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sábado, 8 de julho de 2017

A busca dos portugueses pelo Prestes João no contexto quinhentista: um aliado em potencial contra os infiéis.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 8, Volume jul., Série 08/07, 2017.

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.

Licenciado em História - CEUCLAR.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.

Quando Vasco da Gama chegou à Índia, passando por uma cidade ao norte de Calecute (atual Calcutá), chamada Pantalayini-Kollam, no dia 21 de maio de 1498; fez desembarcar um degredado de nome João Nunes, que foi interpelado por dois muçulmanos tunisianos que sabiam falar castelhano e genovês; o diálogo que se seguiria sintetizaria o que estava por vir e os reais objetivos lusitanos.
O degredado ouviu dos muçulmanos a seguinte saudação:

            Ao diabo que te dou; quem te trouxe cá?
            E perguntaram-lhe o que vínhamos buscar tão longe.
            E ele respondeu: Viemos buscar cristãos e especiarias..

A consolidação da presença lusitana no Oriente constituiria um verdadeiro inferno para os nativos, as palavras de João Nunes sintetizam perfeitamente a mentalidade lusitana da época.
Os portugueses haviam concentrado seus esforços em direção ao mar Tenebroso, não só em busca de especiarias, mas antes, também, em busca de cristãos.
Neste sentido, a palavra descobrir não era usada no sentido de achar algo desconhecido, mas de encontrar o perdido que os antigos já conheciam; portanto, significava redescobrir, reencontrar, terras que se sabia da existência, cujo caminho marítimo havia sido perdido através dos tempos.
O objetivo da epopeia lusitana, tomando por base a acepção moderna da palavra, era achar, não descobrir propriamente.
Embora os lusos houvessem se lançado à aventura marítima em busca do lucro, buscavam também aliados em sua luta contra os infiéis.
Dentro deste contexto, a lenda das terras do Prestes João, um poderoso Reino cristão situado entre a Etiópia, a África Oriental e a Índia, exerceu forte atrativo para os portugueses.
O mítico reino era visto como um aliado em potencial, fascinando o imaginário popular e estimulando a rumar cada vez mais longe nas explorações marítimas, sempre esperando encontrar o Prestes ao dobrar da esquina.
Os relatos que chegaram a Portugal, através de monges e peregrinos, por volta de 1402, pintavam o reino com cores muito atrativas.
As versões mais extravagantes da lenda davam conta que comiam a mesa de esmeraldas do soberano 30.000 pessoas, sentando-se ao seu lado direito trinta arcebispos e ao seu lado esquerdo vinte bispos.
Mais tarde, a existência deste reino acabou sendo confirmada, porém, praticava um tipo de cristianismo próximo ao ortodoxo bizantino e era ainda mais pobre do que Portugal.
Quanto ao relato de Marco Polo, circulou mais entre os espanhóis do que entre os portugueses; em Portugal o relato de caráter mítico de maior circulação foi o do Prestes João.
Na verdade, confluíram dois mitos diferentes que, muitas vezes confundidos, exerceram grande estímulo na busca da Índia.
Antes da chegada do mito do Prestes João em Portugal, circulava desde muitos séculos na Península Ibérica a lenda dos cristãos de São Tomé, uma comunidade fundada pelo próprio apóstolo no Oriente, que remontava ao início do cristianismo.
Segundo consta, toda velha tradição sobre São Tomé teria sido divulgada por meio das apócrifas Atas de Tomé, um tratado gnóstico escrito em siríaco, um dialeto aramaico do início do século III.
Apenas fragmentos das Atas sobreviveram até nossos dias, não passando de revisões católicas do texto gnóstico; deixando pouco espaço para observar sua doutrina original.
Um texto que nasceu em Edessa, atual Urfa, no sul da Turquia; pela altura, o centro da cristandade siríaca e, mais tarde, base da heresia nestoriana.
No ano 430, tornou-se uma seita que seguia os ensinamentos de Nestório, Patriarca de Constantinopla, originando o cisma da Igreja bizantina.  
