Publicação brasileira técnico-científica on-line independente, no ar desde sexta-feira 13 de Agosto de 2010.
Não possui fins lucrativos, seu objetivo é disseminar o conhecimento com qualidade acadêmica e rigor científico, mas linguagem acessível.


Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

sábado, 1 de setembro de 2012

Guilherme de Ockham e a legitimidade do poder temporal.


 

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 3, Vol. set., Série 01/09, 2012, p.01-05.

 

“O império provém, pois, de Deus conforme o terceiro modo, porque provinha de Deus, mas a ordenação humana também concorria, de tal forma que os homens que tinham o poder de conferir jurisdição temporal a alguém, a conferiam de fato ao imperador, assim como verdadeiramente lhe conferiram e transferiram de si para ele o poder de fazer as leis” (Guilherme de Ockham).

 

A disputa entre papas e imperadores, entre a ordem religiosa e o império secular, pelo poder temporal caracterizou toda a Idade Média.

O enfraquecimento do poder papal no fim do período medieval abriu caminho para o questionamento sobre o direito legitimo ao poder espiritual e temporal.

Dentro deste contexto, em 1380, Guilherme de Ockham, entre outros frades franciscanos, perseguidos pelo papa, fugirão de Avignon, então uma das três sedes do papado, pedindo proteção ao imperador.

Na ocasião o poder dos papas começava a ser contestado em virtude da disputa que fez com que três cardeais fossem nomeados papas ao mesmo tempo, um em Roma, outro em Avignon (França), além de outros pretendentes ao posto, em outras cidades, também se afirmando legitimo representante de São Pedro na terra.

Uma situação que durou até o restabelecimento de Roma como sede oficial do papado em 1414, mas que desarticulou o poder político da igreja católica.

Um movimento para qual contribui ativamente Ockham, a partir de sua fuga de Avignon, ele se dedicou a provar que o poder temporal, a legislação sobre as coisas terrenas, pertencia ao imperador e não ao papa, cabendo a este apenas o poder espiritual, administrar as coisas de Deus.

 

Brevilóquio sobre o principado tirânico.

Foi justamente tentando provar a legitimidade do poder temporal do imperador, que Guilherme de Ockham escreveu o Brevilóquio sobre o principado tirânico, referendado pelas Sagradas Escrituras, tidas como lícitas para qualquer fundamentação argumentativa.

Através de uma interpretação extremamente literal da Bíblia católica, para o filosofo, o conhecimento humano seria relativo, de modo que só a fé poderia responder a determinadas questões relacionadas à espiritualidade.

Só a teologia revelada poderia extrapolar a limitação humana, deixando transparecer os atributos de Deus e seus desígnios.

O que confirmava a autoridade espiritual do papa, porém, não garantindo a primazia sobre o governo sobre os homens no plano terreno.

O poder prometido por Cristo ao apostolo Pedro deveria excluir o direito legitimo do imperador e de outros reis, visto que o poder temporal não se oporia, portanto, aos bons costumes e à lei evangélica.

Para provar sua tese, Ockham recorre ao um tempo anterior às Sagradas Escrituras.

Sendo Deus eterno e, assim, anterior às revelações confidenciadas aos homens, sempre exerceu sua vontade e onipotência, tendo confiado o poder temporal a fiéis e infiéis indiscriminadamente, visto que imperadores existiam muito antes dos textos da Bíblia serem escritos.

Qualquer argumentação contrária colocaria a suprema bondade e onipotência de Deus em questão.

Seria ainda possível provar a legitimidade do poder temporal do imperador através da autoridade do Antigo e Novo testamento, pois Deus, em nome da natureza e da preservação de sua criação maior, teria dado aos homens o direito a propriedade.

Sendo o homem um ser político por natureza e, portanto, designado por Deus a viver em sociedade, a jurisdição temporal dos bens necessários e úteis para a vida em grupo pertenceria ao imperador.

