Figura 2: O menino Zé
Bocoió.
Fonte: Livro “Cultura da Terra” (AZEVEDO, 2008, p.38).
Analisando apenas as publicações de Câmara Cascudo e
Ricardo Azevedo, sem esquecer Monteiro Lobato, tem-se uma ideia do vasto
repertório oral de que dispõe o Brasil. E esse conteúdo poderia e/ou deveria
integrar os programas de ensino.
“Através dos contos populares...temos a oportunidade
de entrar em contato com temas que dizem respeito à condição humana vital e
concreta, suas buscas, seus conflitos, seus paradoxos, suas transgressões e
suas ambiguidades.” (AZEVEDO, 2008, p.187).
Acredita-se que é possível criar um programa de
educação de qualidade inserindo elementos da cultura popular nacional ao invés
de importar elementos eruditos que não fazem, nem de longe, parte da realidade
vivida aqui.
Embora também a cultura erudita não possa ser desprezada como um
todo devido à sua relevância.
René Marc, antropólogo e doutor em
História pela Universidade de Brasília, ainda complementa:
...a descoberta
dos contos populares pela escola pode infundir novo oxigênio e vida nos
programas de ensino, desde a mais tenra idade da educação infantil aos ciclos
finais do ensino fundamental. Recuperar nos currículos, para crianças e
adolescentes, a beleza do narrar, do poetizar, do cantar, do jogar com as
palavras é permitir respirar de novo, com novos ares, o terreno sobre o qual se
pretende construir um conhecimento diferenciado. (SILVA, 2008, p.129).
O conhecimento diferenciado citado acima entra no
âmbito da interdisciplinaridade.
Como construí-la e praticá-la no ensino
importando sistemas de gestão escolar que não retratam a identidade cultural
brasileira?
Por tudo que foi argumentado até aqui, a tradição
oral oferece um sólido alicerce para se trabalhar a questão da
interdisciplinaridade, que está presente nos Parâmetros Curriculares
Nacionais.
Unindo as duas, acredita-se
que de fato se alcance a construção lúdica e significativa do aprendizado em
sala de aula.
Pois, afinal, o que representam os contos se não os desejos,
anseios e medos que se sentem ligados ao cotidiano e à própria vida?
Baixada
Santista e suas histórias populares.
Foi abordado até aqui a importância do trabalho de
Perrault e dos irmãos Grimm para a universalização dos contos populares, além
da riqueza oral presente no Brasil por este ser um país multicultural.
No entanto, a Baixada Santista, sobretudo Santos e
São Vicente, também possuem um fabuloso folclore oral: são contos, histórias,
mitos, lendas e cantigas ligados ou não ao contexto histórico e às
transformações pelas quais a região passou juntamente com o país.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN):
A preocupação
com os estudos de história local é de que os alunos ampliem a capacidade de
observar o seu entorno para compreensão de relações sociais e econômicas
existentes no seu próprio tempo e reconheçam a presença de outros tempos no seu
dia-a-dia. (PCN, 1997, p.51)
Quem nunca ouviu falar da fonte do Itororó?
Localizada ainda no centro de Santos, embora desativada, por muitas décadas
ofereceu água límpida à moradores e navios que atracavam no porto.
Tão famosa
que é retratada até hoje em brincadeiras de roda entre as crianças na canção
“Fui no Itororó”, composta por Villa Lobos.
Existem histórias até sobre a Padroeira de Santos,
Nossa Senhora do Monte Serrat.
Uma delas envolve um possível milagre durante um
ataque pirata à região.
Em 1615, o pirata holandês Joris Von Spilbergen
incendiou vários pontos da Vila de Santos.
Acuados, os moradores se refugiaram no Monte Serrat
e rezaram para que a virgem do Monte os protegesse.
Os piratas os perseguiram
logo depois.
Relatos apontam que naquele momento chovia forte e um raio desceu
do céu atingindo a encosta do morro e causando um grande deslizamento.
A
maioria dos invasores acabou soterrada e o restante voltou para os navios e foi
embora.
Milagre mesmo ou pura coincidência?
Outra história intrigante do folclore oral santista
é a do Fantasma do Paquetá.
Por volta de 1900, uma mulher vestida de preto,
outros dizem de branco, que toda a noite visitava o cemitério do Paquetá e
caminhava nos seus corredores.
Uns afirmavam ser um fantasma enquanto alguns
acreditavam ser apenas um fruto da imaginação.
No entanto, pessoas passaram a ir até o lugar para
averiguar se a aparição era real ou não.
O fato é que a polícia, recebendo
reclamações de moradores devido ao barulho, teve que intervir para dispersar a
multidão.
O ocorrido ganhou destaque inclusive nos jornais da época e acabou
sendo passado de geração em geração.
Esses são três exemplos que retratam como a tradição
oral regional é emblemática e significativa.
Essa riqueza também foi
impulsionada pela natureza histórica e política da Baixada Santista.
Há outros
contos e histórias, como a Pedra da Feiticeira e a Pedra dos Ladrões, presentes
nesse repertório.
