Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume fev., Série 21/02, 2011, p.01-08.
A despeito da discussão iniciada na antiguidade, durante a Idade Moderna, René Descartes revolucionou a maneira de pensar a construção do conhecimento, podendo ser considerado o pai da moderna Teoria do Conhecimento.
A despeito de grande parte dos historiadores da filosofia considerar John Locke como o fundador da Teoria do Conhecimento, foi Descartes que, seguindo a tradição estabelecida por Parmênides, demoliu todas as certezas para reconstruí-las sob as bases solidas da razão.
Depois de um período em que, durante a Idade Média, o cristianismo interrompeu a discussão sobre a possibilidade de conhecer, o racionalismo cartesiano ousadamente retomou a temática.
O cristianismo havia distinguido verdades de fé reveladas da realidade racional, optando por demonstrar que o conhecido era apenas o permitido por Deus, quando o filosofo francês provou que sem a razão não era nem ao menos ter certeza da existência de um ser imaterial superior ao homem.
Descartes e o Racionalismo.
René Descartes (1596-1650) nasceu na França, em uma família burguesa enobrecida, estudou em colégio jesuíta, onde aprendeu autodisciplina e tomou gosto pelos estudos.
Foi neste período que notou a ausência de uma metodologia capaz de fornecer sustentação a ciência e a filosofia; instruindo, controlando e ordenando as idéias para guiar a busca pela verdade.
O que o levaria a escrever, mais tarde, o Discurso do método.
Na realidade, Descartes estabeleceu uma critica a ciência de sua época e aos ensinamentos tradicionais.
Chegou a afirmar que na filosofia não se encontrava até então uma só coisa que não fosse duvidosa.
Isto, principalmente porque reinava naquele momento a escolástica, uma tendência medieval que defendia a idéia de que a fé em Cristo e a razão deveriam ser conciliadas.
Para Tomás de Aquino, por exemplo, não poderia haver contradição entre fé e razão, sendo que Deus garantia a verdade em detrimento do obvio.
Já Santo Agostinho simbolizava a junção entre fé e razão através de um episódio que o teria levado a conversão.
Segundo ele, andando pela praia, questionando a existência de Deus, encontrou um garoto tentando encher um buraco na areia com água do mar.
Ao perguntar aquela criança sua intenção, obtém a resposta que o menino queria colocar toda a água do mar no buraco.
Chamando o garoto de louco, escuta dele que é mais fácil colocar toda água do mar no buraco na areia do que o homem, com sua razão limitada, entender o que é Deus.
Descarte se opôs, justamente, a este tipo de pensamento e forma de explicar o mundo.
Para isto, defendeu a idéia da recuperação do sentido original da matemática, uma palavra que, a partir do grego ta mathema, significa conhecimento completo ou conhecimento racional integral de ponta a ponta.
Ainda na juventude o francês já afirmava que somente a matemática poderia fundamentar com conceitos firmes e sólidos a ciência e a filosofia.
Aliás, dois conceitos que ainda se confundiam neste período e até pelos menos o século XVIII.
No entanto, Descartes deixou o colégio jesuíta desorientado, sem saber como aplicar a matemática na construção de um conhecimento de fato totalizante, estudando direito e freqüentando aulas de medicina.
Formado, viajou pela Europa, alistando-se nas tropas de Mauricio de Nassau, na Holanda, em 1618.
No ano seguinte, serviu no exercito de Maximiliano da Baviera, no que hoje é a Alemanha.
Nesta época em que foi soldado, estudou física e, depois, resolveu viajar novamente pela Europa, até se estabelecer na Holanda em 1628, quando conheceu Galileu Galilei, interessando-se pelo estudo da matemática pura.
Foi quando escreveu sua primeira obra filosófica, as Regras para a direção do espírito (1628), pesquisando e escrevendo sobre ótica, lentes, o funcionamento dos olhos humanos, a luz, anatomia e a circulação sanguínea.
Fruto destas pesquisas, publicou O mundo ou tratado sobre a luz, uma obra sobre física, além de um estudo antropológico intitulado O homem.
Entre 1633 e 1637 publicou mais um tratado de física - Meteoros, dióprica e geometria -, passando a expressar uma intensa preocupação com o problema da objetividade da razão e a autonomia da ciência em relação à onipotência de Deus.
Isto conduziu a publicação da obra O discurso sobre o método, a qual ficaria conhecida como O discurso do método, em 1637, demonstrando o caráter objetivo da razão, indicando regras para buscar a objetividade para alcançar a verdade.
Embora tenha mesclado esta intenção com fundamentos metafísicos, por razões obvias, para tentar escapar da censura da inquisição.
Este caráter metafísico do pensamento cartesiano foi ressaltado na obra Meditações sobre a filosofia primeira, conhecida como Meditações metafísicas, publicada em 1641.
Onde Deus foi apresentado como garantia da existência do mundo e da possibilidade de construção do conhecimento objetivo e concreto da realidade.
Em 1644, Descartes publicou Princípios da filosofia, uma síntese de suas concepções filosóficas e cientificas.
