Neste sentido,
ao estabelecer uma ponte entre a origem mais remota do modo de lidar com as
crianças e o contexto presente, compondo uma visão panorâmica do passado,
podemos entender melhor o que acontece hoje, permitindo construir um futuro
sobre bases mais solidas.
O que não é
novidade, já que a importância de entender a história se insere, justamente, em
uma tentativa de compreender melhor o presente e a realidade contemporânea.
Nada mais é que
uma tentativa de planejar melhor o futuro.
Assim, podemos
nos espelhar nas experiências que deram certo no passado e evitar os mesmos
erros já cometidos.
Especialmente
para aqueles lidam diretamente com a educação e a infância, o exercício da
profissão de educador exige entender a evolução da estrutura do ensino.
O que implica em
estudar o contexto vivido em cada época e como foi sendo modificada a relação
da sociedade o tratamento a infância.
Muitas das
praticas em voga tem raízes em um passado que parece muito distante de nós, mas
que está bem próximo, portanto, não surgiram de uma hora para outra.
Os nascimentos na Europa.
No século XVI,
na Europa, os nascimentos fora do casamento eram raros, mas em Portugal era
comum à concepção de anjinhos nos conventos.
As famílias
ricas costumavam concentrar suas posses para pagar o dote de sua filha mais
velha, encarcerando as outras filhas nos conventos.
Ao mesmo tempo,
apenas o filho mais velho tinha direito a herdar o título e as terras da
família, restando aos outros filhos homens tornarem-se guerreiros em busca de
fortuna ou religiosos.
Como
consequência, tornaram-se corriqueiros os casos entre freiras e padres, e a
partir daí, os conventos passaram a ser vistos como os melhores locais para ir
ter uma amante pela nobreza.
A mesma nobreza
que depois não iria ver mal algum em ir amancebar-se com as indígenas no
Brasil, afinal se o pudor não se opunha a copula com religiosas o que dizer com
mulheres consideradas selvagens.
Ocorre que
quando as freiras engravidavam, algo que se tornou muito comum já ao longo do
século XV, ficavam escondidas internamente nos conventos durante a gravidez e
concebiam não crianças mas sim anjinhos, ao menos na terminologia é claro.
Depois de darem
a luz, as religiosas abandonavam o seu rebento nos orfanatos em uma roda que
garantia o anonimato e voltavam a sua vida normal.
Era chamada roda
dos expostos, que ficava voltada para rua, onde a criança era colocada, para
que depois fosse girada, sendo tocado um sino para avisar que havia uma criança
ali, sem que a identidade da mãe fosse revelada.
É interessante
notar que estas rodas seriam também utilizadas no Brasil a partir do século
XVII.
O destino dos órfãos em Portugal.
Os órfãos,
quando meninos tinham como destino tornarem-se religiosos.
Alias, muitos
deles ainda crianças foram enviados ao Brasil como parte da estratégia de
conversão dos índios.
Acreditava-se
que poderiam ajudar a converter as crianças nativas.
Já as meninas,
eram classificadas como órfãs do Rei e enviadas ao Brasil e a Índia, quando
atingiam a idade certa para casar-se com elementos da baixa nobreza.
De qualquer
modo, o cotidiano nos orfanatos não era nada fácil.
A comida era
racionada, a disciplina rígida, a mão de obra infantil era exaustivamente
explorada e abusos sexuais eram comuns tanto nos orfanatos femininos como nos
masculinos.
O lado positivo
que levava as mães a abandonarem os filhos nos orfanatos é que, pelo menos, não
iriam passar fome, teriam um lugar abrigado do frio e do sol para dormir,
recebendo uma introdução as letras e o trabalho em troca de pequenos trabalhos
que não eram considerados tão pesados como no mundo exterior.
A estrutura familiar europeia.
Em se tratando
dos mais pobres, não havia nenhum tipo de controle de natalidade, como consequência
as famílias era numerosas.
Isto não era
visto como algo ruim.
O nascimento de
um rebento era encarado como uma boca a mais para alimentar, porém representava
braços muito bem vindos ao cultivo do campo.
Como as mulheres
tinham muitos filhos, em geral morriam cedo, muitas vezes no parto.
Quando ficavam
viúvos, os homens se casavam rapidamente de novo, não tendo dificuldade em
encontrar uma nova esposa.
