Para entender a
história... ISSN 2179-4111. Ano 3, Vol. mai., Série 14/05, 2012, p.01-10.
O
presente artigo trata-se da síntese de um projeto de oficina temática
pensada em face de debates que repercutem na historiografia nacional e
regional, bem como em eventos nacionais e internacionais que tratam de
discussões de gênero e identidade, relacionados à construção do ser mulher
nordestina, aos estereótipos a elas direcionados, suas ações, reações e
conformidades.
Tais
debates buscam suscitar as discussões sobre as representações que se tem de
mulher, em específico, a nordestina que, se contrapondo aos estereótipos, de
“mulher macho”, “arretada”, “desmazelada”, “feia”, vem procurando demarcar o
seu espaço na sociedade atual, valorizando sua cultura, seus modos de vida, que
não são únicos, nem tão pouco, comuns a todas as nordestinas.
Reflexões.
Conforme
Cavalcante (2008, p.02), só a partir da Escola dos Annales e com a contribuição do movimento feminista e da história cultural
é que a mulher ganha um espaço na historiografia nacional.
Para
a autora, na historiografia brasileira os debates acerca da história das
mulheres são “relativamente recentes”, constituindo-se como um “objeto” de
estudo a partir da década de 1970.
Contudo,
necessitaria ser mais do que um objeto, ser um agente de sua própria história,
como propõem Duby e Perrot (1994).
Nesse
mesmo período Cavalcante (2008, p.02) aponta o surgimento do conceito de
gênero, baseado na construção do ser mulher e do ser homem, evidenciando a
instituição de papéis sócio e culturalmente construídos, relacionados a cada
sexo, transformando-os em características identitárias imutáveis.
A
mulher foi por um longo período, negligenciada pela história, mencionada apenas
como um ser inferior e dependente do homem, que, conforme aponta Hissa (1999,
p.505), era considerado o detentor da ordem e da razão.
Trazendo
para o ambiente que nos propusemos investigar, o estereótipo de nordestino está
relacionado a um ser violento, viril, macho, insubmisso e orgulhoso, enquanto a
mulher por um lado frágil e passiva, por outro, assemelhava-se muitas vezes ao
homem: masculina, “mulher macho”.
Diante
dos discursos apresentados, nos propusemos a instigar a reflexão acerca das
representações da mulher nordestina na historiografia brasileira, evidenciando
a estigmatização, o menosprezo, e como reflexo das estereotipizações, as
humilhações e/ou agressões sofridas pelas mesmas, buscando no campo das
discussões os fatores que possibilitaram e que possibilitam tais construções
representativas.
Para
Santos (1999, p.461), sejam mestiças, mulatas, brancas, negras ou índias, todas
as mulheres estão “em meio às malhas de opressões discursivas ou de violências
físicas que marcaram sua pele e povoaram seu imaginário, fazendo-as acreditar
em sua ‘inferioridade’”.
Diante
disso, eleger as representações da mulher nordestina como ponto central de
debate não se trata de supervalorizá-la diante das demais, mas evidenciá-la em
contraposição a reprodução de determinados estereótipos criados pelo “outro”,
tomados como comuns a um recorte espacial, ao Nordeste.
Nos
propusemos a essa abordagem também por se tratar de uma temática que
estar relacionada com o âmbito do estudo regional e local. Conforme Caprini
(2007, p.01-02), falar de história regional é enfatizar “a necessidade de
pesquisarmos espaços e contextos que ficam esquecidos, sendo valorizados
somente aspectos históricos nacionais ou temas já consagrados”.
Contrariando
a ideia que se tem de história regional e local, Albuquerque Jr. (1999) critica
tal prática, haja vista considerar que esta só vem dar continuidade a
identidade de nordestino, dando lugar a diferença.
Ou
seja, na medida em que procura-se realizar um estudo por partes, o que se
considera heterogêneo será adotado como homogêneo, tomando por base
características comuns a esse espaço.
A
‘história regional’ nessa perspectiva, conforme o autor, “participa da
construção imagético-discursiva do espaço regional, como continuidade
histórica.
Ela
padece [...] de uma ‘ilusão referencial’, por dar estatuto histórico a um
recorte espacial fixo, estático.” (p.28)
Mediante
essa visão, é preciso atentar que o Nordeste como se constitui hoje, não
existiu desde sempre, assim como, o ser nordestino.
