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segunda-feira, 15 de novembro de 2010

História da infância e da educação no Brasil colônia: Parte 1 – O cenário europeu no século XVI.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume nov., Série 15/11, 2010.


A história da infância e da educação no Brasil, desde seus primórdios até os dias atuais, andou lado a lodo com o quadro das sensibilidades.
Neste sentido, ao estabelecer uma ponte entre a origem mais remota do modo de lidar com as crianças e o contexto presente, compondo uma visão panorâmica do passado, podemos entender melhor o que acontece hoje, permitindo construir um futuro sobre bases mais solidas.
O que não é novidade, já que a importância de entender a história se insere, justamente, em uma tentativa de compreender melhor o presente e a realidade contemporânea.
Nada mais é que uma tentativa de planejar melhor o futuro.
Assim, podemos nos espelhar nas experiências que deram certo no passado e evitar os mesmos erros já cometidos.
Especialmente para aqueles lidam diretamente com a educação e a infância, o exercício da profissão de educador exige entender a evolução da estrutura do ensino.
O que implica em estudar o contexto vivido em cada época e como foi sendo modificada a relação da sociedade o tratamento a infância.
Muitas das praticas em voga tem raízes em um passado que parece muito distante de nós, mas que está bem próximo, portanto, não surgiram de uma hora para outra.

Os nascimentos na Europa.
No século XVI, na Europa, os nascimentos fora do casamento eram raros, mas em Portugal era comum à concepção de anjinhos nos conventos.
As famílias ricas costumavam concentrar suas posses para pagar o dote de sua filha mais velha, encarcerando as outras filhas nos conventos.
Ao mesmo tempo, apenas o filho mais velho tinha direito a herdar o título e as terras da família, restando aos outros filhos homens tornarem-se guerreiros em busca de fortuna ou religiosos.
Como consequência, tornaram-se corriqueiros os casos entre freiras e padres, e a partir daí, os conventos passaram a ser vistos como os melhores locais para ir ter uma amante pela nobreza.
A mesma nobreza que depois não iria ver mal algum em ir amancebar-se com as indígenas no Brasil, afinal se o pudor não se opunha a copula com religiosas o que dizer com mulheres consideradas selvagens.
Ocorre que quando as freiras engravidavam, algo que se tornou muito comum já ao longo do século XV, ficavam escondidas internamente nos conventos durante a gravidez e concebiam não crianças mas sim anjinhos, ao menos na terminologia é claro.
Depois de darem a luz, as religiosas abandonavam o seu rebento nos orfanatos em uma roda que garantia o anonimato e voltavam a sua vida normal.
Era chamada roda dos expostos, que ficava voltada para rua, onde a criança era colocada, para que depois fosse girada, sendo tocado um sino para avisar que havia uma criança ali, sem que a identidade da mãe fosse revelada.
É interessante notar que estas rodas seriam também utilizadas no Brasil a partir do século XVII.

O destino dos órfãos em Portugal.
Os órfãos, quando meninos tinham como destino tornarem-se religiosos.
Alias, muitos deles ainda crianças foram enviados ao Brasil como parte da estratégia de conversão dos índios.
Acreditava-se que poderiam ajudar a converter as crianças nativas.
Já as meninas, eram classificadas como órfãs do Rei e enviadas ao Brasil e a Índia, quando atingiam a idade certa para casar-se com elementos da baixa nobreza.
De qualquer modo, o cotidiano nos orfanatos não era nada fácil.
A comida era racionada, a disciplina rígida, a mão de obra infantil era exaustivamente explorada e abusos sexuais eram comuns tanto nos orfanatos femininos como nos masculinos.
O lado positivo que levava as mães a abandonarem os filhos nos orfanatos é que, pelo menos, não iriam passar fome, teriam um lugar abrigado do frio e do sol para dormir, recebendo uma introdução as letras e o trabalho em troca de pequenos trabalhos que não eram considerados tão pesados como no mundo exterior.

