Para entender a história... ISSN 2179-4111.
Ano 8, Volume jul., Série 08/07, 2017.
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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.
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Quando Vasco da
Gama chegou à Índia, passando por uma cidade ao norte de Calecute (atual
Calcutá), chamada Pantalayini-Kollam, no dia 21 de maio de 1498; fez
desembarcar um degredado de nome João Nunes, que foi interpelado por dois
muçulmanos tunisianos que sabiam falar castelhano e genovês; o diálogo que se
seguiria sintetizaria o que estava por vir e os reais objetivos lusitanos.
O degredado
ouviu dos muçulmanos a seguinte saudação:
Ao diabo que te dou; quem te trouxe
cá?
E perguntaram-lhe o que vínhamos
buscar tão longe.
E ele respondeu: Viemos buscar cristãos e
especiarias..
A consolidação
da presença lusitana no Oriente constituiria um verdadeiro inferno para os
nativos, as palavras de João Nunes sintetizam perfeitamente a mentalidade
lusitana da época.
Os portugueses
haviam concentrado seus esforços em direção ao mar Tenebroso, não só em busca
de especiarias, mas antes, também, em busca de cristãos.
Neste sentido, a
palavra descobrir não era usada no sentido de achar algo desconhecido, mas de encontrar
o perdido que os antigos já conheciam; portanto, significava redescobrir, reencontrar,
terras que se sabia da existência, cujo caminho marítimo havia sido perdido
através dos tempos.
O objetivo da epopeia
lusitana, tomando por base a acepção moderna da palavra, era achar, não
descobrir propriamente.
Embora os lusos
houvessem se lançado à aventura marítima em busca do lucro, buscavam também aliados
em sua luta contra os infiéis.
Dentro deste
contexto, a lenda das terras do Prestes João, um poderoso Reino cristão situado
entre a Etiópia, a África Oriental e a Índia, exerceu forte atrativo para os
portugueses.
O mítico reino
era visto como um aliado em potencial, fascinando o imaginário popular e estimulando
a rumar cada vez mais longe nas explorações marítimas, sempre esperando encontrar
o Prestes ao dobrar da esquina.
Os relatos que chegaram
a Portugal, através de monges e peregrinos, por volta de 1402, pintavam o reino
com cores muito atrativas.
As versões mais
extravagantes da lenda davam conta que comiam a mesa de esmeraldas do soberano 30.000
pessoas, sentando-se ao seu lado direito trinta arcebispos e ao seu lado
esquerdo vinte bispos.
Mais tarde, a
existência deste reino acabou sendo confirmada, porém, praticava um tipo de cristianismo
próximo ao ortodoxo bizantino e era ainda mais pobre do que Portugal.
Quanto ao relato
de Marco Polo, circulou mais entre os espanhóis do que entre os portugueses; em
Portugal o relato de caráter mítico de maior circulação foi o do Prestes João.
Na verdade,
confluíram dois mitos diferentes que, muitas vezes confundidos, exerceram
grande estímulo na busca da Índia.
Antes da chegada
do mito do Prestes João em Portugal, circulava desde muitos séculos na
Península Ibérica a lenda dos cristãos de São Tomé, uma comunidade fundada pelo
próprio apóstolo no Oriente, que remontava ao início do cristianismo.
Segundo consta,
toda velha tradição sobre São Tomé teria sido divulgada por meio das apócrifas
Atas de Tomé, um tratado gnóstico escrito em siríaco, um dialeto aramaico do
início do século III.
Apenas fragmentos
das Atas sobreviveram até nossos dias, não passando de revisões católicas do
texto gnóstico; deixando pouco espaço para observar sua doutrina original.
Um texto que
nasceu em Edessa, atual Urfa, no sul da Turquia; pela altura, o centro da
cristandade siríaca e, mais tarde, base da heresia nestoriana.
No ano 430, tornou-se
uma seita que seguia os ensinamentos de Nestório, Patriarca de Constantinopla,
originando o cisma da Igreja bizantina.
O que circulou
em Portugal, foi a versão de que, após a crucificação, os apóstolos
distribuíram entre si as diferentes partes do mundo para desenvolver missões de
conversão.