Na verdade a
expectativa de vida rondava pouco mais que os 20 anos para as mulheres e para
os homens 30 anos.
No entanto,
sempre havia mais mulheres que homens, devido a um índice maior de nascimentos
de meninas.
Exatamente
devido à frequência de novos casamentos depois da morte da esposa, a estrutura
familiar era um tanto frouxa, semelhante àquela registrada por sociólogos nos
cortiços do século XX, talvez até pior.
A relação
afetiva, quando havia, era estabelecida entre o pai e cada filho
individualmente, ou, quando muito, entre a mãe e seus filhos naturais,
praticamente inexistindo entre os outros membros da família.
Veio daí aquele
velho conto de fadas da Cinderela que todo mundo conhece, a estória que narra a
forma como a personagem central é maltratada pela madrasta depois da morte do
pai.
Na verdade, era
comum filhos de três casamentos serem criados simultaneamente, constituindo uma
espécie de família aos pedaços, onde a madrasta não escondia a diferença que
fazia entre seus rebentos e os de outras esposas.
A esposa atual,
ainda vida, do patriarca da família, alimentava, por exemplo, melhor os seus
filhos e utiliza excessivamente as outras crianças nas tarefas mais pesadas da
casa e do campo.
A visão da infância em Portugal.
Fosse qual fosse
o grau econômico da família, no século XVI, especificamente em Portugal, até
atingirem certa idade as crianças eram tratadas como animaizinhos. Os pais
evitavam adquirir qualquer afetividade pelo recém-nascido.
O que acontecia
porque, em primeiro lugar, metade dos nascidos vivos morria antes de completar
sete anos, enquanto a expectativa de vida dos sobreviventes rondava quatorze
anos.
Assim, até
atingirem esta idade, quando então o índice de mortalidade caía muito, os pais
consideravam que não podiam se apegar as crianças, na sua concepção, mais cedo
ou mais tarde iriam falecer e causar dor.
Para evitar a
constante dor a rondar os pais de proles numerosas, as mentalidades criaram um
mecanismo de defesa onde simplesmente a afetividade para com seus filhos era
ignorada.
Além disto,
justamente por serem as famílias numerosas e frequentes os nascimentos, este
desapego para com a infância era facilitado.
Mesmo entre
reis, algumas crônicas dão conta que os recém-nascido eram classificados como
macho ou fêmea, tal como animais, ou quando muito tratados como pequenos
adultos e não como crianças.
Este modo de
encarar a afetividade foi desenvolvido ao longo da Idade Média, levou séculos
para se estabelecer, mas já estava tão enraizado no imaginário do século XVI,
que existem relatos dando conta que mães abandonavam seus filhos em caso de
perigo em beneficio da salvação da sua própria vida.
Em certa
ocasião, durante um naufrágio, no desespero do momento, uma senhora esqueceu
seu filho de alguns meses no navio.
Quando o bate
salva-vidas ia já longe, ela avistou o filho no colo de uma escrava que era sua
ama.
O bote voltou e
a senhora pediu o filho a ama, esta se recusou a dá-lo se ela também não fosse
resgatada, ao que a mãe preferiu abandonar o filho à morte a resgatar a
escrava, sem derramar uma única lágrima, tamanho o desapego à criança.
Grumetes: a exploração da mão de obra infantil.
A falta de
afetividade para com os miúdos, como dizem os portugueses, principalmente entre
os mais pobres, fez com que, depois do descobrimento do Brasil, dada a falta de
adultos que se fazia sentir, as famílias procurassem aproveitar a mão de obra
de seus filhos para lucrarem.
As famílias
procuravam alistar seus filhos como grumetes, uma espécie de aprendiz de
marinheiro, nos navios que iam para o Brasil e para a Índia, recebendo o
equivalente a um ano de soldo e se livrando de uma boca para dar de comer.
Foram estas
crianças as primeiras de origem europeia a chegarem no Brasil.
Em geral, dada à
mencionada falta de adultos, foram crianças que tripularam as caravelas
quinhentistas.
O cotidiano
destes meninos era muito sofrido, apesar de terem entre sete e quatorze anos,
eram exauridos ainda mais do que em terra, tendo uma dieta bastante restrita.