O que se pretende mostrar com a Fonte do Itororó, o
Monte Serrat e Fantasma do Paquetá, é que não se precisa ir longe para
encontrar a cultura popular, o folclore, os contos.
Eles estão mais próximos do
que se imagina. Fazem parte do nosso cotidiano, da nossa essência, da nossa
construção como indivíduo dentro da comunidade a qual se pertence.
Os contos populares estão enraizados no folclore das
esferas universal, nacional e regional. Refletindo por meio dos seus
personagens e enredos sobre os valores e elementos culturais da sociedade, seja
os criticando (de forma irônica, satírica ou subliminar) ou os reafirmando.
Eles oferecem, portanto, uma fonte inesgotável de
“matéria-prima” para ser difundida em sala de aula pelo professor.
Defende-se o
uso deles na rotina escolar, sua inserção na busca de um currículo mais próximo
da realidade.
Entretanto, é possível trabalhar esse conteúdo na prática e
utilizá-lo como ferramenta interdisciplinar na transformação inovadora do
ensino-aprendizagem?
A
cada conto aumenta um ponto.
Para tentar responder a esta questão, foi visitada a
Unidade Municipal de Educação Cidade de Santos, localizada no bairro do Embaré,
em Santos.
Tinha-se o objetivo de assistir a aula do professor Thiago de
Almeida Reis, formado em Artes e pós-graduado em Artes Visuais.
Além de arte-educador, Thiago é contador de
histórias. Com ele, os contos populares ganham vida entre as crianças durante a
sua disciplina (anexos A, B, C e D).
Fazem parte do seu repertório contos de
fada, de encantamento, contos africanos, indígenas entre outros.
Percebeu-se que os alunos aguardam ansiosos pela sua
chegada à sala, já tentando adivinhar qual a história do dia. E não apenas os
menores como também os maiores, do Fundamental II e do EJA, já que o docente
atende esses três públicos distintos.
Por meio da arte e dos contos, que servem de
inspiração, os alunos pintam murais nas paredes internas e externas com a
mediação do professor.
Aprendendo, dessa forma, noções de ética e cidadania ao
conservar e valorizar o que é deles: a escola.
A visita constatou que de fato a oralidade dos
contos populares tem o poder de transformar o ensino-aprendizagem, aproximando
professor e aluno.
O que implica também em um contínuo trabalho de pesquisa e
aprimoramento do educador ao querer levar algo novo e contagiante aos seus
discentes.
Esse processo de busca requer mais trabalho, tempo e
dedicação. Porém, pelo que foi observado da rotina do professor Thiago, é
possível. Basta querer.
Concluindo.
Depois de um mergulho no mundo das narrativas, das
histórias populares, das pesquisas e da observação direta, percebeu-se o papel
primordial que a oralidade pode e deve possuir na sala de aula por trás dos
contos.
Estes, por sua vez, tem o poder de levar a magia do imaginário aos
alunos e transformar a construção do conhecimento na escola.
A narrativa oral é um dado importante que revela a
vida social e cultural de uma sociedade ou comunidade.
A cultura de um povo, ou
seja, sua forma viver em sociedade, seus costumes, seus ideais religiosos etc,
transparecem nos contos, ganham vida nos enredos, se entranham nos personagens.
Além disso, os contos, com seu poder atemporal de
sedução, contribuem de forma significativa no desenvolvimento psicológico,
social, pessoal e cultural das crianças e jovens, facilitando o processo de
socialização e comunicação, garantindo assim uma interação muito mais
eficiente.
Acredita-se que podem integrar um dos alicerces para
a criação de um currículo de ensino mais eficiente e próximo da realidade de
nosso país.
Um currículo sério, abrangente, interdisciplinar, mas que caminhe
lado a lado com a ludicidade na formação integral do aluno.
Sob essa perspectiva, fica evidente a importância do
professor como mediador ao inserir esses elementos (contos, ludicidade) no
processo de ensino-aprendizagem.
Assim, se faz necessária uma intensa e
contínua capacitação em busca de uma ênfase mais humanística com elementos do
folclore e cultura popular.
Por fim, desprezar a riqueza dos contos seria
desprezar a própria essência humana e o poder exercido pelo “Era uma vez...”.
Causo ganhando vida na narração do professor.
Fonte: Arquivo pessoal Juliana Castro.
Alunos se divertem ao ouvir o conto.
Fonte: Arquivo pessoal Juliana Castro.
Para saber mais sobre o assunto.
ALMEIDA,
Fernanda Lopes de. Contos de Perrault (edição
para o Governo). São Paulo: Ática, 2005.
AZEVEDO,
Ricardo. Cultura da Terra. São
Paulo: Moderna, 2008.
_________
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In: SILVA, René Marc da C.(org.). Cultura
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São Paulo: Brasiliense, 2006.
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Brasil para jovens. 2.ed. São Paulo: Global, 2006.
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L. S. A formação social da mente.
São Paulo; Martins Fontes, 1984.
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