O que circulou em Portugal, foi a versão de que, após a crucificação, os apóstolos distribuíram entre si as diferentes partes do mundo para desenvolver missões de conversão.
A Índia teria sido atribuída a Tomé, que, relutante em partir da Palestina, argumentou que seu estado de saúde não era adequado a grande jornada que o aguardava e que só sabia falar hebraico.
Depois de uma aparição de Jesus para ela, teria sido vendido pelo próprio Messias como escravo a um mercador indiano chamado Habban; que tinha sido enviado à Palestina pelo seu senhor, o rei Gondofares, em busca de um mestre carpinteiro para construir o seu novo palácio.
As atas dão conta de que Tomé foi encarregado de construir o palácio, tendo-lhe o rei dado, para a tarefa, uma grande quantia.
Ao invés de utilizar os recursos na construção do palácio, distribuiu tudo aos pobres, o que enfureceu o rei, que teria mandando açoitar e prender Tomé.
Neste mesmo dia teria morrido de desgosto o irmão do rei Gondofares, chamado Gad, supostamente de desgosto ao ver este desperdício de bens.
Na sua subida ao céu, Gad viu um belíssimo palácio que lhe disseram pertencer a Gondofares e ter sido construído por Tomé; o irmão do rei pediu permissão a Deus para regressar a Terra.
Em um sonho, Gad teria informado Gonsofares da magnífica residência que o aguardava na vida seguinte; este, impressionado os acontecimentos milagrosos, libertou Tomé e converteu-se ao Cristianismo, juntamente com muitos dos seus súditos.
Depois do ocorrido, Tomé foi convidado para o reino de outro governante indiano chamado Mazdai; onde converteu a rainha Tertia e o seu filho Vizan e pregou o celibato com tanta eloquência que Tertia negou seu leito a Mazdai.
O apostolo teria atraiu sobre si a ira do rei, que mandou quatro soldados armados de lanças para o matarem, em uma montanha dos arredores da cidade.
Morto, Tomé teria sido sepultado nos túmulos dos antepassados do rei Mazdai, por Visan, a quem havia anteriormente ordenado diácono, e por um indiano de chamado Sifur, a quem ordenará padre.
Mais tarde, a sepultura teria sido aberta, ao que se descobriu que os ossos tinham sido removidos por alguns dos seguidores do Santo.
Os quais os tinham retirado secretamente os ossos e levado para as regiões de volta para Edessa; ao passo que Mazdai teria se arrependido e, tal como Gondofares, abraçado o cristianismo, no que teria sido seguido por muitos dos seus súditos.
Existem provas arqueológicas que atestam a existência dos reis citados no período em que São Tomé teria supostamente vivido na Índia.
Relatos de cruzados e comentadores confirmam que cavaleiros cristãos teriam visitado o túmulo de São Tomé.
Pela tradição, um texto anónimo de 1122, intitulado “De adventum patriarchae indorum ad urbem sub Calixto Papa segundo”, seria de autoria do Patriarca João das Índias.
Este relatou que viajou para Constantinopla, recebendo o pálio, símbolo de autoridade eclesiástica, de um Patriarca Ortodoxo grego.
Partindo da cidade, acompanhado por embaixadores papais, foi até a corte do Papa Calisto II, em Roma; levando consigo notícias de uma cidade de nome Hulna, capital de um reino indiano, situado em um rio chamado Phison, que era habitado exclusivamente por cristãos.
A comunidade praticava um cristianismo considerado herege pelos católicos, apesar de muitas das suas práticas não serem ortodoxas; segundo consta, nos arredores da cidade havia uma montanha no meio de um lago, na qual estava edificada a igreja de São Tomé e onde suas relíquias mortais estavam conservadas.
Neste local, pela altura do dia da festa de São Tomé, em 21 de dezembro, as águas do lago recuariam e os crentes reunidos na Igreja recebiam, milagrosamente, a Sagrada Eucaristia das mãos do Santo ressuscitado, que se recusava a administrá-la aos infiéis, aos hereges e aos pecadores.
Depois da festa, as águas regressariam e encheriam o lago de novo.
O nome Prestes João teria derivado do latim “Presbyter Iohannis”, cuja tradução literal é Sacerdote João; aparecendo pela primeira vez em uma carta falsificada do soberano enviada a Frederico Barba Roxa, forjada por Cristiano, arcebispo de Mogúncia.