Dedicando-se a responder objeções de seus críticos, através de cartas remetidas a cada qual, hoje também publicadas.
Em 1649, quando publicou As paixões da alma, onde abordava a relação entre corpos e alma, o problema da moral e do livre-arbítrio; desgostoso com a proibição de suas obras em várias universidades em diferentes pontos da Europa, resolveu aceitar o convite da rainha Cristina da Suécia para integrar sua corte.
A estadia na Suécia foi curta, o hábito da rainha de se reunir com seus protegidos para discutir filosofia às cinco horas da manhã, no inverno rigoroso, diante de sua saúde debilitada e o clima rígido, levou Descartes à morte por pneumonia em dois de fevereiro de 1650.
Após a sua morte, obras póstumas foram publicadas, demonstrando sua imensa genialidade, incluindo suas mencionadas cartas e um tratado de música.
O método.
Para Descartes, a razão era a única capaz de construir uma ciência segura que conduzisse a verdade, possibilitando certezas matemáticas, inserindo-se no contexto da matemática universal cartesiana.
Isto porque a razão seria o único elemento comum a todos os homens, sendo imutável no tempo e espaço, portanto, universal.
Para a realização deste projeto, Descartes defendeu a idéia de que a ciência e filosofia precisavam de um método universalmente aplicável para fornecer alicerces seguros para a construção do conhecimento.
O método foi definido como um conjunto de regras que, observadas com exatidão, conduziriam à certeza, “ensinando a não tomar o falso por verdadeiro e aumentando, progressivamente”, o conhecimento.
Neste sentido, o método adquiriu o significado que possui ainda entre nós hoje: um conjunto de operações, de regras para alcançar um resultado.
Este método universal deveria ser critico, para contestar e evitar erros; e positivo, forçando a acreditar que é possível chegar à verdade, mesmo que provisória.
O método cartesiano defende três princípios:
1. Clareza: só aceitar aquilo que se a apresenta imediatamente ao espírito; o que surge por meio da intuição direta e é entendido só ao ser observado.
2. Distinção: só aceitar como verdadeira uma idéia que não se confunda com nenhuma outra, sem possibilidade de dúvida.
3. Evidência: aquilo que é claro e distinto; o que pode ser expresso pela máxima de só aceitar como verdadeira a idéia que se apresenta de imediato e sobre a qual não existe dúvida, não havendo como confundi-la com outra.
Portanto, para encontrar a verdade, seria necessário um esforço para não aceitar como certo aquilo que não seja claro e distinto, assim evidente; afastando preconceitos, precipitações, situações emocionais e psicológicas que conduzem ao erro.
Para atingir esta intenção, Descartes pensou em quatro regras que compõem seu método:
1. Evidência: só tomar como verdadeiro aquilo que se apresenta de forma clara e distinta.
2. Análise: dividir problemas complexos em partes menores para solucionar cada questão e, portanto, resolver o problema maior.
3. Síntese: conduzir o pensamento de forma ordenada, organizando do mais fácil para o mais difícil, do simples para o complexo.
4. Enumeração ou Revisão: retomar o pensamento em busca da falhas, encontrando erros reiniciar todo processo.
Neste contexto, para tornar o método uma matemática universal (mathema universalis) seria necessário ainda usar dois elementos:
1. Intuição: uma operação ou processo racional que permite a apreensão imediata e instantânea de uma evidência.
2. Dedução: a operação ou processo racional pelo qual, a partir de verdades conhecidas, poderíamos extrair outras verdades, pois as verdades estariam ligadas, encadeadas de forma progressiva.
Seja como for, a partir do racionalismo cartesiano, todo conhecimento cientifico passou a carecer de metodologia para ser considerado ciência.
O método se tornou o alicerce, a base de sustentação de qualquer teoria.
A dúvida cartesiana.
A dúvida cartesiana funda a moderna Teoria do Conhecimento, estabelecendo uma doutrina que suspende o juízo provisoriamente por não saber se uma proposição é verdadeira ou falsa.
Uma idéia defendida por Descartes nas obras Discurso do método (1637), Meditações metafísicas (1641) e Princípios da filosofia (1644).
Através da dúvida, ele pretendia encontrar a verdade sobre a possibilidade de conhecer, utilizando como primeiro argumento o gênio maligno.
O filosofo pretendia aplicar seu método ao saber tradicional, fornecido pelo mundo sensível, pelos sentidos, para ver se existia alguma verdade naquilo que julgamos real.
Supondo que não existe Deus, mas sim um gênio maligno, enganador, afirma que todas as coisas exteriores podem ser apenas ilusões e enganos.
O gênio maligno pode iludir a pensar que determinado objeto é real, quando não existe além da mente.
Em seguida, pensando nas experiências sensíveis, lembra que os sentidos enganam, lançando mão do argumento do erro dos sentidos.
Cita como exemplo uma vara dentro da água, a qual parece entortar ou ficar mais curta para o observador, mas continua igual.
Nem mesmo a razão escapa da dúvida, pois boa parte do saber se fundamenta na razão.