O direito de governar deveria ser outorgado ao povo, sendo representado pelo imperador, o que ocorreria através do direito divino referendando o direito humano.


Segundo Ockham:

“De um terceiro modo diz-se que uma jurisdição ou poder provém só de Deus não quando é dado ou conferido, mas depois que é dado, isto é, de tal modo que quando é dado não provém só de Deus, como nos dois modos anteriores, mas é dado ou conferido por outro tanto como por Deus, mas depois que foi conferido depende só de Deus, de tal modo que aquele que o exerce reconhece regularmente como provindo de ninguém outro superior a si, que não Deus” (Guilherme de Ockham).

 
Sendo assim, Deus designaria o povo que deveria escolher o imperador, uma vez instituído o seu governo, este deveria reportar-se somente a Deus, adquirindo o direito divino de ocupar a posição de soberano terreno.

 

A tirania do império romano e a vinda de Cristo.

Aqueles que afirmavam ter sido o império romano um principado tirânico, Ockham responde que algumas vezes tais instituições transformam-se em justas e legitimas, assim como o principado real pode se transformar em tirânico.

Cristo teria vindo a terra não para tirar ou diminuir os direitos temporais do imperador, sua missão teria sido puramente espiritual e diretamente ligada a Deus.

Usando as palavras de Cristo, o filosofo afirma: “a Deus o que é de Deus e aos romanos o que é dos romanos”.

O que confirmava literalmente que a Deus e seu representante na terra, o papa, caberia somente às coisas do espirito; aos homens seria reservado as coisas temporais, o livre-arbítrio e responsabilidade sobre seus atos.

Neste sentido, a plenitude do poder imperial incorreria na servidão dos homens e a plenitude do poder papal terminaria por incorrer no mesmo erro, daí o compartilhamento do poder entre papa e imperador, cada qual cuidando da esfera apropriada.

O papa não representaria a continuidade do império romano e Cristo nunca teria fomentado a inclusão de seu reino espiritual nas coisas mundanas.

Pelo contrário, o poder espiritual poder servir de guia para os homens, mas eles é que deveriam decidir sobre seu destino, mesmo contrariando a vontade de Deus e sendo passível de punição em outra vida.

 

Concluindo.

Guilherme de Ockham foi um dos teóricos que legitimaram o poder dos príncipes, reis e imperadores na entrada da Idade Moderna, possibilitando o surgimento dos Estados Nacionais e a desvinculação entre coisas terrenas e espirituais no campo da política.

Para ele, o poder divino e humano são complementares, mas as coisas do espirito não dizem respeito ao que acontece no plano terreno.

Visto que Deus garante o livre-arbítrio, sendo um ser divino, supremo e ilimitado, não teria a necessidade de impor sua vontade, deixando os homens operarem por sua limitada razão.

Por este motivo, o poder temporal teria sido usurpado pelos papas, os príncipes tirânicos que tentavam impor sua vontade aos homens, alegando ser a vontade de Deus.

Ao passo que Deus teria sim revelado sua vontade nas Sagradas Escrituras e através da vinda de seu filho a terra: Jesus Cristo.

No entanto, a Bíblia revelaria justamente o amor de Deus pelos homens expresso pelo direito de escolha, o livre-arbítrio, tecendo recomendações e não imposições.

Portanto, por meio deste raciocínio, a fundamentação da política circunscrita aos homens, sem intervenção do papa, garantiria aos representantes escolhidos pelo povo o direito de governar.

 

Para saber mais sobre o assunto.

HIRSCHBERGER, Johannes. História da filosofia na Idade Média. São Paulo: Herder, 1966.
OCKHAM, Guilherme. Brevilóquio sobre o principado tirânico. São Paulo: Vozes, 1988.
ROMANO, Egídio. Sobre o poder eclesiástico. São Paulo: Vozes, 1989.

 

Texto: Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em História Social pela USP.
MBA em Gestão de Pessoas.
Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Esteja a vontade para debater ideias e sugerir novos temas.
Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.