A Índia teria
sido atribuída a Tomé, que, relutante em partir da Palestina, argumentou que
seu estado de saúde não era adequado a grande jornada que o aguardava e que só
sabia falar hebraico.
Depois de uma
aparição de Jesus para ela, teria sido vendido pelo próprio Messias como
escravo a um mercador indiano chamado Habban; que tinha sido enviado à Palestina
pelo seu senhor, o rei Gondofares, em busca de um mestre carpinteiro para
construir o seu novo palácio.
As atas dão
conta de que Tomé foi encarregado de construir o palácio, tendo-lhe o rei dado,
para a tarefa, uma grande quantia.
Ao invés de
utilizar os recursos na construção do palácio, distribuiu tudo aos pobres, o
que enfureceu o rei, que teria mandando açoitar e prender Tomé.
Neste mesmo dia
teria morrido de desgosto o irmão do rei Gondofares, chamado Gad, supostamente
de desgosto ao ver este desperdício de bens.
Na sua subida ao
céu, Gad viu um belíssimo palácio que lhe disseram pertencer a Gondofares e ter
sido construído por Tomé; o irmão do rei pediu permissão a Deus para regressar
a Terra.
Em um sonho, Gad
teria informado Gonsofares da magnífica residência que o aguardava na vida seguinte;
este, impressionado os acontecimentos milagrosos, libertou Tomé e converteu-se
ao Cristianismo, juntamente com muitos dos seus súditos.
Depois do
ocorrido, Tomé foi convidado para o reino de outro governante indiano chamado
Mazdai; onde converteu a rainha Tertia e o seu filho Vizan e pregou o celibato
com tanta eloquência que Tertia negou seu leito a Mazdai.
O apostolo teria
atraiu sobre si a ira do rei, que mandou quatro soldados armados de lanças para
o matarem, em uma montanha dos arredores da cidade.
Morto, Tomé
teria sido sepultado nos túmulos dos antepassados do rei Mazdai, por Visan, a
quem havia anteriormente ordenado diácono, e por um indiano de chamado Sifur, a
quem ordenará padre.
Mais tarde, a
sepultura teria sido aberta, ao que se descobriu que os ossos tinham sido
removidos por alguns dos seguidores do Santo.
Os quais os
tinham retirado secretamente os ossos e levado para as regiões de volta para
Edessa; ao passo que Mazdai teria se arrependido e, tal como Gondofares,
abraçado o cristianismo, no que teria sido seguido por muitos dos seus súditos.
Existem provas
arqueológicas que atestam a existência dos reis citados no período em que São
Tomé teria supostamente vivido na Índia.
Relatos de
cruzados e comentadores confirmam que cavaleiros cristãos teriam visitado o
túmulo de São Tomé.
Pela tradição, um
texto anónimo de 1122, intitulado “De adventum patriarchae indorum ad urbem sub
Calixto Papa segundo”, seria de autoria do Patriarca João das Índias.
Este relatou que
viajou para Constantinopla, recebendo o pálio, símbolo de autoridade eclesiástica,
de um Patriarca Ortodoxo grego.
Partindo da
cidade, acompanhado por embaixadores papais, foi até a corte do Papa Calisto
II, em Roma; levando consigo notícias de uma cidade de nome Hulna, capital de
um reino indiano, situado em um rio chamado Phison, que era habitado
exclusivamente por cristãos.
A comunidade praticava
um cristianismo considerado herege pelos católicos, apesar de muitas das suas
práticas não serem ortodoxas; segundo consta, nos arredores da cidade havia uma
montanha no meio de um lago, na qual estava edificada a igreja de São Tomé e
onde suas relíquias mortais estavam conservadas.
Neste local,
pela altura do dia da festa de São Tomé, em 21 de dezembro, as águas do lago
recuariam e os crentes reunidos na Igreja recebiam, milagrosamente, a Sagrada
Eucaristia das mãos do Santo ressuscitado, que se recusava a administrá-la aos
infiéis, aos hereges e aos pecadores.
Depois da festa,
as águas regressariam e encheriam o lago de novo.
O nome Prestes João
teria derivado do latim “Presbyter Iohannis”, cuja tradução literal é Sacerdote
João; aparecendo pela primeira vez em uma carta falsificada do soberano enviada
a Frederico Barba Roxa, forjada por Cristiano, arcebispo de Mogúncia.