Só
foi a partir da “invenção do Nordeste”, na década de 20 do século passado,
segundo Albuquerque Jr.(1990), que um recorte espacial oriundo de uma invenção
imagético-discursiva emergiu e pela repetição de características e de tipos
estereotipados como seca, sertão, cangaceiro, cordel, folclore, “mulher macho”,
“cabra da peste”, passaram a constituir a “identidade nordestina”,
diferenciando esse recorte do restante do país.
Conforme
o autor:
O Nordeste [é] uma invenção da modernidade
brasileira... Surgindo como filho tardio das práticas ligadas ao combate a seca
no Norte do país, dos discursos que se teceram em torno desta temática e de
outras, como as da nação e sua identidade, da raça nacional,... do cangaço... e
das lutas oligárquicas, o Nordeste, torna-se um recorte espacial que passa a
ser preenchido com inúmeras imagens e textos. (2010, p.03).
Além
disso, segundo Albuquerque Jr. (1999, p.21), a estereotipização direcionada ao
nordestino e ao Nordeste se apresenta como algo próprio de nossa discriminação,
não sendo apenas imposições de fora, haja vista estarmos acostumados a nos
colocarmos como vítimas, “os derrotados”, sendo o Sul, o detentor do poder.
O
autor atenta que “devemos suspeitar que somos agentes de nossa própria
discriminação, opressão e exploração”, posição explicitamente notada na
construção das representações estereotipadas, muitas delas produzidas pelos
nordestinos.
Diante
disso, partimos da ideia tradicional de história regional, tomando um espaço
como foco de nosso estudo, mas utilizando desse recurso para possibilitar
discussões com vista a desconstrução da ideia que se tem da região Nordeste, da
construção de estereótipos, que se perpetuam localmente dando legitimidade às
práticas e visões distorcidas.
Cabe-nos
provocar o desenvolvimento de uma consciência crítica, favorável ao
questionamento a respeito das condutas próprias perante a sociedade, procurando
identificar os reais motivos que levaram a região Nordeste a se sentir
perante as demais, como uma região pobre, miserável, atrasada.
A
região que em si carrega a miséria decorrente das secas que assolam toda a
região.
Nesse
contexto social inventado, a mulher nordestina é representada ou como
“sofredora”, “submissa”, “apática”, ou como, “mulher macho”, “arretada”,
“feia”, castigada pelo sertão nordestino.
Contudo,
trabalharemos com as representações dessa mulher no intuito de desconstruir
certos estereótipos que a torna diferente das demais, enfatizando a construção
de uma imagem que não a diferencie do restante das mulheres brasileiras.
Embora
na sociedade atual estejam ainda presentes alguns desses estereótipos,
buscaremos suscitar a investigação de outras faces da nordestina.
As
duas últimas décadas que marcaram a virada do século (1990-2010) correspondem a
um período em que, apesar da permanência dessas generalizações relacionadas à
mulher nordestina, percebe-se transformações significativas no tocante às
representações e os papéis desempenhados por essas mulheres.
Com
a “invenção do Nordeste”, nordestinos e nordestinas ganharam características
que os tornaram “diferentes” dos demais, adquirindo particularidades regionais.
De
acordo com Albuquerque Jr (2010, p. 8-9):
[A] natureza adusta [do sertão] [...] explicaria
uma característica decisiva no nordestino, a de ser másculo, viril, macho. Só o
macho poderia se defrontar com uma natureza tão hostil, [...] conseguir
sobreviver numa natureza [...] áspera, árida, rude, traços que se
identificariam com a própria masculinidade. Por isso até a mulher sertaneja
seria masculinizada, pelo contato embrutecedor com um mundo hostil, que exigia
valentia, destemor e resistência. Só os fortes venciam em terra assim [...].
Criou-se
a imagem de que os problemas sócio-ambientais como seca, enchentes, fome,
miséria, seria a justificativa para o perfil de nordestinidade.
A
nordestina em meio as intempéries teve que se valer das ferramentas
disponíveis, com poucos recursos, ou quase nada, em muitos casos fazendo-se
valer como homem em defesa de direitos, proteção e manutenção.
Dessa
forma, ganhou o famoso adjetivo “mulher macho”, deixando para traz o
estereótipo de mulher submissa e passiva.
Nesse
aspecto, corre-se o risco de ocultar a singularidade entre essas mulheres
nordestinas, haja vista que nem todas tiveram a mesma conduta, muitas aderiram
a certos comportamentos que as assemelhavam ao homem, distanciando do posto de
mãe e esposa, outras lutaram em conjunto, auxiliando maridos e preservando suas
funções historicamente construídas.