A estrutura familiar europeia.
Em se tratando dos mais pobres, não havia nenhum tipo de controle de natalidade, como consequência as famílias era numerosas.
Isto não era visto como algo ruim.
O nascimento de um rebento era encarado como uma boca a mais para alimentar, porém representava braços muito bem vindos ao cultivo do campo.
Como as mulheres tinham muitos filhos, em geral morriam cedo, muitas vezes no parto.
Quando ficavam viúvos, os homens se casavam rapidamente de novo, não tendo dificuldade em encontrar uma nova esposa.
Na verdade a expectativa de vida rondava pouco mais que os 20 anos para as mulheres e para os homens 30 anos.
No entanto, sempre havia mais mulheres que homens, devido a um índice maior de nascimentos de meninas.
Exatamente devido à frequência de novos casamentos depois da morte da esposa, a estrutura familiar era um tanto frouxa, semelhante àquela registrada por sociólogos nos cortiços do século XX, talvez até pior.
A relação afetiva, quando havia, era estabelecida entre o pai e cada filho individualmente, ou, quando muito, entre a mãe e seus filhos naturais, praticamente inexistindo entre os outros membros da família.
Veio daí aquele velho conto de fadas da Cinderela que todo mundo conhece, a estória que narra a forma como a personagem central é maltratada pela madrasta depois da morte do pai.
Na verdade, era comum filhos de três casamentos serem criados simultaneamente, constituindo uma espécie de família aos pedaços, onde a madrasta não escondia a diferença que fazia entre seus rebentos e os de outras esposas.
A esposa atual, ainda vida, do patriarca da família, alimentava, por exemplo, melhor os seus filhos e utiliza excessivamente as outras crianças nas tarefas mais pesadas da casa e do campo.

A visão da infância em Portugal.
Fosse qual fosse o grau econômico da família, no século XVI, especificamente em Portugal, até atingirem certa idade as crianças eram tratadas como animaizinhos. Os pais evitavam adquirir qualquer afetividade pelo recém-nascido.
O que acontecia porque, em primeiro lugar, metade dos nascidos vivos morria antes de completar sete anos, enquanto a expectativa de vida dos sobreviventes rondava quatorze anos.
Assim, até atingirem esta idade, quando então o índice de mortalidade caía muito, os pais consideravam que não podiam se apegar as crianças, na sua concepção, mais cedo ou mais tarde iriam falecer e causar dor.
Para evitar a constante dor a rondar os pais de proles numerosas, as mentalidades criaram um mecanismo de defesa onde simplesmente a afetividade para com seus filhos era ignorada.
Além disto, justamente por serem as famílias numerosas e frequentes os nascimentos, este desapego para com a infância era facilitado.
Mesmo entre reis, algumas crônicas dão conta que os recém-nascido eram classificados como macho ou fêmea, tal como animais, ou quando muito tratados como pequenos adultos e não como crianças.
Este modo de encarar a afetividade foi desenvolvido ao longo da Idade Média, levou séculos para se estabelecer, mas já estava tão enraizado no imaginário do século XVI, que existem relatos dando conta que mães abandonavam seus filhos em caso de perigo em beneficio da salvação da sua própria vida.
Em certa ocasião, durante um naufrágio, no desespero do momento, uma senhora esqueceu seu filho de alguns meses no navio.
Quando o bate salva-vidas ia já longe, ela avistou o filho no colo de uma escrava que era sua ama.
O bote voltou e a senhora pediu o filho a ama, esta se recusou a dá-lo se ela também não fosse resgatada, ao que a mãe preferiu abandonar o filho à morte a resgatar a escrava, sem derramar uma única lágrima, tamanho o desapego à criança.

Grumetes: a exploração da mão de obra infantil.
A falta de afetividade para com os miúdos, como dizem os portugueses, principalmente entre os mais pobres, fez com que, depois do descobrimento do Brasil, dada a falta de adultos que se fazia sentir, as famílias procurassem aproveitar a mão de obra de seus filhos para lucrarem.
As famílias procuravam alistar seus filhos como grumetes, uma espécie de aprendiz de marinheiro, nos navios que iam para o Brasil e para a Índia, recebendo o equivalente a um ano de soldo e se livrando de uma boca para dar de comer.
Foram estas crianças as primeiras de origem europeia a chegarem no Brasil.
Em geral, dada à mencionada falta de adultos, foram crianças que tripularam as caravelas quinhentistas.
O cotidiano destes meninos era muito sofrido, apesar de terem entre sete e quatorze anos, eram exauridos ainda mais do que em terra, tendo uma dieta bastante restrita.
Para sobreviverem, estas crianças precisavam caçar os ratos a bordo, sofrendo constantemente maus tratos, sendo a elas confiadas às tarefas mais pesadas dos navios.
Como se não bastasse, os grumetes quase sempre eram violentados pelos adultos a tripularem as embarcações.
Esta tradição do emprego da mão de obra infantil nos navios passou depois para a marinha brasileira, tendo sido utilizadas crianças como bucha de canhão durante a guerra do Paraguai e, de certa, forma persistindo em alguns setores da sociedade ou regiões do Brasil.

