Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume ago., Série 10/08, 2011, p.01-13.
“Por que tenho saudade de você , no retrato , ainda que o mais recente ? E por que um simples retrato , mais que você , me comove se você mesma está presente ? Talvez porque o retrato , já sem o enfeite das palavras , tenha um ar de lembrança [...]”.
Cassiano Ricardo.
Para Joseph Campbell (2001), sonhar é querer ter aquilo que, em um determinado instante parece ser inatingível.
O sonho seria, portanto, o desejo de transformar uma vontade em realidade, bem como algo que estimula o homem a seguir adiante : “[...] o sonho é uma experiência pessoal daquele profundo , escuro fundamento que dá suporte às nossas vidas conscientes , e o mito é o sonho da sociedade ” (CAMPBELL, 2001: p.42).
O pesquisador ainda acrescentou que “O mito é o sonho público , e o sonho é o mito privado” (CAMPBELL, 2001: p.42).
Para Mircea Eliade (2002) “viver os mitos implica, uma experiência verdadeiramente ‘religiosa ’ [...] não se trata de uma comemoração dos eventos míticos, mas de sua reiteração” (ELIADE, 2002: p.22).
A chegada dos europeus à América e as práticas do processo de colonização estão diretamente vinculadas à projeção de imagens , sonhos e utopias que serão lançados sobre as novas terras .
A história da Europa se transformará também na história da América.
De acordo com Laura de Mello e Souza: “[...] onde termina a Europa, onde começa a América? É possível pensar o que seríamos sem o colonizador [...] todos nos contando suas impressões de europeus exilados nos trópicos , deformando [...] o que viam, cheiravam ou sentiam?” (SOUZA, 1993: p.14).
É preciso compreender em que momento e época o Novo Mundo surgirá como “nova chance ”, advento do milênio , riquezas e prosperidade.
É somente a partir de um conhecimento da história européia que se poderá entender as práticas dos colonizadores no novo continente .
A história da Europa mudará e novas impressões sobre a América serão estabelecidas. O diálogo entre esses dois mundos nunca cessará de acontecer .
Fugindo da Europa em busca da utopia.
Uma terrível epidemia de peste negra assolou a população européia no século XIV.
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O homem só se tornava virtuoso se fosse crucificado no mundo .
As dificuldades da vida cotidiana , a fome , o frio que destrói a plantação , as revoltas camponesas; esse era o contexto de desesperança , de que dias piores chegaram, em fins do século XIV: “aquilo que dominava a mentalidade e a sensibilidade dos homens da Idade Média , aquilo que determinava o essencial das suas atitudes , era o seu sentimento de insegurança . Insegurança material e moral [...]” (LE GOFF, 1984: p.87).
Desse modo , o futuro projetado só pode ser apocalíptico. É impossível imaginar que o melhor está por vir se o presente se encontra em estado de destruição : “[...] insegurança quanto à vida futura , que a ninguém estava assegurada e que as boas obras e a correta conduta nunca podiam garantir [...]” (LE GOFF, 1984: p.88).
O medo vencia a esperança e essa situação atingia também os valores , vistos como corrompidos, num mundo material em que a ganância , a disputa por terras e propriedades levavam milhares de pessoas ao conflito .
O mundo se aproximava do fim e a Igreja era vista como anunciadora dessa nova era .
A visão religiosa mostrava um futuro que se anunciava sombrio e, assim , o mundo era um velho que para o seu fim avançava.
O macabro era conduzido ao centro do palco .
Os relatos e contos sobre monstros aparecem num momento de grande pessimismo sobre a época e essas narrativas são todas ilustrações do pecado : homens com cabeça de peixe , homens com os olhos no peito e caldas de cavalo ; “[...] os homens da Renascença se deleitavam nas descrições de seres monstruosos, nas narrativas e catálogos de fatos espantosos” (DELUMEAU, 2003: p.258).
A monstruosidade é anúncio de destruição , de castigo maior que estar por vir e, assim, falhas morais se transformam em defeitos físicos e deformidades mitológicas.
Essa é a concepção de que a Europa chegou ao seu ponto mais alto e que agora tende à queda , ao declínio.
É importante deixar bem claro que a teratologia tem suas origens muito anteriores ao mundo cristão e que , por isso , o sentimento de culpa pelo pecado não é a única causa desse fenômeno de construção do monstruoso; ele é, antes de tudo , um reforçador.