Para
sobreviverem, estas crianças precisavam caçar os ratos a bordo, sofrendo
constantemente maus tratos, sendo a elas confiadas às tarefas mais pesadas dos
navios.
Como se não
bastasse, os grumetes quase sempre eram violentados pelos adultos a tripularem
as embarcações.
Esta tradição do
emprego da mão de obra infantil nos navios passou depois para a marinha
brasileira, tendo sido utilizadas crianças como bucha de canhão durante a
guerra do Paraguai e, de certa, forma persistindo em alguns setores da
sociedade ou regiões do Brasil.
A mentalidade entre os judeus e os artifícios da
Coroa portuguesa.
Diferente do
tratamento dispensado as crianças pelos portugueses e os europeus de um modo
geral, no século XVI, os judeus tinham uma mentalidade diferente.
Não prescindindo
de recursos econômico, sendo a maioria da comunidade formada por médicos e
profissionais ligados a meios intelectuais mais elevados, a afetividade dos
judeus para com suas crianças era quase como a que temos hoje.
Entretanto, a
Coroa portuguesa adotou o rapto e embarque forçado de crianças judias nos seus
navios como forma de controle sobre a população judaica em Portugal.
Na época havia
um antagonismo tremendo entre cristãos e mouros, assim como entre cristãos e
judeus.
Em praticamente
todos os países da Europa, os judeus eram mantidos segregados em guetos e
controlados de perto pelo Estado, sendo tolerados em Portugal apenas porque os
reis necessitavam do seu capital financeiro, já que eram então os principais e
mais ricos banqueiros.
Exatamente por
serem apenas tolerados, além de raptarem, os portugueses chegaram ao extremo de
abandonarem algumas centenas destas crianças em ilhas recém-descobertas na
esperança de que se multiplicassem e viessem colonizá-las, garantindo a posse
das terras.
As experiências
terminaram, como seria de se esperar, em um completo desastre.
Basta imaginar o
resultado do abandono de centenas de crianças sozinhas em ilhas desertas, é
claro que não poderiam sobreviver.
A educação em Portugal no século XVI.
Não havia para
as crianças qualquer possibilidade de ascensão social através da educação.
Pouco antes da
chegada dos portugueses ao Brasil, o índice de analfabetismo era enorme entre a
população, cerca de 90% da população não sabia sequer escrever o próprio nome.
A educação
pública era algo recente e estava ainda sendo estabelecida.
As primeiras
letras eram ensinadas em mosteiros que constituíam verdadeiros internatos
destinados a nobreza e aqueles que se dispunham deste pequeninos a se tornarem
padres.
Os poucos pobres
que tinham acesso a uma educação rudimentar dependiam da caridade de algum
padre letrado, já que nem todos eram letrados, o qual resolvia ensinar as
crianças de sua paróquia julgadas por ele mais espertas.
Em qualquer caso
a Bíblia servia sempre como a primeira cartilha, o primeiro contato com as
letras.
As escolas leigas
eram ainda muito recentes e tinham sido fruto da reforma protestante.
O chamado
ginásio clássico surgiu na França somente por volta de 1537, quando um mestre
escola holandês, que estudava na Universidade de Paris, ajudou o Estado a
organizar um novo modelo educacional.
Ao passo que,
pouco mais tarde, sob a égide das reformas Luteranas, praticamente em toda a
Alemanha foi implantada a educação leiga.
No entanto, as
escolas mantidas pelos Estados protestantes tinham como objetivo servir somente
a burguesia e a nobreza e consolidar o protestantismo.
Em Portugal o
ensino esteve concentrado quase exclusivamente nas mãos da igreja,
principalmente dos jesuítas.
Mesmo as poucas
escolas que o Estado mantinha eram obrigadas a ensinar a religião católica como
parte da estratégia de combate a heresia protestante, concentrando-se no ensino
do latim e dos clássicos gregos e romanos, além das escrituras e da matemática.
No que diz
respeito especificamente à educação elementar, enquanto na segunda metade do
século XVI boa parte da Europa implementava o ensino da leitura e escrita
mesclado ao desenho, a pintura, a música, a dança e aos jogos; em Portugal, a
Bíblia continuou a ser a única cartilha e meio de aprendizado das primeiras
letras.
Assim, o quadro
educacional português era composto por um atraso evidente.