A mentalidade entre os judeus e os artifícios da Coroa portuguesa.
Diferente do tratamento dispensado as crianças pelos portugueses e os europeus de um modo geral, no século XVI, os judeus tinham uma mentalidade diferente.
Não prescindindo de recursos econômico, sendo a maioria da comunidade formada por médicos e profissionais ligados a meios intelectuais mais elevados, a afetividade dos judeus para com suas crianças era quase como a que temos hoje.
Entretanto, a Coroa portuguesa adotou o rapto e embarque forçado de crianças judias nos seus navios como forma de controle sobre a população judaica em Portugal.
Na época havia um antagonismo tremendo entre cristãos e mouros, assim como entre cristãos e judeus.
Em praticamente todos os países da Europa, os judeus eram mantidos segregados em guetos e controlados de perto pelo Estado, sendo tolerados em Portugal apenas porque os reis necessitavam do seu capital financeiro, já que eram então os principais e mais ricos banqueiros.
Exatamente por serem apenas tolerados, além de raptarem, os portugueses chegaram ao extremo de abandonarem algumas centenas destas crianças em ilhas recém-descobertas na esperança de que se multiplicassem e viessem colonizá-las, garantindo a posse das terras.
As experiências terminaram, como seria de se esperar, em um completo desastre.
Basta imaginar o resultado do abandono de centenas de crianças sozinhas em ilhas desertas, é claro que não poderiam sobreviver.

A educação em Portugal no século XVI.
Não havia para as crianças qualquer possibilidade de ascensão social através da educação.
Pouco antes da chegada dos portugueses ao Brasil, o índice de analfabetismo era enorme entre a população, cerca de 90% da população não sabia sequer escrever o próprio nome.
A educação pública era algo recente e estava ainda sendo estabelecida.
As primeiras letras eram ensinadas em mosteiros que constituíam verdadeiros internatos destinados a nobreza e aqueles que se dispunham deste pequeninos a se tornarem padres.
Os poucos pobres que tinham acesso a uma educação rudimentar dependiam da caridade de algum padre letrado, já que nem todos eram letrados, o qual resolvia ensinar as crianças de sua paróquia julgadas por ele mais espertas.
Em qualquer caso a Bíblia servia sempre como a primeira cartilha, o primeiro contato com as letras.
As escolas leigas eram ainda muito recentes e tinham sido fruto da reforma protestante.
O chamado ginásio clássico surgiu na França somente por volta de 1537, quando um mestre escola holandês, que estudava na Universidade de Paris, ajudou o Estado a organizar um novo modelo educacional.
Ao passo que, pouco mais tarde, sob a égide das reformas Luteranas, praticamente em toda a Alemanha foi implantada a educação leiga.
No entanto, as escolas mantidas pelos Estados protestantes tinham como objetivo servir somente a burguesia e a nobreza e consolidar o protestantismo.
Em Portugal o ensino esteve concentrado quase exclusivamente nas mãos da igreja, principalmente dos jesuítas.
Mesmo as poucas escolas que o Estado mantinha eram obrigadas a ensinar a religião católica como parte da estratégia de combate a heresia protestante, concentrando-se no ensino do latim e dos clássicos gregos e romanos, além das escrituras e da matemática.
No que diz respeito especificamente à educação elementar, enquanto na segunda metade do século XVI boa parte da Europa implementava o ensino da leitura e escrita mesclado ao desenho, a pintura, a música, a dança e aos jogos; em Portugal, a Bíblia continuou a ser a única cartilha e meio de aprendizado das primeiras letras.
Assim, o quadro educacional português era composto por um atraso evidente.