Deve-se romper com esse presente , deve-se esquecer o que se viveu.
É preciso , portanto , construir um novo cenário , virgem de pecados , em que o sopro da vida possa novamente ecoar .
A Europa, arrasada por pestes e guerras , não poderia mais ser o lugar em que os sonhos de esperança de uma vida futura e melhor pudessem se erguer .
Ele era projetado para fora.
O fato de ser longe é a única certeza desse local .
Buscando o paraíso na terra.
A narrativa bíblica ganhava força , na medida em que a iminente idéia de destruição ameaçava a todos na época.
Só parecia ser seguro aquilo que encontrava garantias no passado , naquilo que já foi e que , por isso , era certo.
As pessoas passaram a olhar com nostalgia para o passado e com desprezo e depreciação para o presente .
Parecia existir, assim , certo desejo de ruptura com o mundo atual e pecador.
O presente era ruim, o futuro incerto, mas o passado era certamente seguro.
Ele poderia ser narrado de qualquer modo e a cada narrativa ele ganhava tons diferentes.
Isso parece exprimir o desejo amplamente disseminado de mudança em relação às duras condições da época .
“A Renascença sonha apaixonadamente com um paraíso perdido” (DELUMEAU, 2003: p.233), trancado e, ao mesmo tempo aberto , em algum lugar da consciência .
Tratam-se sempre de paraísos alimentares onde a comida reina abundante e gratuita ; lugares mágicos em que se pode falar e fazer sexo sem maiores preocupações morais.
A terra da Cocanha, surgida pela primeira vez em 1142 é um bom exemplo dessa imaginação européia: “A Cocanha é um mundo sem instrumentos , sem utensílios , sem máquinas .
O pão está ausente dali talvez porque o trabalho de moagem não existe.
O vinho está presente porque não produto do lagar , corre em estado natural do riacho .
Os alimentos , já cozidos , caem na boca dos homens e das mulheres [...]” (FRANCO JÚNIOR, 1998: p.10).
O desprezo pelo humano.
O homem era o principal responsável pela aniquilação dos valores de sua época .
Essa postura de se rebaixar à figura humana atravessará a história da cultura ocidental , em diferentes instantes , e movida por diversos fatores e contextos.
Essa idéia ganhava força ainda mais quando o texto bíblico era lido de modo recortado, em que alguns trechos eram valorizados e destacados, a fim de se enxergar o homem como sofredor: “Porque comeste da árvore , cujo fruto te proibi comer , amaldiçoada será a terra por tua causa ” (Gn 3:17).
A desvalorização do homem aparece em outros textos sagrados : “Acaso não tem o homem trabalho pesado aqui na terra , e seus dias não são os de um trabalhador ? (Jó 7:1); “Meus dias consomem-se sem esperança ” (Jó 7:6).
O livro Eclesiastes traz idéia semelhante , ao falar sobre as ilusões da vida humana : “Tudo é penoso , difícil de o homem explicar ” (Ecl 1:8); “Examinei todas as obras que se fazem debaixo do sol : na verdade , não passam de ilusão e frustração ” (Ecl 1:14).
Para os cristãos, Adão agiu como um insano e todos seus descendentes se comportam da mesma maneira .
Plutarco, em outra tradição cultural, nos Tratados Morais afirma que “Nada é mais miserável do que o homem entre tudo o que respira e se move”; Maquiavel apresenta posicionamento semelhante em O Príncipe : “De fato , pode-se dizer dos homens , de modo geral , que são ingratos , volúveis , dissimulados; procuram esquivar-se dos perigos e são gananciosos [...] os homens são egoístas [...]” (MAQUIAVEL, 2004: p.103).
Thomas Hobbes em O Leviatã afirmava: “[...] a humanidade está constantemente envolvida numa competição pela honra e pela dignidade [...] Devido a isso é que surgem entre os homens a inveja , o ódio , a guerra [...]” (HOBBES, 2004: p.103).
Jean Jacques Rousseau tem postura parecida séculos depois : “O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência . As produções da terra lhe forneciam todos os socorros necessários [...] e esse pendor cego , desprovido de todo sentimento , não produzia um ato senão puramente animal . Tal foi a condição do homem ao nascer.” (ROUSSEAU, 2005: p.61).
Mas a sociedade privou os homens de tal originalidade .