No
tocante às representações da mulher na contemporaneidade, nota-se a
estereotipização ainda presente, embora sob outras vestes.
A
visão de “mulher macho”, “descuidada”, “brejeira” não desapareceu, mas perdeu
força, convivendo com outras tantas.
Nas
telenovelas, filmes nacionais e minisséries, ao retratar a nordestina, representam-na
como a “sofredora”, a “ludibriada”, mas aquela que lutou, superou obstáculos,
conseguiu vencer na vida longe de sua terra natal, buscando no Sul a cura para todos os males do povo nordestino.
Essas
obras audiovisuais “acabam por estancar a vida nordestina”, e, portanto, a
figura feminina “em temas desgastados e repetidos omitindo a diversidade
presente na região nordeste.” (SANTOS; SANTO; PAIVA, s.a, p.09).
Em
outra versão, a nordestina é representada como a “mulher dada”, “esperta”, mas
que se rende “facilmente” às influências masculinas.
É a
“mulher sem cultura”, “fútil”, “barraqueira”.
Raros
são os casos que trazem uma imagem que condiz com “as realidades”, evidenciando
as múltiplas faces desse complexo contexto.
A
depreciação da figura feminina também pode ser comprovada nas inúmeras músicas
populares que permeiam o quotidiano sócio-cultural brasileiro.
O
mais comum é observarmos a imagem da mulher ser desvalorizada em alguns
pagodes, funks, forrós e repentes, na condição de “mulher fácil”, a “cachorra”,
a “metralhada”, a “Raimunda ‘feia de cara, mas boa de bunda’”, a “mulher
canhão”, a “tribufu”, a “safadinha”, “sem vergonha”, a “piriguete”, etc.
Os
meios audiovisuais caracterizados como pertencentes à cultura de massa acabam
por envolver o público impedindo-o de desenvolver a sensibilidade, a imaginação
e a reflexão crítica em torno dos reais interesses da indústria cultural, que
ao invés de promover o acesso ao conhecimento da realidade acaba vendendo uma
imagem ilusória e temporariamente satisfatória.
“O
objetivo [...] da indústria cultural não é formar consciência crítica, mas uma
visão receptiva e conformista através de uma suposta identidade.” (ALMEIDA,
2010, p. 42).
Nessas
construções estereotipadas nota-se a falta de compromisso por parte dos
compositores e músicos em valorizar a imagem feminina por meio de palavras que
enfatizem o respeito e a consideração.
As
letras das músicas, por exemplo, muitas destas escritas por nordestinos, além
de banalizar o estilo musical, estigmatizam a figura feminina, reforçando entre
outros estigmas, o da mulher como objeto sexual.
Apesar
da distorção e vulgarização das representações da mulher nordestina se
constituírem em formas de agressão moral, social e psicológica, percebe-se que
as mesmas tem rejeitado esses estereótipos construindo uma posição política de
auto-afirmação de sua condição feminina na sociedade contemporânea.
Mediante
a busca pela conquista de novos papéis, podemos concordar com Mallard (2008),
no que diz respeito a mulher ter “assumido o poder” em todos os âmbitos da sua
vida, “em casa, no trabalho, na política, na sociedade com o compromisso, a
carga e a exigência que isso implica”.
É
evidente que muitas mulheres, inclusive a nordestina, permanecem diminuídas
perante a figura masculina.
Embora
a autora considere que o “machismo” não caiba mais neste século, esta prática
como uma herança dos tempos remotos, permanece arraigada na sociedade atual.
Como
enfrentamento a essa sociedade machista, no intuito de evidenciar a violência
tanto física como moral-psicológica, reflexo das construções de estereótipos
que ainda submetem as mulheres à figura masculina, elegemos a implantação da
Lei nº 11.340, como um dos principais resultados da constante luta em prol
da punição à violência doméstica contra a mulher que se faz valer da
permanência do estereótipo do homem macho e valente, do qual a mulher deve
acatar as ordens.
A
lei foi denominada “Maria da Penha”, em homenagem a cearense Maria da Penha
Maia Fernandes, que carregando as marcas nítidas da violência doméstica,
representa um exemplo fiel de mulher nordestina guerreira.
Só
em 2006 a lei foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente
da República em 07 de agosto de 2006, tendo entrado em vigor a partir de 22 de
setembro do mesmo ano. (Projeto AME Maria da Penha).