Também este elemento parece duvidoso, a partir do argumento do sono e da vigília, o qual demonstra que o raciocínio erra.
Descartes relata que muitas vezes está diante da lareira aquecendo-se, mas, de repente, acorda e se vê sobre a cama debaixo das cobertas; ou seja, sua mente enganou seu raciocínio.
Neste momento, retoma o argumento do gênio maligno, admitindo a possibilidade da existência de Deus, tornando a dúvida hiperbólica através do argumento do Deus enganador.
Supondo que Deus existe, ele poderia estar me enganando, brincando com o homem, levando a sentir ou pensar coisas que não são reais.
A dúvida se torna hiperbólica porque não há nada certo no mundo, até a matemática e a teologia são colocadas em dúvida.
No entanto, a dúvida cartesiana não é a mesma dos céticos, que negavam a possibilidade de chegar à verdade, é apenas uma etapa para eliminar os entraves que atrapalham a construção do verdadeiro conhecimento racional.
A dúvida serve para afastar o que não é evidente e chegar à verdade, o que é alcançado através do cogito.
O cogito.
Permanecendo a dúvida nunca seria possível construir qualquer tipo de conhecimento, inviabilizando a filosofia e a Teoria do Conhecimento.
A superação deste estado conduz a descoberta do cogito.
Ao duvidar, enquanto duvido, eu penso, logo, existindo pensamento, é necessário que exista quem pense, nem que esta existência do ser seja apenas enquanto ser pensante.
Daí a máxima cartesiana: “cogito ergo sun”, uma expressão em latim que pode ser traduzido como “penso, logo existo”.
Entretanto, não há experiência ou dados fornecidos pelos sentidos, somente intuição, o que é evidente; conduzindo a uma única certeza inquestionável: eu existo como ser pensante.
A realidade do outro ou do mundo exterior já é outra coisa, pois, quanto a isto, a dúvida permanece.
Para que este pensamento não caia no solipsismo - a doutrina que afirma que o eu é a única certeza real e segura no mundo - passa a ser necessário provar a existência de algo fora de mim mesmo, fora do ser pensante.
Até este momento, o eu cartesiano é puro pensamento, res cogitans (ser pensante), já que no caminho da dúvida, a realidade do corpo foi colocada em suspenso.
A res extensa (coisa ou ser extenso, ser material) pode ser apenas imaginada pela razão.
É a prova ontológica da existência de Deus que garante a realidade externa ao eu.
O que possibilita a construção de conhecimentos seguros e a especulação filosófica e cientifica.
Cabe lembrar que a ontologia é a parte da filosofia que especula sobre o ser enquanto ser, estudando as substâncias para além das aparências, em outras palavras, busca conhecer a essência das coisas.
Descartes prova a existência de Deus, justamente, através de sua suposta essência, a partir da idéia de perfeição e infinitude, mostrando pela matemática que o infinito não cabe dentro do que tem fim.
Portanto, a idéia de Deus não pode nascer da mente humana, finita, só pode ter origem externa, fornecida pelo ser infinito, ou seja, Deus.
A existência de Deus, por sua vez, demonstra como a realidade exterior não é ilusão, o que leva, também, a admitir que existem idéias inatas, que são exteriores ao ser pensante e que já nascem com o homem.
Isto mostra que a idéia de corpo é inata e que a res extensa existe concretamente, sendo a realidade possível de ser conhecida através da razão.
Concluindo.
René Descartes desconstrói o mundo, a realidade, antes assegurada pela revelação divina, mostrando que nada é certo, tudo é questionável.
Para em seguida, demonstrar que não é Deus que garante a possibilidade de conhecer, mas sim a razão.
É claro que, sendo um homem de sue tempo, acaba tendo que encaixar Deus em algum lugar, terminando por utilizá-lo como garantia da realidade exterior ao eu.
No entanto, o Deus cartesiano não é exatamente o mesmo Deus cristão; é antes de tudo uma entidade superior, que poderia ser até um deus astronauta.
Descartes errou feio ao afirmar que a glândula pineal fazia a comunicação entre ser pensante e extenso, podendo conferir um sexto sentido ao homem, possibilitando transitar entre realidade física e pensamento.
Mas acertou ao tornar o cogito uma certeza inabalável, tendo como guia um método seguro e universal, permitindo entender a realidade e construir o conhecimento.
Como mostra o filme Matrix, talvez a realidade não passe daquilo que imaginamos, porém, com certeza o pensamento contido no racionalismo cartesiano garante que existe uma possibilidade de conhecer concreta.
Assim, funda a moderna Teoria do Conhecimento.
Para saber mais sobre o assunto.
ALQUIÉ, F. et alli. Galileu, Descartes e o mecanismo. Lisboa: Gradiva, 1987.
KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes. Lisboa: Presença, 1963.
KUJAWSKI, G. M. Descartes existencial. São Paulo: Edusp, 1969.
Texto: Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Olá...sabe o que acho interessante, como mesmo nos dias atuais cada ser tem uma explicação para definir DEUS...ABRAÇOS
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