No entanto , essa postura não é uma regra e nesse processo de desconstrução da figura humana , de sua vida diária e moral , muitas obras surgirão como respostas a essas posturas, imaginando e criando situações de conforto e esperança, talvez numa tentativa de suportar com menos dor as situações presentes.
A Utopia de Thomas More.
Alguns autores revelarão, de diversos modos , os sonhos e a forma de mundo ideal que se desejava ter , a partir , é claro , da oposição com o que se tinha e, porventura , não se desejava mais.
A palavra “Utopia ”, em grego , significa “em lugar nenhum ” e foi utilizada por Thomas More em 1516 para designar a ilha deserta e imaginária de sua obra .
Esse local , construído pelo autor , mostra-se como imagem “invertida” de uma sociedade inglesa e européia criticada por ele .
No entanto , sua crítica toca em importantes pontos dos problemas europeus , como a política , a organização social , as colheitas , as guerras e o comércio .
O país imaginário não apresentará nenhum desses problemas , mas antes o contrário , sabe administrar tudo de modo diferente .
As doenças e epidemias , que dizimam centenas de milhares de pessoas , perderiam efeito num lugar onde “[...] tudo está tão bem organizado e a comunidade tão bem governada que [...] Encontram remédio rápido e fácil para as deteriorações presentes , prevendo mesmo as possíveis” (MORE, 2003: p.63).
Os valores morais , tão corrompidos e criticados, como o adultério e os prazeres da comida e bebida ficam, certamente , em segundo plano , pois “[...] preferem principalmente os prazeres do espírito , que consideram como os principais e mais essenciais de todos .
Pensam que os mais importantes advêm do exercício da virtude e da consciência de uma vida perfeita” (MORE, 2003: p.81).
Ao destacar de que modo uma sociedade “deveria ser ”, More mostra como sua sociedade , inglesa e européia do século XVI, está indo numa direção contrária daquilo visto como perfeito para o autor .
É uma crítica feita pelo espelho . Sobre as mortes e intermináveis conflitos e guerras passadas pela Europa, Utopia é moralmente diferente e superior , já que os habitantes da ilha “[...] detestam e abominam a guerra como coisa brutal e selvagem” (MORE, 2003: p.93).
O historiador Sérgio Buarque de Hollanda , em Visão do Paraíso, trabalhou com essa mesma idéia:“[...] o paraíso perdido fosse fabricado para responder a desejos e frustrações dos homens [...]” (HOLANDA, 2000: p.186).
Ao mesmo tempo em que desejava todas essas coisas , vistas como perfeitas para uma vida em sociedade , More sabia os limites de seu trabalho. “[...] sou obrigado a reconhecer que há muitas coisas que eu desejaria para os nossos países , considerando-se que a minha expectativa vai além da esperança de o conseguir” (MORE, 2003: p.113).
O pensamento utópico, no geral, parece ser o território da esperança.
O lugar que não existe, o país de nenhuma parte : “O território da utopia que ‘não está aqui ’ supõe o esforço de criação de outro mundo , alteridade que recupera as virtudes do passado , se projeta no futuro ou , simplesmente , se representa como já existente apenas dado em outro lugar . Esse outro mundo de alteridade representa uma contra imagem crítica desta realidade [...]” (AÍNSA, 1992: p.10).
A utopia mais resgatada, de maior tradição européia e ocidental, se enraízava inevitavelmente com o Paraíso perdido, com a expulsão do homem do Éden : “O Jardim do Éden é uma metáfora para aquela inocência que desconhece o tempo , desconhece os opostos e vem a ser o centro primordial a partir do qual a consciência se dá conta das mudanças.
É uma crença de se recuperar um “princípio ” absoluto , o que implica a destruição e a abolição simbólica do Velho Mundo .
Existe perfeição nos primórdios .
A Idade de Ouro é proclamada não apenas no passado , mas igualmente no futuro .
Parece existir certa beatitude inicial no Paraíso : “[...] os mitos recordam continuamente que eventos grandiosos tiveram lugar sobre a Terra , e que esse “passado glorioso ” é uma parte recuperável” (ELIADE, 2002: p.128); “O retorno à origem oferece esperança de renascimento. [...] a vida não pode ser reparada, mas somente recriada mediante um retorno às fontes” (ELIADE, 2002: p.32); [...] A vida , na realidade , começou com aquele ato de desobediência”(CAMPBELL: p.53).
Nesse sentido , a invenção desses outros lugares representa, de fato , nova invenção de si mesmo .