Diante
dessa conquista a própria Maria da Penha (2007) afirma:
Senti muita emoção. Porque antes da lei me sentia
órfã da justiça. A minha colaboração se deu pela persistência. A Violência está
relacionada à força física e à cultura, que faz com o que homem sinta-se
superior à mulher. Essa vitória é de todos os movimentos sociais. Iniciei uma
luta solitária, em 1983, que fui vítima de agressão, nessa época não tinha
delegacia especializada da mulher, que só foi ser criada em 1985. Hoje, me
sinto vitoriosa por ser mulher e por ter colaborado com essas mudanças que
estão acontecendo. Hoje o comportamento de homens e mulheres precisam de outros
valores. Viver sem violência é mais do que viver sem nenhum tipo de agressão. É
viver com respeito e consideração. É não acreditar na superioridade masculina.
Nesse
contexto, cabe mencionar o grande índice de violência praticada contra a mulher
das mais variadas formas (física, moral, psicológica), sejam elas praticadas
por filhos, companheiros, parentes, patrão ou empregados.
Segundo
pesquisa realizada pela ONG suíça Um Lugar no Mundo (2010):
A cada 15 segundos uma mulher é atacada no Brasil,
sendo que 70% das vitimas de violência foram agredidas dentro de casa e, em 40%
dos casos, houve lesões graves. Das mulheres assassinadas no país, 70% sofreram
agressões domésticas. (EBAND, 2010).
Diante
da alarmante situação apresentada, nos questionamos sobre o que colabora para
que ainda hoje, com todos os recursos disponíveis em prol da integridade
física, moral e psicológica humana, se constate tantos casos de violência
contra a mulher. Conforme a pesquisa da ONG suíça, um dos fatores que contribui
para que esses casos de violência se mantenham diz respeito a condição social
da agredida.
Na
maioria das vezes essas mulheres não têm para onde ir caso saiam de casa, assim
“se submetem aos maus-tratos porque não dispõem de condições financeiras para
sobreviver sem a ajuda dos companheiros, maridos e namorados”, sendo ainda que
“a maior parte das vítimas não exerce atividades profissionais fora de casa”,
até mesmo por exigência do companheiro (EBAND, 2010).
Contudo,
para Albuquerque Jr. apud Lobo (2006, p.06):
Alimentar o mito do 'cabra macho' é contribuir para
a permanência, inclusive, da violência contra as mulheres e, ao mesmo tempo,
alimentar um modelo de masculinidade, que tenta manter um tipo de relação entre
homens e mulheres que viria desde o período colonial e que, por isso mesmo, é
vista como natural, como eterna. Este modelo vitima os próprios homens, já que
os coloca em constantes situações de risco e deles exige renúncias afetivas e
emocionais importantes, como a do exercício da paternidade e da expressão de
sentimentos e emoções.
Podemos
afirmar que a violência contra a mulher, não só a física, mas qualquer outro
tipo de agressão, inclusive a depreciação moral por meio das músicas e
telenovelas, são reflexos da construção imagético-discursiva de uma identidade
do ser nordestino: o homem tido como valente e viril, provocador do medo, e a
mulher submissa, apática, passa em alguns momentos e situações à condição de
“mulher macho”.
Concluindo.
Vale
ressaltar que o estudo sobre as representações estereotipadas dos
comportamentos, atitudes e relações afetivas das mulheres nordestinas no Brasil
das últimas duas décadas trata-se de uma abordagem histórico-social com intuito
de pensar, construir, desconstruir e reconstruir a ideia que se tem do ser
nordestino, de forma que possamos direcionar nossos olhares às outras faces
desse processo: o espaço ocupado pela mulher atualmente, o papel de mantenedora
da família, a participação efetiva na política, muitas vezes desconhecidas,
omitidas, tomadas como mera exceção, em lugar da generalização.
Para saber mais
sobre o assunto.
ALBUQUERQUE
JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Massangana; São Paulo: Cortez,
1999.
ALBUQUERQUE
JR., Durval Muniz de. Nos destinos da fronteira: a invenção do Nordeste (a produção imagético-discursiva de um
espaço regional). Programa de Pós-Graduação em
História. Mestrado em História e Espaço. Artigo publicado em Fevereiro de 2010.
Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/segunda_remessa/nos_destinos_da_fronteira.pdf, acessado dia 20 de agosto de 2010.
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Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Norte. Belém. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/regionais/norte2007/resumos/R0202-1.pdf,
acessado dia 15 de novembro de 2010.
Texto: Samara de Jesus Neves & Marineide de
Jesus Ferreira.
Graduandas do curso de Licenciatura em História
pela Universidade do Estado da Bahia.
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