Publicação brasileira técnico-científica on-line independente, no ar desde sexta-feira 13 de Agosto de 2010.
Não possui fins lucrativos, seu objetivo é disseminar o conhecimento com qualidade acadêmica e rigor científico, mas linguagem acessível.


Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Editorial - Balanço do mês de Novembro - Para entender a história...

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume nov., Série 30/11, 2010.


Neste mês de novembro tivemos uma grata surpresa, recebemos 26.177 visitas, distribuídas entre pessoas de 68 países, espalhadas pelos cinco continentes.
Totalizando mais de 52.000 visitas desde 13 de agosto de 2010.
Assim, tivemos um crescimento significativo no número de leitores, como demonstra o gráfico fornecido pelo Google.


Além do Brasil, foram registradas visitas dos seguintes países: EUA, Canadá, México, Republica Dominicana, Panamá, Porto Rico, Honduras, Nicarágua, Argentina, Uruguai, Equador, Peru, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guiana, Bolívia, Venezuela, Paraguai, Portugal, Espanha, Itália, Grã-Bretanha, Irlanda, Polônia, Lituânia, Finlândia, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Suécia, Suíça, França, Rússia, Hungria, Noruega, Croácia, República Tcheca, Áustria Albânia, Malta, Sérvia, Eslováquia, Eslovênia, Moldávia, Letônia, Chipre, Andorra, Luxemburgo, Montenegro, Bélgica, Grécia, Angola, Argélia, Moçambique, Cabo Verde, África do Sul, Índia, Paquistão, Líbano, Coréia do Sul, Filipinas, Taiwan, Japão e China.
Portanto, somaram-se aos leitores pessoas dos seguintes países: República Tcheca, Áustria, Cabo Verde, Indonésia, Panamá, Macau, Malta, Colômbia, El Salvador, Paquistão, Líbano, Irlanda, Luxemburgo, Montenegro.
Depois do Brasil, com 22.000 visitas, o país que mais visitou os artigos publicados foi Portugal, com 3.000 leitores.
As postagens mais populares o numero de vistas, respectivamente, foram: A passagem da antiguidade para o feudalismo (2.557); A revolução francesa foi causada pela fome (1.987); A organização social do alto império romano (1.311); Reflexões acerca do inicio da utilização da mão de obra africana pelos portugueses no período colonial (1.123); A vida privada entre os escravos africanos no Brasil (1.085); Chica da Silva (1.010); História indígena na América portuguesa (843); História e Poder (810); Intelectuais, pensamento social e educação (702); e Três arquivos portugueses (610).
Uma grande novidade foi à transformação do blog em Publicação Técnico-Científica on-line, a partir de sua indexação junto ao Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia da República Federativa do Brasil.
Ao receber o numero de ISSN 2179-4111, o blog ganhou status e reconhecimento como publicação cientifica, podendo ter seus artigos inseridos no currículo lattes como publicação em periódico.

O ISSN é um número internacional normalizado para Publicações Seriadas (International Standard Serial Number), é o identificador aceito internacionalmente para individualizar o título de uma publicação seriada, tornando-a única e definitiva.

Seu uso é definido pela norma técnica internacional da International Standards Organization ISO 3297.

O ISSN é operacionalizado por uma rede internacional, e no Brasil o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia - IBICT atua como Centro Nacional dessa rede.
O IBICT somente concede ISSN para as publicações que apresentam artigos originais, atendendo o requisito de manutenção de periodicidade e expediente.
Cabe ressaltar que o IBICT não concede ISSN para publicações que apenas reproduzem textos de outros sites ou que apresentam resumos, além de negar o registro para blogs pessoais.
Outra novidade é a abertura da oportunidade de publicação de artigos dos leitores interessados em colaborar com Para entender a história...
Os interessados devem enviar artigos dentro dos parâmetros fixados nas normas de publicação disponíveis no link “Colaborações”.
Para os iniciantes na carreira docente ou estudantes universitários, ressaltamos que é interessante publicar artigos em periódico científico indexado, tal como este, pois, ao incluir o texto no currículo lattes, este passa a contar pontos em concurso publico e em candidatura à vaga como professor universitário.
Outro dado interessante foi o aumento no número de seguidores, agora são 41 pessoas seguindo a publicação.
Aliás, fica o convite para que você também, nosso leitor, siga o blog e venha colaborar com o enviou de artigos.