A concepção de Erasmo de Rotterdam.
Erasmo de Rotterdam, no início do século XVI, apresentou outra postura diante da humanidade .
No momento de maior pessimismo sobre as atitudes dos homens em seu período , Erasmo aparece como crítico , escrevendo contra àqueles que desprezam a vida e os valores humanos .
Erasmo menciona uma Idade de Ouro , criticando a razão e as ciências ; é a construção de uma organização social diferente , de imaginar um lugar em que as coisas poderiam ser de outro modo .
É na boca da loucura que está a vontade de se voltar para um tempo perdido. Mas que “tempo ” é esse que nunca volta e que não chega jamais?
O comércio marítimo e as viagens por lugares distantes levariam o pensamento europeu a voar alto , a encontrar solo seguro para que o pouso da imaginação pudesse finalmente acontecer .
As terras distantes encontradas pelo mundo europeu serão os novos palcos em que o teatro dos desejos finalmente poderá encenar seus diversos atos adormecidos e latentes .
O que se pensa fará eco naquilo que se vê e o que está sendo visto mudará o modo de se pensar sobre aquilo.
O que se pensa , se encontra ; e só encontro aquilo que sou capaz de pensar . “É próprio da fé acrescentar ao mundo e às coisas tais como são uma dimensão sobrenatural perceptível apenas pelos crentes , e ligar o universo a um universo superposto cuja visão e certeza são garantidas unicamente pela fé” (BOTTERO, 1986: p.24).
O impacto do descobrimento da América para os europeus.
O descobrimento da América será um acontecimento de forte impacto no imaginário europeu dos séculos XV e XVI.
Apesar de toda data que permite separar duas épocas ser arbitrária , nenhuma é mais indicada para marcar o início da era moderna do que o ano de 1492, ano em que Colombo atravessa o Oceano Atlântico . Somos todos descendentes diretos de Colombo, é nele que começa nossa genealogia .
Desde 1492 estamos, como disse Las Casas ‘neste tempo tão novo e a nenhum outro igual’. A partir desta data , o mundo está fechado.
‘O mundo é pequeno ’ declarará o próprio Colombo.
Os homens descobriram a totalidade de que fazem parte . Até então , formavam uma parte sem todo” (TODOROV, 1995: p.06).
Essas novas terras farão parte , agora , da história do continente europeu , serão vistas , lidas e interpretadas, todas as ilhas e locais , pelos olhos daqueles que chegam.
O problema consiste em explicar o aparecimento da América no seio da cultura ocidental (O’GORMAN, 1992: p.25), porque essa questão envolve a maneira de se conceber o “ser ” da América e o sentido que se há de atribuir à sua história .
A Europa constrói mais uma utopia que dessa vez , no entanto , se apresentará de forma física diante dos olhos da imaginação .
O continente europeu encontrará o que sempre sonhou e projetará nessas novas terras aquilo que não quer mais , depositará suas crenças de mundo melhor num novo local , a partir de novas oportunidades, em um Novo Mundo .
A Utopia de More, o Elogio da Loucura de Erasmo, o próprio Dom Quixote , as idéias e projetos políticos de Maquiavel e Hobbes.
Todas esses conceitos não seriam formas de sonhos ?
A Europa tinha formado dentro de si uma concepção do que deveria ser, cristã, perfeita, com bom clima e saudável.
O território para uma possível utopia já não podia situar-se no velho continente , conhecido e explorado em seus confins , atacado e destruído moralmente , por crises e pestes .
Navegando em busca do paraíso.
Para os europeus, procurar o caminho para as Índias nunca foi separado da possibilidade de se encontrar o Paraíso : “Longe de ser uma questão fútil e inofensiva , especular sobre a localidade do Éden implicava rediscutir o maior de todos os problemas teológicos : o mistério da salvação” (GOMES, 1997: p.14).
A viagem e a travessia marítimas ganharam tons hagiográficos , na medida em que a literatura registrou o sofrimento e as dificuldades de homens cristãos a atingir o paraíso perdido.
A travessia oceânica assombra e deslumbra, seduz e causa medo .
O canto e a imagem da sereia , nesse aspecto , representam bem essa ambivalência da viagem: o diferente atrai, mas facilmente pode levar a caminhos sem volta .
A maneira como a América foi narrada parece estar diretamente vinculada ao modo com que os europeus deram capazes de compreender a América.
