Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume out., Série 21/10, 2010.
A história e o historiador.
Como lembrou a professora Vavy Pacheco Borges, existem certas definições que aparentemente soam como desnecessárias, sendo este, por exemplo, o caso da história.
Entretanto, desde que a história iniciou sua jornada rumo ao reconhecimento como ciência, a partir do século XVIII, repensar conceitualmente a história, tornou-se absolutamente necessário.
Neste sentido, a reboque, a discussão em torno do ofício do historiador tornou-se também objeto intenso de debates.
Assim como a forma de lidar com seu material de trabalho, relendo testemunhos e silêncios, assim como a condução a bom termo do desempenho de sua profissão, fazendo da história uma ciência.
Na década de 1960, Jacques Le Goff tentou elucidar a questão, chegando a afirmar que o trabalho do historiador consistia em estabelecer acontecimentos, bastando aplicar aos documentos um método para fazer os fatos aparecerem.
Porém, descrever o ofício do historiador, envolve considerações mais complexas.
Ao contrário do que poderia ser imaginado, o historiador não produz analogias aleatórias a partir de imagens que forma de frases soltas nos documentos, não junta grosseiramente colocações que possam sustentar sua opinião pessoal e não constrói imagens do passado calcadas em suas próprias lembranças ou em concordância com sua visão do presente.
Ele carece do domínio de técnicas que permitam, constantemente, retificar a história, substituindo, como pretenderam alguns, os traços falsos pelos exatos.
É justamente o domínio da técnica que permite ler os documentos para tentar visualizar corretamente o passado.
Como afirmou Charles Beard, o historiador não é um observador do passado que permanece fora de seu próprio tempo, não pode vê-lo objetivamente, como o químico vê seus tubos de ensaio, devendo ver a realidade por intermédio da documentação, seu único recurso.
O historiador e a análise das fontes.
O historiador, não sendo um individuo isento de influencias as mais diversas, fruto de seu próprio tempo, necessita de técnicas que permitam tentar alcançar a objetividade cientifica na leitura e interpretação das fontes.
Poderíamos listar uma infinidade de técnicas utilizadas para ler os dados contidos nos documentos, algumas emprestadas por outras ciências, outras surgidas no seio da análise histórica. Entretanto, Jean Chesneaux sintetizou as mais usuais na sua obra clássica Devemos fazer tábua rasa do passado, a despeito de confundi-las por vezes com métodos e empregar técnica e método dentro da mesma acepção.
Segundo ele, toda análise histórica, obviamente a partir do século XIX, é tecnicista, busca uma abordagem profissional, sendo reflexo e sustentáculo da ideologia capitalista.
Dentro da amplitude deste pressuposto, é habitual observar que os historiadores, independente da corrente teórica ou orientação metodológica, em geral, utilizam a técnica de análise baseada na diacronia-sincronia, assim como a periodização e, por vezes, a quantificação.
Através da diacronia-sincronia, todo fenômeno histórico, expresso através da língua, é analisado simultaneamente em uma série vertical e horizontal; sua extensão na dimensão do tempo, a diacronia, permite observar as conexões, antecedentes e conseqüências; já sua relação com outras referências do conjunto que é contemporâneo, a sincronia, permite visualizar as implicações entre fatos aparentemente desconexos, mas que encontram relação, por vezes, diretas.
Um refinamento da diacronia, a periodização é uma extensão da técnica, organizando as articulações em etapas, períodos que visam facilitar o estudo do fenômeno, criando compartimentos fechados envolta de momentos que parecem centrais dentro de cada etapa da história.
Uma técnica que foi reforçada pela prática pedagógica, especializando o conhecimento histórico, servindo de exemplo os estudos focados no renascimento ou na Idade Moderna.
Menos usual do que as técnicas qualitativas da diacronia-sincronia e da periodização, a quantificação passou a permitir estabelecer relações complexas, usando a estatística para chegar a conclusões palpáveis.
A técnica surgiu, como ressaltou Jacques Le Goff, na década de 1960, a partir do estimulo da revolução tecnológica representada pela invenção do computador.
No entanto, como lembrou Gramsci, cabe ressaltar que a história não pode ser reduzida a um cálculo matemático, ou ainda que a estatística mostra o caminho ao cego, mas não restitui a visão.
O que não invalida a técnica da quantificação e nem tampouco seus desdobramentos a história demográfica e a história serial, linhas de pesquisa que já foram tidas como concepções teóricas ou metodológicas, mas que na realidade constituem aprofundamentos da técnica.
A leitura das lacunas do passado.