A partir de dezembro, além da publicação de artigos todas as segundas-feiras, teremos textos publicados em caráter especial  e esporádico aos sábados, em geral abordando a educação.
Aproveito novamente a oportunidade para agradecer os leitores e desejar uma boa leitura.

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.




segunda-feira, 29 de novembro de 2010

História da infância e da educação no Brasil colônia: Parte 3 – O contexto.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume nov., Série 29/11, 2010.


Quando os portugueses se estabeleceram no Brasil, ao longo do século XVI, rapidamente se misturaram aos índios, até porque, em geral, os homens vinham desacompanhados, formando novas famílias com as nativas e dando origem a mestiços que terminaram modificando a estrutura familiar típica que estava em voga em Portugal.
A família de origem européia no Brasil colonial se concentrou ao redor do engenho de açúcar, na chamada Cada Grande.
Um espaço reservado à intimidade e a esfera do privado.
Embora oficialmente a sociedade portuguesa no Brasil estivesse baseada na monogamia, na prática o senhor de engenho se casava aos olhos da igreja com uma mulher de origem européia, mas mantinha um verdadeiro harém ao seu redor.
Muitas das mulheres européias que eram enviadas ao Brasil tinham um passado pecaminoso que era esquecido e relegado, diante da escassez de brancas, o que não mudava os hábitos de aceitação da corriqueira promiscuidade.
Assim, com o aval da esposa, o senhor de engenho mantinha várias concubinas nativas e/ou africanas, que estavam sempre muito próximas dele, ou seja, também no interior da Casa Grande, servindo como criadas.
Na prática, não oficialmente, as famílias de origem europeias no Brasil eram tão poligâmicas quanto às indígenas, contudo, nem por isto estas famílias deixavam de ter maior coesão interna que as famílias presentes em Portugal.
Entretanto, diferente da realidade indígena, as famílias lusitanas estavam voltadas para dentro, sem qualquer preocupação com seus semelhantes europeus e muitos menos com nativos ou africanos.
No caso dos indígenas, as festas leigas e religiosas tinham a importante função de sociabilizar o contato entre vizinhos pertencentes a uma mesma comunidade, estreitando os laços de parentesco para toda a tribo.

Família e relações de poder.
Embora algumas mulheres, como na Europa, morrerem no parto, as técnicas e unguentos nativos amenizaram o número de mortes e tornaram os casamentos oficiais mais duradouros no Brasil colonial.
A expectativa de vida entre os de origem européia, tanto homens como mulheres, era ligeiramente mais elevada que na Europa, devido ao reduzido número de doenças e a alimentação mais rica.
O que permitiu, junto com a influência nativa e africana, o enraizamento de uma forma diferente de lidar com a afetividade para com os mais próximos.

Todavia, a afetividade entre marido e mulher era contida, a despeito de intensa.
Enquanto a afetividade entre o senhor e suas criadas nativas e africanas era discreta e ao mesmo tempo ardente, não havendo um inter-relacionamento entre a esposa e as concubinas ou mesmo entre as concubinas.
Ao contrário, eram comum disputas entre as mulheres da casa e a perseguição de algumas senhoras as criadas favoritas do marido, apesar da senhora tolerar as aventuras do marido, desde que fossem discretas e não interferissem em sua posição de destaque dentro do seio da família.
Como conseqüência deste contexto poligâmico, os filhos ilegítimos tendiam a ser em maior número que os legítimos.
A falta mulheres brancas no Brasil e o fato de muitas se casarem em idade já considerada avançada para a época, fazia com que em muitas famílias a esposa não conseguisse conceber nenhum filho.
Nestas condições, os filhos ilegítimos eram tratados pelo patriarca como se tivessem sido concebidos por sua esposa, forçando a maioria das conjugues, mesmo a contragosto, aceitar a situação.

