Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 3,
Vol. nov., Série 01/11, 2012, p.01-06.
Na
antiguidade, Platão, utilizando diálogos tendo como personagem Sócrates,
discutiu a possibilidade do estabelecimento de um governo justo e pautado pela
ética, problemática abordada na obra A
República.
O governo republicano do filosofo é uma utopia, como reconhece Gláucon ao final
do livro IX.
Etimologicamente,
utopia significa “em nenhum lugar” (em grego, ou-topos).
Na
República, Platão imagina uma cidade
que não existe, mas que deve ser o modelo da cidade ideal.
Uma
cidade cujo “paradigma no céu” fica “para quem quiser contemplá-lo e
estabelecer por ele o seu teor de vida”.
Guiado
pela reflexão filosófica, Platão elabora uma teoria política de natureza
prescritiva, já que esta reflexão não se faz sobre a política, mas sobre o que
deve existir de direito.
Para
tanto, examina a questão do bom governo, do regime justo.
A
cidade ideal seria aquela onde reina a justiça, não obstante cabe interrogar se
os seus cidadãos seriam também felizes.
Esta
é, alias, a principal questão que se coloca diante da instauração da República.
A justiça na República platônica.
No
livro I da República, Platão tenta em
vão definir justiça, uma palavra de uso corrente deste os primórdios da
humanidade e de conceituação elástica ao longo da história das civilizações.
Definições
foram propostas por diversos pensadores na antiguidade, como Céfalo, para quem
a “justiça é a verdade e restituir o que se tomou”.
Além
de Polemarco, que afirma que “justiça é dar a cada um o lhe deve”; Trasímaco,
que diz que “justiça é o que está no interesse do mais forte”.
O
personagem Sócrates refuta todas estas definições, expressando a opinião de
Platão.
Transfere-se
então, no livro II, a análise do individuo para a cidade, buscando analisar os
fatos em grande escala e, assim, atingir a verdadeira natureza da justiça.
Ao
invés de buscar a definição de justiça para o sujeito, o que se procura é
conceituar uma cidade justa.
Gradualmente,
no livro III a definição de justiça é alcançada: “na cidade ideal cada um deve
exercer uma só função na sociedade, aquela para qual, por natureza, foi mais
dotado”, tal cidade poderia então ser chamada de justa.
Estratificação social e educação.
Platão
parte do princípio de que as pessoas são diferentes e, portanto, deverão ocupar
lugares e funções diversas na sociedade.
Algo
que hoje chamaríamos de estratificação social, um termo que não existia na
antiguidade, mas que estava presente implicitamente no pensamento platônico.
O
Estado, segundo Platão, deveria criar creches para a educação coletiva das
crianças, cuidando de normas de eugenia para que não houvesse casamentos entre
desiguais, criando melhores condições de reprodução.
Um
princípio em concordância com a cultura grega do período, que considerava todo estrangeiro
como bárbaro, denotando um extremo preconceito e imensa xenofobia.
Tradição
assimilada pela cultura romana e, posteriormente, europeia como um todo,
conduzindo ao eurocentrismo ainda vigente e, no seu extremo, ao nazismo na
Alemanha de Hitler.
Platão
imagina que na cidade ideal todas as crianças devem ser criadas pelo Estado e
que todos até os vinte anos merecem a mesma educação.
Momento
em que ocorreria o primeiro corte na estratificação da sociedade, quando seriam
identificadas as pessoas com “alma de bronze”, aquelas com sensibilidade
grosseira que deveriam se dedicar à agricultura, ao artesanato e ao comércio.
Estes
têm seus estudos interrompido, cuidando da subsistência da cidade; os outros
continuam estudando por mais dez anos, portanto até os trinta anos.
Seria
quando deveria ocorrer o segundo corte, sendo identificados ao longo destes
anos aqueles com “alma de prata”, possuidores da virtude da coragem, essencial
aos guerreiros, responsáveis pela guarda do Estado, defendendo a cidade.
Os
mais notáveis que sobressem destes dois cortes, identificados com “alma de
ouro”, seriam instruídos na arte de pensar a dois, ou seja, dialogar, estudando
filosofia para elevar a alma até o conhecimento mais puro, a fonte de toda a
verdade.
Apenas
ao atingir a maturidade, aos cinquenta anos, em uma época que a expectativa de
vida rondava sessenta anos; aqueles que passassem com sucesso por este processo
educacional, além de provas, estariam aptos a serem admitidos no corpo supremo
dos magistrados, os guardiões da cidade.
Estes
homens, isto porque as mulheres estavam excluídas deste sistema educacional
sendo consideradas uteis apenas para propagar a humanidade pela procriação;
seriam os mais sábios e justos, uma vez que somente o justo conheceria a
justiça.
Neste
sentido, a justiça constitui a principal virtude, a própria condição das outras
virtudes, com função de manter a cidade coesa.
A ética platônica.
Na
antiguidade, a ética envolvia a busca de uma vida virtuosa, a palavra moral só
passou a existir com os romanos, os gregos não a conheciam.
Portanto,
Platão tinha como referencia de padrão comportamental a ética.