Foi esta falsificação que circulou amplamente por Portugal, onde o Prestes era apresentado como um soberano poderosíssimo, servido por 1 patriarca, 12 metropolitas, 20 bispos, 7 reis, 60 duques e 365 condes.
Assemelhado a um nobre ligado por laços de suserania e vassalagem feudal, o Pretes comandaria um exército de 10.000 cavaleiros e 100.000 soldados.
Em seu reino não existiria mentira nem qualquer forma de malícia, e, no leito dos rios de seu território, haveria pedras preciosas enormes, possuindo suas águas o poder de curar todas as enfermidades.
Estas informações fantasiosas, misturadas com uma transmissão oral, durante toda a Idade Média, confluindo com a lenda do Prestes João, enraizaram no imaginário popular ibérico uma imagem paradisíaca de um reino vasto, rico e poderoso, que poderia tornar Portugal um grande Império.
Na realidade, os cristãos da Índia existiam em número reduzido, no seio de comunidades segregadas, vivendo isoladas nas montanhas.
Quando foram encontrados pelos portugueses no século XVI, terminariam se mostrando úteis à fixação de entrepostos comerciais.
De qualquer forma, os lusos, mesmo antes de iniciarem suas explorações marítimas, buscaram alcançar os cristãos do Oriente, enviaram diversas expedições terrestres à terra das especiarias.
Segundo um índice cronológico anônimo, onde constam informações compiladas de cronistas da época e recolhidas da tradição oral, pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa, impresso em 1841; antes do século XVI, os portugueses enviaram expedições terrestres em busca do Prestes.
O documento afirma que havia na Europa, desde o século XII, uma ideia vaga e confusa de um príncipe cristão muito poderoso nas terres do longínquo Oriente.
Buscando alcançar estas terras, os reis de Portugal mandaram, inicialmente, missionários e, depois, embaixadores.
Estes teriam conseguido estabelecer contato terrestre com a Pérsia, Tartária e China.
A busca se intensificou no século XIV, sobretudo, valendo-se de mercadores judeus conhecedores do idioma árabe, acompanhados de missionários cristãos.
Estas embaixadas alcançaram tal sucesso que, mesmo depois de iniciada a busca de um caminho marítimo para a Índia, pela altura em que Bartolomeu Dias, em 1486, foi enviado para explorar a África; expedições terrestres continuaram em busca do Prestes, alcançando o Cairo e Jerusalém.
Ao mesmo tempo em que o mito do Prestes João, em confluência com os lendários cristãos de São Tomé; estimulou as explorações ultramarinas, servindo até mesmo para vencer a resistência da alta nobreza lusitana as navegações rumo além-mar; facilitou a penetração portuguesa na Índia.
O Infante D. Henrique nunca criou uma escola de navegação em Sagres, mas usou estes relatos fantasiosos para mudar a imagem negativa no imaginário popular sobre do mar Tenebroso.
O conhecimento prévio das rotas comerciais e das relações de poder entre os soberanos na Índia, transmitido pelos olheiros enviados pela Coroa, facilitou a penetração lusitana no milenar comércio de especiarias, desde séculos, controlado por mercadores muçulmanos.
Talvez os portugueses nunca tivessem chegado ao Oriente e, nem tampouco, as viagens marítimas alcançado um rápido ritmo; não fosse o poder régio ter investido em explorações terrestres que buscaram cristãos e especiarias.
Não obstante, a expansão por mares nunca dantes navegados só foi possível com a subida ao trono português da dinastia de Avis, apesar de vários fatores terem confluído neste sentido; mas este é um assunto para outra ocasião.

Para saber mais sobre o assunto.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2006.
RAMOS, Fábio Pestana. O apogeu e declínio do clico das especiarias: 1500-1700. Volume 1: Em busca de cristãos e especiarias. Santo André: FPR/PEAH, 2012.
RAMOS, Fábio Pestana. Por mares nunca dantes navegados. São Paulo: Contexto, 2008.



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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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