A família patriarcal.
As famílias de origem européia gravitavam em torno do senhor de engenho, em uma relação afetiva, grosso modo, piramidal.
O marido estava ligado à esposa e esta aos filhos, quando existentes, sendo que cada concubina estava, por sua vez, ligada ao senhor e os seus próprios filhos.
A única inter-relação era registrada entre os filhos de uma mesma concubina ou entre os filhos legítimos, entretanto, o senhor mantinha relações afetivas mais próximas ou não com todos os membros da família presentes na Casa Grande, controlando suas atividades e o seu destino.
Assim, podemos dizer que a família portuguesa no Brasil era patriarcal, como na Europa, porém com algumas características diferentes graças à influência nativa e africana.
Quando havia filhos legítimos, eles eram obviamente livres e os herdeiros do patrimônio da família.
No entanto, os filhos ilegítimos mestiços de origem indígena, também considerados livres desde o nascimento, tinham muitas vezes, através de testamento, direito a herdar algum bem ou certa quantia em dinheiro que possibilitava um começo de vida mais fácil.
Já os filhos ilegítimos de origem africana, quase sempre, eram tratados pelo patriarca e sua esposa como pequenos animaizinhos de estimação, sendo em alguns casos separados do convívio na Casa Grande ao atingirem a adolescência.
Apesar de em algumas ocasiões, principalmente quando não havia filhos legítimos ou de origem indígena, muitas destas crianças de mães africanas receberem ao menos a carta de alforria e algum bem em herança.
Existem casos onde o senhor fez reconhecer seu filho negro como legítimo herdeiro, tornando este mestiço um senhor de engenho.

Natalidade e mortalidade.
Legítimos ou ilegítimos, a taxa de mortalidade entre as crianças que viviam na Casa Grande era menor do que na Europa, mas maior do que entre os indígenas.
Porém, ao invés de constituir um empecilho a afetividade dos adultos para com os pequenos, o tempo de ócio de que dispunha o senhor de engenho, graças à escravidão que reinava, possibilitava uma relação mais próxima não só com seus próprios filhos como também com os filhos de escravos.
Estes últimos eram criados desde pequenos na Casa Grande, como forma de diminuir a chance de falecimento, portanto, mais por questões econômicas que humanitárias, sendo enviados para a senzala só quando atingiam uma constituição física que permitisse seu aproveitamento no trabalho.
De qualquer modo, a idade da infância gravitava até os 14 anos, então chamada à primeira idade.
Entre os 14 e os 25 anos o indivíduo era considerado como pertencente à segunda idade, a idade adulta.
Depois dos 25 ele passava a pertencer à terceira idade, a velhice, o que demonstra as diferenças reinantes que separam nossa época do período colonial.

A infância e as brincadeiras no Brasil.
Durante a infância, o senhor de engenho permitia brincadeiras entre os seus filhos e os escravos e, muitas vezes, até participava delas, mas atingido no máximo 14 anos qualquer relação igualitária entre os filhos do patriarca e os escravos era proibida.
Ao passo que os filhos do senhor podiam continuar a brincar ou participar de jogos entre si, mesmo ultrapassando esta idade, ficando os filhos dos escravos obrigados a exclusivamente trabalhar de sol a sol.
As brincadeiras mais populares no Brasil da época colonial envolviam acrobacias e jogos, mas também aventuras de capa e espada inspiradas nos romances de cavalaria.
Além é claro das brincadeiras com miniaturas, arco e flechas, espada de madeira e com instrumentos de pesca e fazer bolinhos de barro.
Brinquedos até hoje populares, também serviam para incrementar as brincadeiras, tal como peões, papagaios de papel, mobiliários em miniatura.
Ao contrário do vívido no seio das aldeias indígenas, a partir dos sete anos as crianças pertencentes à família do senhor de engenho e escravas não tinham total liberdade para brincarem o tempo todo, pois passavam a ter que dedicar parte de seu tempo ao aprendizado.
Os filhos do senhor, sobretudo, os brancos, eram obrigados a estudar.
Os escravos tinham que aprender um ofício de utilidade no engenho.
As duas categorias de crianças começavam também a ser doutrinadas na fé cristã por um religioso de confiança do patriarca.
Seja como for, apesar dos viajantes estrangeiros que passaram pelo Brasil terem enfatizado com espanto o afeto dos pais para com seus filhos, as crianças brancas em geral tinham ainda amas de leite negras que muitas vezes davam ainda mais afeto que os pais aos pequenos, tornando a convivência inter-racial ainda mais natural de geração em geração.
É interessante notar que a ama de leite era escolhida pelo patriarca entre escravas africanas que estavam entre suas concubinas, garantindo aos seus filhos privilégios, já que não trabalhavam em serviços pesados.
Entretanto, fossem estas crianças filhos da ama com o senhor ou não, podiam sofrer castigos severos em caso de desobediência.
Era comum castigar as crianças com um pedaço de madeira, o que era considerado brando perto de outros castigos aplicados escravos que não conviviam na Casa Grande.
Ao bater nas crianças negras que gravitavam na sua esfera de influência doméstica, o senhor de engenho sentia-se literalmente um pai disciplinando um filho.