Neste
contexto, a cidade justa deveria possuir as quatro virtudes cardeais: sabedoria
(sophia), coragem (andreia), temperança (sophrosyne) e justiça (dikalosyne).
Definidas
as três primeiras virtudes se atingi a quarta por exclusão de partes, a justiça
é a própria condição das outras virtudes.
A
sabedoria encontra-se nos guardiões, a coragem nos guerreiros e a temperança na
harmonia geral dos estamentos.
Assim
como cidade deve ter três categorias, a alma do individuo também deve ter três
elementos para temperar o caráter ético: apetitivo, espiritual e racional.
Aos
apetites cabe obedecer, às emoções assistir, à razão governar.
Tal
equilíbrio ou desequilíbrio conduz a justiça ou a injustiça.
Na
cidade ideal, como os sábios são recrutados entre os guerreiros, é preciso cuidar
para que não se corrompam.
Para
isso, estabelece-se uma forma de comunismo em que é eliminada a propriedade e a
família, assim, evitando, por um lado à cobiça e, por outro, não só os interesses
decorrentes dos laços afetivos, como também a degeneração decorrente de
ligações inadequadas.
O poder coercitivo das leis e os
tipos de governo.
A
virtude suprema passaria pela obediência à lei, o legislador teria obrigação de
conseguir o seu cumprimento pela persuasão em primeiro lugar, aguardando a
aprovação dos cidadãos livres e racionais.
Caso
não o consiga, deve usar a força impondo um padrão ético: a prisão, o exílio ou
a morte.
Igualmente,
justifica-se a censura, visando manter a integridade do Estado.
Dentro
deste contexto, a poesia deveria ser proibida, visto despertar as paixões da
alma, corrompendo o homem pela emoção que desvia da razão.
A
questão é que esta proposta levaria a um modelo aristocrático de poder.
Não
a uma aristocracia da riqueza, mas da inteligência, em que o poder é confiado
aos melhores e o Estado adquire um caráter mecânico e racional.
Platão
afirma ainda, para justificar o seu rigor, que o Estado pode degenerar, e que
sua decadência faz aparecer outras formas de governo:
A
Timocracia, quando o culto da virtude
é substituído pela norma guerreira;
A
Oligarquia, quando prevalece o gosto
pelas riquezas e o censo é a medida de capacidade para o exercício do poder;
A
Democracia, quando o poder pertence
ao povo, que, sendo incapaz de conhecer a ciência política, facilita, através
da demagogia, o aparecimento de um
governo autoritário;
Justamente,
a Tirania, quando o poder é exercido
por um só homem através da força, sendo governado por sua vaidade, desvirtuando
o governo ético da cidade.
Concluindo.
Desvinculando
a proposta platônica de seu componente preconceituoso xenófobo e vinculado à
questão do gênero, um contexto da época, a República platônica, verdadeiramente,
constitui um Estado justo.
Porém,
tendo em vista sua extrema racionalidade e mecanicismo na aplicação das leis, além
de utópico e impossível, possui um grave defeito.
Transpondo
sua proposta para nossos dias, viajando no tempo, poderíamos dizer que este
modelo configura um Estado controlado por máquinas, pelo computador.
Para
Platão, esse computador seria a mente humana potencializada ao máximo, quiçá com
capacidade ampliada, o que contemporaneamente configura a inteligência
artificial.
No
entanto, o Estado justo não é necessariamente aquele onde os cidadãos são felizes.
Como
poderia ser feliz um cidadão inserido em um Estado que controla e manipula
todas as etapas de sua vida, tirando toda liberdade de escolha?
Pode
ser feliz um escravo da razão?
Obviamente,
em um Estado onde as crianças são retiradas do convívio dos pais desde
pequenas, onde a propriedade e a família não existe, o individuo é diluído pela
coletividade.
Tentativas
contemporâneas de colocar estas sugestões em prática tiveram efeitos catastróficos,
eliminando a riqueza propiciada pela diversidade e a busca humana pela felicidade.
Um
Estado onde a poesia é proibida, significaria eliminar a emoção, tornando os
sujeitos maquinas repetitivas de ações programadas, eliminando, por exemplo, a
compaixão e outros sentimentos que nos tornam humanos.
Em
um Estado que determina a profissão e define quem deve amar, como se o amor
fosse possível em tais condições; nenhum sujeito teria a menor possibilidade de
alcançar a felicidade.
Não
fosse a Republica platônica utópica, colocada em pratica registraria altos índices
de suicídio.
Tal
como ocorre, por exemplo, em nossos dias, em países ditos altamente
desenvolvidos, como a Suécia, onde é tão aprimorada a organização racionalizada
do Estado, que o individuo perde o sentindo de sua existência.
Assim,
a Republica de Platão poderia sim ser considerada como parâmetro para a
construção de um Estado justo, mas composto por pessoas infelizes.
Para saber mais sobre o assunto.
LALANDE,
André. Vocabulário técnica e critico da
filosofia. São Paulo: Martins Fontes, s.d.
PLATÃO.
A República. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, s.d.
Texto: Prof. Dr. Fábio Pestana
Ramos.
Doutor em História Social pela USP.
MBA em Gestão de Pessoas.
Bacharel e Licenciado em Filosofia
pela Universidade de São Paulo.
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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
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