Foi esta
falsificação que circulou amplamente por Portugal, onde o Prestes era apresentado
como um soberano poderosíssimo, servido por 1 patriarca, 12 metropolitas, 20
bispos, 7 reis, 60 duques e 365 condes.
Assemelhado a um
nobre ligado por laços de suserania e vassalagem feudal, o Pretes comandaria um
exército de 10.000 cavaleiros e 100.000 soldados.
Em seu reino não
existiria mentira nem qualquer forma de malícia, e, no leito dos rios de seu
território, haveria pedras preciosas enormes, possuindo suas águas o poder de
curar todas as enfermidades.
Estas
informações fantasiosas, misturadas com uma transmissão oral, durante toda a
Idade Média, confluindo com a lenda do Prestes João, enraizaram no imaginário
popular ibérico uma imagem paradisíaca de um reino vasto, rico e poderoso, que
poderia tornar Portugal um grande Império.
Na realidade, os
cristãos da Índia existiam em número reduzido, no seio de comunidades segregadas,
vivendo isoladas nas montanhas.
Quando foram
encontrados pelos portugueses no século XVI, terminariam se mostrando úteis à
fixação de entrepostos comerciais.
De qualquer
forma, os lusos, mesmo antes de iniciarem suas explorações marítimas, buscaram
alcançar os cristãos do Oriente, enviaram diversas expedições terrestres à
terra das especiarias.
Segundo um
índice cronológico anônimo, onde constam informações compiladas de cronistas da
época e recolhidas da tradição oral, pertencente ao acervo da Biblioteca
Nacional de Lisboa, impresso em 1841; antes do século XVI, os portugueses
enviaram expedições terrestres em busca do Prestes.
O documento
afirma que havia na Europa, desde o século XII, uma ideia vaga e confusa de um
príncipe cristão muito poderoso nas terres do longínquo Oriente.
Buscando alcançar
estas terras, os reis de Portugal mandaram, inicialmente, missionários e,
depois, embaixadores.
Estes teriam
conseguido estabelecer contato terrestre com a Pérsia, Tartária e China.
A busca se
intensificou no século XIV, sobretudo, valendo-se de mercadores judeus
conhecedores do idioma árabe, acompanhados de missionários cristãos.
Estas embaixadas
alcançaram tal sucesso que, mesmo depois de iniciada a busca de um caminho
marítimo para a Índia, pela altura em que Bartolomeu Dias, em 1486, foi enviado
para explorar a África; expedições terrestres continuaram em busca do Prestes,
alcançando o Cairo e Jerusalém.
Ao mesmo tempo
em que o mito do Prestes João, em confluência com os lendários cristãos de São
Tomé; estimulou as explorações ultramarinas, servindo até mesmo para vencer a
resistência da alta nobreza lusitana as navegações rumo além-mar; facilitou a
penetração portuguesa na Índia.
O Infante D.
Henrique nunca criou uma escola de navegação em Sagres, mas usou estes relatos
fantasiosos para mudar a imagem negativa no imaginário popular sobre do mar
Tenebroso.
O conhecimento
prévio das rotas comerciais e das relações de poder entre os soberanos na
Índia, transmitido pelos olheiros enviados pela Coroa, facilitou a penetração
lusitana no milenar comércio de especiarias, desde séculos, controlado por
mercadores muçulmanos.
Talvez os
portugueses nunca tivessem chegado ao Oriente e, nem tampouco, as viagens
marítimas alcançado um rápido ritmo; não fosse o poder régio ter investido em
explorações terrestres que buscaram cristãos e especiarias.
Não obstante, a
expansão por mares nunca dantes navegados só foi possível com a subida ao trono
português da dinastia de Avis, apesar de vários fatores terem confluído neste
sentido; mas este é um assunto para outra ocasião.
Para saber mais sobre o assunto.
RAMOS, Fábio
Pestana. No tempo das especiarias.
São Paulo: Contexto, 2006.
RAMOS, Fábio
Pestana. O apogeu e declínio do clico das
especiarias: 1500-1700. Volume 1: Em busca de cristãos e especiarias. Santo
André: FPR/PEAH, 2012.
RAMOS, Fábio
Pestana. Por mares nunca dantes
navegados. São Paulo: Contexto, 2008.
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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
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