmos, ou o reflexo de uma necessidade da
sociedade, são exemplos mencionados por Soares, José de Alencar, Machado de
Assis, este último do qual Montenegro analisa a obra Pai contra mãe.
Obra essa que possibilita
perceber um contexto histórico riquíssimo, retratando dentre outros aspectos, a
problemática da roda dos enjeitados no Rio de Janeiro, cidade que se encontrava
em processo de urbanização, ainda uma sociedade impregnada pela escravidão.
Nesse contexto, é retratada a
história de Candinho, um capitão do mato que está condicionado ao imaginário da
escravidão, visto que, em meio as necessidades vivenciadas, o personagem não
foi capaz de seguir um caminho diferente daquele que sempre lhe foi
direcionado.
Nesse aspecto, Montenegro atenta
para a questão do meio, em muitos casos, como o de Candinho, não ser capaz de possibilitar
ao individuo escolher um caminho que não seja da criminalidade.
Dessa forma, é possível perceber
a conexão de temas históricos dentro da literatura, visto que as crianças das
rodas, de Machado, ou as moradoras de rua, como os capitães da areia de Amado,
não são mencionadas por constituírem mera ficção literária, houve uma intenção
dos autores ao descrever essa realidade trazendo tais personagens para a sua
ficção.
A partir da publicação em 1993,
dos registros das memórias orais de meninos e meninas que viviam nas ruas de
Salvador, Montenegro concluiu que os romances históricos denunciam realidades
sociais, a muito ignoradas.
No contexto dos contos de Jorge
Amado é evidenciado o mundo infantil pobre sob o domínio do mundo policial, a
instituição e as práticas que levantam questionamentos sobre os valores e os
princípios que permeiam os diversos espaços sociais reais.
Para além disso, segundo
Montenegro, através do conto, Machado de Assis, conseguiu construir a
mentalidade de uma época que poderia ser explorada pelo olhar do escritor e do
historiador resultando em infinitas conexões.
Entretanto, é na segunda metade
do século XIX que história e literatura rompem suas relações, ganhando
estatutos opostos.
Nesse contexto, a história é
evidenciada como ciência, o “lugar da verdade na apreensão do real”, enquanto a
literatura se caracteriza como um sistema da arte, espaço da ficção, do
imaginário, “da produção de não-verdades”.
No entanto, historiadores,
principalmente os adeptos da “história nova”, buscaram retomar um diálogo com
as outras ciências e também com as artes, em virtude do rigor da ciência na
busca pela fidelidade dos fatos, tornando difícil apreender o real, em virtude
das limitações e dos condicionamentos aos quais o historiador estava submetido.
Diante disso, torna-se possível
ampliar o campo de possibilidades de análises, bem como, de múltiplas
abordagens, podendo trabalhar com fontes pouco utilizadas pelos historiadores,
como a literatura.
Visto que “o horizonte da
literatura é sempre o real que se pretende representar, que ela nunca está
afastada dele, mas participa da sua construção”, não se deve desconsiderar que “narrar
em história, mesmo que ela realmente tenha ocorrido, é reinventá-la”.
Isso significa que é preciso
reconhecer que no processo de construção histórica (seleção de documentos,
interpretações e atribuições de sentidos) está presente a ficcionalidade e a
imaginação.
Dessa forma, nota-se
convergências quanto as representações do real tanto na literatura quanto na
história, conforme constatado por Montenegro.
Soares aponta como distinção
entre os dois discursos, a questão da utilização dos documentos, visto que na
literatura não há uma preocupação no fazer historiográfico, na constituição de
um conhecimento verídico, ou melhor, a literatura não está aprisionada a
pesquisa documental, atividade que caracteriza o trabalho do historiador.
Ela se utiliza de forma liberada
dos indícios do passado. Resumidamente, “talvez uma das distinções entre
literatura e história não esteja naquilo que perseguem, mas nos modos de dar
conta de tais objetivos”.
Se na história, a verdade
prende-se aos fatos avaliados por um conjunto de regras, na literatura a
verdade não possui nem reconhece fronteiras.
Tanto a história quanto a
literatura podem lançar mão de documentos de outras épocas com a diferença de
que a literatura não precisa se fixar neles.
Concluindo.
A guisa de conclusão, a
literatura lida com o imaginário, trata do discurso do que poderia ter
acontecido, enquanto a história fica responsável pela narrativa dos fatos
verídicos.
No entanto, não é porque a
literatura está relacionada com o imaginário que não seja suscetível a análise
historiográfica. Isso é o que Montenegro nos possibilita perceber com seu
estudo.
Ainda assim, podemos dizer que o
fato histórico também é uma criação do historiador baseado nos documentos “reais”
do que teria acontecido, e a ficção é a criação a partir de algo que existe ou
existiu e deixou vestígios.
No entanto, o historiador ao
contrário do literato não toma o fato no seu sentido absoluto, esse fato é
descoberto, analisado e transformado em fonte, atribuindo-lhe significados.
Torna-se interessante perceber
que a narrativa atua em campos diversos e, por essa razão, podemos pensar em
narrativas, como algo plural.
Com inúmeras peculiaridades, ela
consegue evidenciar, de alguma forma, a reflexão.
Uma narrativa pode mudar de campo
e atender a interesses diferentes.
E o uso da linguagem literária
beneficia o desenvolvimento do raciocínio, o aprofundamento da percepção na
leitura do livro e do mundo, o diálogo entre as diversas formas de linguagens,
o estímulo à pluralidade e a compreensão das diferenças.
A literatura dessa forma
proporciona assimilação de reflexões filosóficas por parte dos leitores que,
temerosos em enfrentar discussões incompreensíveis, identificam com facilidade
temas tratados de maneira mais sensível, contudo sem perder a qualidade e sem
abandonar a complexidade inerente ao desenvolvimento do pensamento crítico.
Para
saber mais sobre o assunto.
ADAN,
Caio Figueiredo Fernandes. “A literatura como evidência histórica: cotidiano
popular em O Cortiço (1890).” In: Revista de História e Estudos Culturais.
vol. V, ano V, nº 3. Jul/Agost/Set, 2008.
MONTENEGRO,
Antonio Torres. Crianças de rua: literatura, história e memória oral. In:
Projeto História. 22. História e Oralidade. São Paulo: EDUC. Jun/2001.
pp. 239-258.
PESAVENTO,
Sandra Jutahy. História e Literatura: uma velha-nova história. In: Nuevo
Mundo Mundos Nuevos. História Cultural do Brasil. (Debates). Jan/2006.
SOARES,
Valter Guimarães. História e Literatura: é possível sambar? In: Universidade
Estadual de Feira de Santana (UESB). Artigos Anpuh BA II.
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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
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