Em certa ocasião, Walter Benjamin lembrou que o passado só se deixa fixar como imagem que relampeja, irreversivelmente, no momento em que é reconhecida, fazendo com que o historiador não tenha domínio dos fatos como eles realmente foram, apropriando-se de uma reminiscência do passado; constituindo um espaço repleto de “agoras”, apenas uma construção limitada pelo que é possível conhecer em dado contexto, circunscrito ao momento de sua configuração, captando a imagem de sua própria época e não, propriamente, do passado que almeja conhecer, inserindo-se na leitura deste passado tento os testemunhos como os espaços em branco, os silêncios.
Talvez por este motivo, desde o século XIX, os limites da história sempre foram questionados, muitas vezes considerada mais próxima da literatura do que da ciência.
É inegável que o positivismo e a escola metódica inauguraram a busca pela objetividade na história, fazendo os historiadores passarem a procurar sua cientificidade desde então.
Como ressaltou Ciro Flamarion Cardoso, a partir de Annales, dado seu pluralismo e a análise das estruturas globais, a história adquiriu um incontestável caráter cientifico, uma vez que, como qualquer outra ciência, passou a trabalhar não mais com acontecimentos únicos, mas com aspectos sujeitos a regularidades, como as estruturas sociais e culturais.
A primeira geração de Annales fundou um conceito de história extremamente vinculado à ciência.
Lucien Febvre definiu a história como uma ciência do homem e do passado humano, das coisas e dos conceitos, cabendo ao historiador interpretar os feitos humanos, recompondo a realidade que serve ao entendimento de um momento concreto, a partir do que os documentos permitiram em dado contexto.
Neste sentido, a interpretação das lacunas, embasada por métodos e técnicas, também constituiria objeto do oficio do historiador.
Seguindo esta linha de orientação, Paul Veyne, na década de 1970, concluiu que a história possuiria grande proximidade com a ficção, se distinguido de um romance somente pelo compromisso de buscar a verdade, constituindo, na realidade, uma tentativa de narrar à verdade, prejudicada pelo caráter subjetivo da história e da interpretação das fontes.
Isto para não mencionar outros aspectos circunscritos à documentação que sustenta a análise histórica, tal como a inexatidão da narrativa ou as intenções envolvidas na produção das fontes.
Em outras palavras, como afirmou Eric Hobsbawm, o passado e a história são ferramentas utilizadas para legitimar as ações do presente, assim como as fontes têm um alcance político e ideológico, tornando a visão do passado distorcida.
É justamente baseado na leitura das lacunas do passado pelo historiador, envolvendo não só a ausência de dados, os silêncios; mas também a incapacidade de análise objetiva das fontes.
Foi por este motivo que, pejorativamente, Poincaré, filosofo da ciência, chegou a afirmar que a história seria uma ciência que adivinha o passado.
Em certo sentido ele tinha razão, como demonstrou Michel de Certeau, hoje, mais do que nunca, o historiador tem se desviado para as zonas silenciosas, como, por exemplo, a feitiçaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o mundo do esquecido, etc.
O historiador tem estudado os silêncios da história, examinando a ausência de documentação, criando hiatos que são objeto de questionamento e problematização.
Destarte, como ressaltou Jacques Le Goff, não existe sociedade sem história, o que conduz ao conceito de historicidade, o pertencer de cada individuo ao seu tempo, os aspectos comuns que todos os homens de determinada época compartilham; impossibilitando qualquer ciência de evitar extrair conclusões próprias, descoladas de sua historicidade.
Concluindo: o ofício do historiador e a problematização do passado.
Quer seja o oficio do historiador o domínio de métodos e técnicas, circunscritos a um conjunto teórico; ou, ainda, um exercício de imaginação, a construção de uma narrativa verossímil, entre outras possíveis; não se pode negar que o surgimento da escola de Annales, uma reação critica as concepções históricas do século XIX, notadamente rejeitando a ênfase positivista e metódica em política, diplomacia e guerras, assim como a abordagem economicista do marxismo, inaugurou uma postura diferenciada.
Annales se propôs a problematizar a história, contrariando a coleção de fatos perpetuada pelas tendências anteriores, tentando se isentar de ideologia, procedimento adotado pelo marxismo, embora esta tentativa seja passível de inúmeras criticas, já que o historiador, estando inserido em um tempo histórico, jamais conseguirá traçar uma análise imparcial.
A partir da problematização, Annales desdobrou-se em várias linhas teóricas e campos de pesquisa, notadamente servindo de base para criar departamentos tanto de história social como econômica; fomentando debates acerca da natureza teórica do conhecimento histórico, atualmente, incorporados ao panorama contemporâneo.
Para saber mais sobre o assunto.
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Texto:
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor
em Ciências Humanas - USP.
MBA
em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado
em Filosofia - FE/USP.
Bacharel
em Filosofia - FFLCH/USP.
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