O Novo Mundo , assim , “[...] incorporou-se ao imaginário europeu com uma série de atributos que já haviam sido delegados a ela muito antes de ser descoberta . [...] a América já fazia parte do imaginário europeu , representando para Colombo apenas a comprovação de tudo o que havia sido produzido pela sua imaginação” (THEODORO, 1992: p.42); “A curiosidade do viajante , no entanto , é duplamente singular . Porque ele não quer conhecer , e sim comprovar” (GIUCCI, 1992: p.26).
O navegador genovês tentava encontrar no “real” aquilo que ele imaginava de antemão a respeito desse mundo .
Ele conseguia reinterpretar as Sagradas Escrituras a fim de tornar o descobrimento o momento final de uma história universal .
Incapaz de compreender de onde vem Deus e o que acontece nas inúmeras viagens descritas em toda a Bíblia, o leitor pode “preencher ” esses vazios textuais, com a finalidade de tornar a mensagem bíblica plenamente compreensível .
Sobre o texto sagrado , Auerbach afirma que : “[...] ele não quer nos fazer esquecer a nossa própria realidade durante algumas horas [...], mas suplantá-la; devemos inserir nossa própria vida no seu mundo [...]” (AUERBACH, 1992: p.12).
Colombo pratica, assim , uma estratégia “finalista ” da interpretação : o sentido final é dado imediatamente “[...] procura-se o caminho que une o sentido inicial a este último .
Essa postura faz com que não apenas Colombo, mas talvez vários cronistas, do início da colonização, encaixem suas vidas e seus destinos no fato e no ato do descobrimento. Não seria impossível afirmar que, para os desbravadores desse novo mundo, o Paraíso teria sido finalmente , encontrado, pois era o que diziam as escrituras .
Começam as buscas para identificar o que já existia no que existe: São Tomé, as viagens de São Brandão, Moisés, profecias de Isaías, em todo e qualquer acontecimento no Novo Mundo .
O mundo real , aos olhos dos cronistas, começava a dar pistas de que as profecias e as escrituras se concretizavam.
A narrativa de terras prometidas e de lugares maravilhosos existia na tradição clássica , em culturas nórdicas, fenícias e, a cada época , migrava de lugar : “Cada época constrói mentalmente o seu universo [...] cada época constrói mentalmente a sua representação do passado [...]” (FEBVRE, 1987: p.12).
O paraíso só precisava mudar de lugar : o acampamento da imaginação só precisava se desmanchar e ser remontado em outro local : “[...] a localização atlântica do paraíso atesta que a utopia é geograficamente transferível e que , uma vez abandonado seu locus originário, é capaz de adquirir novas características e funções” (GIUCCI, 1992: p.36).
A descrição de cada jardim, de cada terra prometida ou sonho encontrará na América a chance de se tornar real .
Os relatos mágicos de vários viajantes são lidos com prazer na Europa, em tons de aventura e de prodígios do espírito humano.
O Paraíso passa a existir de fato e uma nova “miragem ” se forma .
Mas o encontro com as novas terras estaria por vir e o choque entre o que se “imaginava ser”, tão reforçado pelas literaturas de viagens, com o que “realmente era”, provocaria sensações, criaria novas imagens e, sobretudo, novas práticas dos europeus no Novo Mundo.
Construindo o paraíso no imaginário.
O Paraíso será pintando pelos olhos e ao gosto da pena do conquistador : “[...] as primeiras imagens são paradisíacas: uma vegetação exuberante , águas límpidas, aves raras [...] Exageros de viajantes impressionados pela magia dos trópicos , inspirados no Paraíso Terrestre” (GRUZINSKI, 1999: p.14).
A partir disso, a América tinha que ser o que se esperava dela e pouco importava a realidade , desde que se acreditasse no projeto : “os fatos não penetram no mundo onde vivem nossas crenças”, diz Marcel Proust.
O Novo Mundo ficará, num primeiro instante , no campo das idealizações.
É como tentar encaixar um objeto numa forma, sem antes saber as dimensões desse objeto: “[...] simples territórios metamorfosearam-se em vastas extensões de ilusão [...]; e os objetivos declarados das empresas descobridoras desviaram-se para uma perseguição insaciável de realidades fantásticas” (GIUCCI, 1992: p.15).
O viajante europeu se dá o direito de realizar seus sonhos a partir da modificação dos espaços distantes da metrópole e, assim , regiões desconhecidas lhe permitem projetar suas fantasias e críticas , formadas em seu próprio mundo .