As Universidades, a profissão docente e o atraso
lusitano.
Em Portugal,
Universidades havia apenas três: Coimbra, Lisboa e Porto.
Em todas elas,
como no restante na Europa, haviam cursos centrados em três principais vias:
Direito, Filosofia e Medicina.
Aqueles que se
formavam em Direito eram aproveitados no funcionalismo público, os que faziam
Filosofia seguiam, geralmente, a carreira religiosa, e os formados em Medicina
atuavam obviamente como cirurgiões.
Um detalhe
interessante é que a profissão de médico estava praticamente proibida para os
cristãos, pois a fé ditava que lidar com sangue era impuro, daí a grande maioria
dos cirurgiões serem judeus.
Outro detalhe
interessante é que não existia um curso especifico destinado à formação de
professores e que o magistério era exclusivamente masculino.
As mulheres
estavam proibidas de ensinarem, de se tornarem mestre escola, tal como os professores
eram então chamados.
As limitações
não paravam por aí, pois, embora pudessem apreender os rudimentos das letras e
matemática, por serem consideradas pela igreja como seres inferiores
intelectual e moralmente, as mulheres não podiam aprofundar seus estudos.
Apenas os
professores universitários recebiam uma formação especifica, mas os cargos em
Universidades eram quase exclusivamente ocupados por membros do clero.
Exatamente
porque em Portugal não houve uma reforma protestante, tendo ficado o ensino
atrelado ao catolicismo, o país se condenou a um atraso científico tremendo frente
às outras nações da Europa.
Todavia, o
Infante D. Henrique, aquele mesmo tido como um dos principais estimuladores das
navegações portuguesas, por isto mesmo chamado de “o navegador”, no século XV, procurou
reformar o ensino da Universidade de Lisboa.
Ele introduziu
disciplinas ligadas à matemática e a astronomia, mas a reforma pouco fez pela
evolução do ensino em Portugal, contribuiu muito para o aprimoramento náutico,
porém não tirou Portugal do atraso.
Para ter uma ideia
deste atraso, enquanto boa parte da Europa formulava novas teorias científicas,
concentrando-se no estudo da matemática e de uma nova disciplina, a física, os
portugueses continuavam a se valerem dos antigos manuais aristotélicos.
Portugal era
avançado no campo da construção naval, cartografia, astronomia e demais artes
náuticas, no entanto, em outras áreas era imensamente atrasado.
Na área da
medicina, por exemplo, a sangria era tida como a cura para todo e qualquer mau,
quando na verdade fazer sangrar um doente não causava mais que a piora do seu
quadro clinico.
Muitas vezes os
doentes acabavam morrendo de tanto serem sangrados e não da doença que
possuíam.
Neste sentido,
as técnicas indígenas de cura empregadas no Brasil eram muito mais modernas e
eficientes.
Na realidade, o
cotidiano infantil não era nada fácil em Portugal pela altura em que o Brasil
começou a ser povoado, o que influenciou o cotidiano infantil também em terras
brasileiras, gerando uma qualidade baixa do ensino no inicio do período
colonial.
A despeito do
próprio sistema educacional informal prático pelos indígenas ter sido, antes da
chegada do homem branco, melhor e de maior eficiência que o europeu.
Destarte, esta
já é outra história que fica para as próximas semanas.
Para saber mais sobre o assunto.
BURGUIÉRE,
André. “As mil e uma famílias da Europa” In: BURGUIÉRE et. Alli (direção). História da família - o choque das
modernidades: Ásia, África, América, Europa. Lisboa: Terramar, 1998, volume
3, p15-82.
COATES, Timothy
J. Degredados e Órfãs: colonização
dirigida pela coroa no império português. 1550-1755. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.
EBY, Frederick. História da educação moderna: séc. XVI/séc.
XX - teoria, organização e prática educacionais. Porto Alegre: Editora
Globo, 1976.
RAMOS, Fábio
Pestana. “A História Trágico-Marítima das crianças nas embarcações portuguesas
do século XVI” In: DEL PRIORE, Mary (org.) A
História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p.19-54.
RAMOS, Fábio
Pestana. No tempo das especiarias.
São Paulo: Contexto, 2004.
RAMOS, Fábio
Pestana. Por mares nunca dantes
navegados. São Paulo: Contexto, 2009.
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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
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