As Universidades, a profissão docente e o atraso lusitano.
Em Portugal, Universidades havia apenas três: Coimbra, Lisboa e Porto.
Em todas elas, como no restante na Europa, haviam cursos centrados em três principais vias: Direito, Filosofia e Medicina.
Aqueles que se formavam em Direito eram aproveitados no funcionalismo público, os que faziam Filosofia seguiam, geralmente, a carreira religiosa, e os formados em Medicina atuavam obviamente como cirurgiões.
Um detalhe interessante é que a profissão de médico estava praticamente proibida para os cristãos, pois a fé ditava que lidar com sangue era impuro, daí a grande maioria dos cirurgiões serem judeus.
Outro detalhe interessante é que não existia um curso especifico destinado à formação de professores e que o magistério era exclusivamente masculino.
As mulheres estavam proibidas de ensinarem, de se tornarem mestre escola, tal como os professores eram então chamados.
As limitações não paravam por aí, pois, embora pudessem apreender os rudimentos das letras e matemática, por serem consideradas pela igreja como seres inferiores intelectual e moralmente, as mulheres não podiam aprofundar seus estudos.
Apenas os professores universitários recebiam uma formação especifica, mas os cargos em Universidades eram quase exclusivamente ocupados por membros do clero.
Exatamente porque em Portugal não houve uma reforma protestante, tendo ficado o ensino atrelado ao catolicismo, o país se condenou a um atraso científico tremendo frente às outras nações da Europa.
Todavia, o Infante D. Henrique, aquele mesmo tido como um dos principais estimuladores das navegações portuguesas, por isto mesmo chamado de “o navegador”, no século XV, procurou reformar o ensino da Universidade de Lisboa.
Ele introduziu disciplinas ligadas à matemática e a astronomia, mas a reforma pouco fez pela evolução do ensino em Portugal, contribuiu muito para o aprimoramento náutico, porém não tirou Portugal do atraso.
Para ter uma ideia deste atraso, enquanto boa parte da Europa formulava novas teorias científicas, concentrando-se no estudo da matemática e de uma nova disciplina, a física, os portugueses continuavam a se valerem dos antigos manuais aristotélicos.
Portugal era avançado no campo da construção naval, cartografia, astronomia e demais artes náuticas, no entanto, em outras áreas era imensamente atrasado.
Na área da medicina, por exemplo, a sangria era tida como a cura para todo e qualquer mau, quando na verdade fazer sangrar um doente não causava mais que a piora do seu quadro clinico.
Muitas vezes os doentes acabavam morrendo de tanto serem sangrados e não da doença que possuíam.
Neste sentido, as técnicas indígenas de cura empregadas no Brasil eram muito mais modernas e eficientes.
Na realidade, o cotidiano infantil não era nada fácil em Portugal pela altura em que o Brasil começou a ser povoado, o que influenciou o cotidiano infantil também em terras brasileiras, gerando uma qualidade baixa do ensino no inicio do período colonial.
A despeito do próprio sistema educacional informal prático pelos indígenas ter sido, antes da chegada do homem branco, melhor e de maior eficiência que o europeu.
Destarte, esta já é outra história que fica para as próximas semanas.

Para saber mais sobre o assunto.
BURGUIÉRE, André. “As mil e uma famílias da Europa” In: BURGUIÉRE et. Alli (direção). História da família - o choque das modernidades: Ásia, África, América, Europa. Lisboa: Terramar, 1998, volume 3, p15-82.
COATES, Timothy J. Degredados e Órfãs: colonização dirigida pela coroa no império português. 1550-1755. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.
EBY, Frederick. História da educação moderna: séc. XVI/séc. XX - teoria, organização e prática educacionais. Porto Alegre: Editora Globo, 1976.
RAMOS, Fábio Pestana. “A História Trágico-Marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI” In: DEL PRIORE, Mary (org.) A História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p.19-54.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2004.
RAMOS, Fábio Pestana. Por mares nunca dantes navegados. São Paulo: Contexto, 2009.

Texto:

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.




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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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