Ocorre uma transição do desejado para o desconhecido , em que espaços inexplorados e distantes do eixo europeu , ganham projeções deslumbrantes .
O encontro de Colombo se transforma num sonhar acordado e o território americano será preenchido com as virtudes que se desejou encontrar desde tempos imemoriáveis na sociedade e cultura ocidental : “Em vez de se desmentirem na confrontação com a realidade do Novo Mundo , os mitos e lendas do passado sobre ‘outros mundos ’ possíveis se atualizam” (AÍNSA, 1992: p.45).
Ocorre um esforço de adequação da realidade a um imaginário que a precede: “O prazer de produzir uma narração de acordo com suas expectativas , construídas bem antes da viagem , era superior à sua capacidade de descrever um continente desconhecido . Nesse sentido , Colombo vai estruturar em seu diário na apenas o seu sonho , mas [...] um sonho europeu” (THEODORO, 1992: p.42).
De certo modo , o ocidente não havia empreendido o descobrimento de um Novo Mundo , mas um retorno às suas origens , ao início dos tempos , momento em que o homem não pecava, não havia sido corrompido por vícios , crimes e onde Deus poderia estar mais próximo : “O tempo mítico das origens é um tempo ‘forte ’, porque foi transfigurado pela presença ativa e criadora [...] Ao recitar os mitos , reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, conseqüentemente, ‘contemporânea ’, de certo modo , dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis . [...] ao viver os mitos , sai-se do tempo profano [...] ingressando num tempo sagrado” (ELIADE, 2002: p.21), primordial e recuperável.
É um estado de delícias e venturas que teria a humanidade vivida no começo dos tempos e que , agora , estaria de volta , mas colocada em prática no futuro , naquilo que deveria ser , ou seja, de volta para o futuro .
A América será vista como lugar perfeito , local de “[...] acordo entre todas as criaturas , a feliz ignorância do bem e do mal , a inscrição de todo mister penoso e fatigante, e ainda a ausência da dor física e da morte : estes são os elementos constitutivos da condição primeira do homem [...]” (HOLANDA, 2000: p.186).
Ao se descortinar o espetáculo , não faltaram os que julgassem ver , enfim , realizadas as antigas visões edênicas; “Pelo fato de ser diferente , o Novo Mundo se imagina como melhor [...]”(AÍNSA, 1992: p.231).
Pero Vaz de Caminha, anos depois, em sua carta ao rei de Portugal, diz algo semelhante : “Andamos por aí vendo o ribeiro , o qual é de muita água e muito boa.
Ao longo dele há muitas palmeiras . Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha , atravessavam alguns papagaios essas árvores ; verdes uns, e pardos , outros , grandes e pequenos ”. Sobre os índios , diz o almirante: [...] tudo aceitavam e davam do que tinham com a maior boa-vontade. Mas me pareceu que era gente que não possuía praticamente nada . Andavam nus , como a mãe lhes deu à luz [...]” (COLOMBO, 1996: p.44).
Todorov faz uma análise sobre esse assombro com a nudez indígena por parte de cronistas de viagem: é bastante revelador que a primeira característica desta gente que chama a atenção de Colombo seja a falta de vestimentas . “[...] Fisicamente nus , os índios são também , na opinião de Colombo, desprovidos de qualquer propriedade cultural: caracterizam-se, de certo modo , pela ausência de costumes , ritos e religião .
O que tem certa lógica , já que , para um homem como Colombo, os seres humanos passam a vestir-se após a expulsão do paraíso , e esta situa-se na origem de sua identidade cultural” (TODOROV, 1995: p.34).
É de se esperar que todos os índios , culturalmente virgens , página em branco à espera da inscrição espanhola e cristã, sejam parecidos entre si : “todos parecem-se com aqueles de que já falei, mesma condição , também nus , e da mesma estatura” (COLOMBO, 1996: p.56).
Concluindo.
A história do imaginário permite esclarecer as articulações entre mundo objetivo e subjetivo , externo e interno , material e psicológico .
É uma relação bilateral , dialética : “[...] mesmo ao imaginar , cada indivíduo não deixa de ser membro de uma sociedade e de seus valores objetivos e subjetivos . [...] o imaginário faz a intermediação entre realidade psíquica da sociedade e a realidade material externa” (FRANCO JÚNIOR, 1998: p.15).
