Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume jul., Série 20/07, 2011, p.01-04.
Viagem e evasão caminham de mãos dadas; o desejo de romper com os ritos sufocantes do quotidiano tem levado, desde tempos imemoriais, homens e mulheres a partir.
Se alguns buscam na viagem o prenúncio de coisas novas, de paisagens diversas onde cheiros e gostos nunca dantes provados lhes satisfaçam os sentidos, há, por outro lado, os que procuram, lá longe, o mesmo, o idêntico.
Buscam hotéis onde poderão comer da mesma comida e quartos com a mesma televisão que os conduza, pelos caminhos da globalização, ao mesmo programa habitualmente visto lá na terrinha que se deixou para trás.
Para esses, um cenário diferente fica congelado, entre outros tantos, na máquina fotográfica ou na filmadora de última geração para ser consumido, de volta, numa sessão de pipoca e Coca-Cola, com os amigos.
Esse tipo de viagem desenvolve um exotismo, mas um exotismo “ocular”.
Ela só pode ser visitada através de lentes.
Todos somos turistas.
No prolongamento do “voyeurismo” turístico, há os que viajam através dos programas de televisão, visitando sem esforço, riscos e custos, mundos distantes.
Desde a Idade Média, a Ásia é a campeã de audiência.
A rota das especiarias e da seda, trilhada em lombo de camelo por comerciantes do Mediterrâneo foram substituídas por escaladas no Himalaia, visitas a templos budistas, mergulhos entre peixes multicoloridos e balonismo nas ilhas do Pacífico.
O lema é: Seja um viajante, - mas na sua poltrona.
Renuncia-se a idéia de ser ator para ser espectador da viagem.
Existem, por fim os que viajam “para dentro”, capazes de transportar-se para lugares do passado ou do futuro graças a certa melodia, perfume ou imagem, deslizando docemente para um universo silencioso de sentimentos nostálgicos.
Viajamos para longe, de verdade ou de mentira, em busca daquilo que, estando próximo, não reconhecemos mais.
Mas se viajar é maravilhoso o mesmo não se pode dizer da criatura nascida deste desejo desabrido de locomover-se: o turista.
Na verdade, viajando por terras desconhecidas ou pela TV, somos todos turistas.
O outro ao nosso lado.
Para cada viajante, o indivíduo que vai sentado ao lado, no avião, é o inimigo potencial.
Os signos de identificação, na maior parte das vezes, são óbvios.
Ele fala alto, carrega uma mala que precisa de três aeromoças para caber no compartimento da bagagem de mão e, embora tendo escolhido o assento da janela, levanta-se mil vezes durante a noite.
O fato de só andar “em bando”, o que lhe dá mais segurança, permite-lhe, também, gritar todo o tempo, pois afinal, o melhor amigo está do outro lado da aeronave.
Quando vem de Miami, desembarca com o chapéu do Mickey e algumas toneladas de excesso.
Sobre ele e suas malas, o comentário que mais se ouve às portas do desembarque é sempre: mas, afinal, onde está a crise?!
Suas estórias são de arrepiar: protegido pelo anonimato e pela dificuldade da língua, o turista desrespeita o que pode e não deve.
Tenta burlar o vendedor da loja, o garçon do restaurante, o funcionário do quiosque de informações.
Aplica lá fora a “lei de Gérson”.
Carrega como uma formiga todo o estoque de xampus e sabonetes do hotel e é um milagre quando não leva junto o cinzeiro e as toalhinhas de mão.
Afinal, para ele tudo é “souvenir”.
E a programação?
Via de regra, ela começa pelos chamados pontos turísticos, um eufemismo para encobrir lojas e shoppings em perpétua liquidação cuja característica suplementar é a farta distribuição de brindes.
Como é raro ver brasileiros em museus, galerias ou livrarias, no exterior!
Quando o fazem, é porque deu no jornal que é chique.
E a aquisição de cultura... onde entra?
Na realidade, um roteiro cultural só é cumprido para fazer parte das tantas coisas consumidas e depois trocadas numa conversa social.
O turista obedece assim às leis de uma sociedade produtivista capaz de criar bens de consumo (as viagens) correspondentes à lógica do mercado.
Tudo indica que nesta viagem aparentemente “de verdade”, nada é verdadeiro.
Refiro-me ao interesse que deve ter um viajante pelos caminhos plurais das culturas nas quais se podem mergulhar graças ao deslocamento geográfico.
Penso em coisas concretas como a comida, a língua, as festas religiosas, as artes, fenômenos das quais se participa dividindo com os locais, as emoções, o respeito e mesmo a curiosidade que eles nos inspiram.
A capacidade que tem o viajante de se apropriar dessas experiências só lhe pode ajudar a compreender de onde, uma sociedade que difere da sua, tira a substância de sua inteligência e de seus sonhos, obrigando-o a se afastar de apressadas generalidades capazes criar preconceitos contra o quê, e os que não se conhece.
Concluindo.
Alheio a possibilidade de aprimorar sua cultura e abrir o olhar para expandir horizontes, instalado no frenesi do lazer e do consumo, o turista vê na viagem uma compensação ou uma revanche contra a vida diária e o trabalho.
A viagem do consumista desenvolve um tipo de passividade do qual ela já é o efeito primordial.
Quanto mais tempo ou mais rapidamente se viaja, menos se escolhe as viagens.
Nelas, pouco se cria e tudo se consome, pois tudo o que o turista perde em termos de conhecimentos lhe é vendido em objetos.
Distinguir, contudo, um turista de um viajante não é difícil.
O primeiro traz na bagagem, o efêmero.
O segundo uma lembrança para a vida inteira, buscando carregar consigo para sempre o conhecimento de novas culturas e não apenas demonstrar status pelo poder de consumo de poder visitar outros lugares.
Texto: Profa. Dra. Mary Del Priore.
Doutora em História Social pela USP, com Pós-Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris/França).
Lecionou História do Brasil Colonial nos Departamentos de História da USP e da PUC/RJ.
Autora de mais de cinqüenta livros e atualmente professora do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO/NITERÓI.
Membro do Conselho Editorial de "Para entender a história..." desde 14/01/2011.
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