O importante é que toda sociedade é, ao mesmo tempo , produtora e produto de seus imaginários .
Naquilo que se chama sociedade imaginária , tem-se quase sempre a presença de uma sociedade concreta , através do exagero ou da inversão de suas características , da negação de seus medos ou da projeção de seus desejos : “[...] entre uma sociedade concreta e uma sociedade imaginária não existem, portanto, fronteiras, e sim uma larga faixa de domínio comum . [...] não se pode compreender uma delas sem o concurso da outra” (FRANCO JÚNIOR, 1998: 17).
Criar sociedades imaginárias que superem as carências da realidade vivida .
Nesse sentido , os sonhos criados e de certo modo vividos pela sociedade demonstram sempre ter relação com o mundo real ; “[...] toda utopia exprime oposição a uma situação considerada intolerável” (FRANCO JÚNIOR, 1998: p.19).
As utopias não passam de necessidades profundas de uma época que nega globalmente a sociedade existente, é uma questão , portanto , de alteridade social .
Ao imaginar um outro , nego onde vivo e, esse outro , é sempre melhor na medida em que é diferente .
Essa diferença, lembra Todorov, cria um sentimento de superioridade ; “[...] muitas vezes a utopia sonhada para o futuro representa a volta a uma situação passada” (FRANCO JÚNIOR, 1998: p.19).
É como ter o futuro às costas .
A Europa amou uma cena idílica que ela mesma construiu.
Pode-se pensar , portanto , que a bela cena é amada antes de se amar o objeto .
A alma é uma coleção de belos quadros adormecidos, lugar em que está registrado tudo o que encanta , comove e que dá beleza à vida .
Acontece, entretanto , que cedo ou tarde se descobrirá que tudo aquilo não era o “sonho ”.
E a bela cena retornará à sua condição de sonho impossível da alma .
E só restará à cena alimentar-se da nostalgia que “lugar algum ” poderá satisfazer : a América foi utopia da Europa e os pesadelos europeus , no interior de suas angústias , buscavam soluções maravilhosas e imagéticas.
Para saber mais sobre o assunto.
AÍNSA, Fernando. De la edad de oro a El Dorado: genésis del discurso utópico americano . México: FCE, 1992.
BOTTERO, Jean. O nascimento de Deus. Rio de Janeiro : Paz e Terra , 1986.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito . São Paulo: Palas Atena, 2001.
COLOMBO, Cristóvão. Los cuatro viajes – Testamento . Madrid: Alianza, 1996.
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo . A culpabilização no Ocidente : séculos XIII e XVIII. Bauru : Edusc, 2003.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade .São Paulo: Perspectiva , 2002.
FEBVRE, Lucien. O problema da descrença no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Editorial Início , 1987.
FRANCO JÚNIOR , Hilário . Cocanha: a história de um país imaginário .São Paulo: Companhia das letras , 1998.
GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso . São Paulo: Companhia das Letras , 1992.
GOMES, Plínio Freire. Um herege vai ao Paraíso . São Paulo: Companhia das Letras , 1997.
GRUZINSKI, Serge. Virando os séculos : 1480-1520. São Paulo: Companhia das Letras , 1999.
HOBBES, Thomas. O Leviatã . São Paulo: Martin Claret, 2004.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso .São Paulo: Brasiliense ; Publifolha, 2000.
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval . Lisboa: Editorial Estampa , 1984.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe São Paulo: Martin Claret, 2004.
MORE, Thomas. Utopia . São Paulo: Martin Claret, 2003.
O’GORMAN, Edmundo. A Invenção da América. São Paulo: UNESP, 1992.
ROTTERDAM, Erasmo. Elogio da Loucura . São Paulo: Martin Claret, 2003.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a desigualdade entre os homens .São Paulo: Martin Claret, 2005.
SOUZA, Laura de Mello. Inferno Atlântico .São Paulo: Companhia das Letras , 1993.
THEODORO, Janice. América Barroca . São Paulo: EDUSP, 1992.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro . São Paulo: Martins Fontes , 1995.
Texto: Prof. Ms. Marcus Vinícius de Morais.
Mestre em História Cultural pela Unicamp e autor dos livros Hernán Cortez: civilizador ou civilizador ou genocida? e Eles Formaram o Brasil, co-autor do livro História dos EUA: das origens ao século XXI, todos publicados pela Editora Contexto.
Membro do Conselho Editorial de "Para entender a história..."
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