Mudanças na estrutura familiar no século XVII.
Ao longo do século XVII, conforme a proeminência do Brasil foi ganhando maior destaque dentro do contexto do Império marítimo português, em detrimento da Índia, a estrutura da família e o cotidiano das crianças, sobretudo escravas, foi sendo modificada.
Surgiram dentro no cenário também crianças brancas pobres, habitando as cidades que começavam a aparecer com maior freqüência.
Um processo que foi acelerado no século XVIII, com o advento da extração de pedras e metais preciosos e a chegada em massa de portugueses ao Brasil em busca de um enriquecimento rápida.
Aliás, o número de lusitanos a saírem de Portugal foi tão grande que o país ficou quase despovoado, obrigando a Coroa a legislar, pela primeira vez em sua história, contra a migração de portugueses para o Brasil.
No século XVIII, os mestiços e brancos pobres se tornaram em número tão grande nas cidades que começaram a surgir cortiços, onde a condição das crianças era tão precária quanto em Portugal no século XV e XVI.
Em contrapartida, na Metrópole européia as condições de vida tenderam a melhorar graças ao ouro que saiu do Brasil, mudando também a condição da afetividade para com as crianças.
Os lusos começaram a desenvolver o afeto contemporâneo pelos miúdos, antes não existente.
Especificamente no Brasil, com o surgimento mais intenso de cidades, a estrutura familiar entrou em uma nova etapa.
Apareceram famílias pobres de origem européia com estrutura desarticulada, onde pai e mãe estavam constantemente trocando de parceiros.
A taxa de natalidade e mortalidade infantil se tornou elevada, as crianças eram maltratadas pelos próprios pais, alimentadas precariamente e tinham sua mão de obra exaurida ao máximo, sofrendo abusos de todos os tipos imagináveis.
Dentro destas famílias a afetividade era quase nula, embora tenham existido exceções, o que fez crescer o número de crianças desta faina abandonadas nos orfanatos.
Nos orfanatos as crianças eram criadas por religiosos sob disciplina rígida e sem muito afeto individual, sendo, contudo, melhor alimentadas e protegidas do que se tivessem ficado com seus pais.
Neste sentido, os órfãos recebiam uma educação melhor do que as crianças criadas pelos pais, tendo em vista que o sistema educacional do período colonial era dominado pelas ordens religiosas católicas.
No entanto, estas crianças eram treinadas para se tornarem padres e freiras, um status também melhor do que se tivessem sido criadas perambulando pelas ruas.

Uma nova estrutura familiar no século XVII.
As famílias ricas, agregada ao redor do engenho de açúcar, ao longo ao século XVII, continuaram a ser patriarcais, mas os filhos ilegítimos, que continuaram a existir em numero elevado, deixaram de ser reconhecidos.
Os ilegítimos passaram não mais viver mais ao redor da Casa Grande.
Na verdade, com a enxurrada de gente que veio de Portugal e os nascimentos de mestiços no Brasil, a falta de mulheres europeias deixou de ser um problema.
A população feminina se tornou maior que a masculina, ao mesmo tempo, as indígenas com quem os senhores se amancebavam se tornaram raras, pois os índios que não foram exterminados fugiram apara o interior do Brasil.
Isto fez com que os concubinatos continuassem a existir, no entanto, deixando de ser tolerados pela igreja e a esposa do patriarca.
As criadas que eram escravas continuaram a ter filhos do senhor, mas se tornou cada vez mais raro estas crianças serem criadas na Casa Grande.
Filhos de escravas com o senhor passaram a ser criados nas senzalas, o convívio entre africanos e descendentes de europeus ou mestiços se tornou quase proibido, mesmo quando se tratavam de crianças.
As brincadeiras também mudaram radicalmente, tornaram-se mais violentas, refletindo o tratamento brutal para com os escravos.
Um tal jogo do beliscão, por exemplo, se tornou muito popular.
Ao mesmo tempo, as brincadeiras ligadas à doutrinação da fé e política se tornaram mais comuns, como cantar ritmos religiosos e rimas enfeitadas homenageando a determinado santo ou governador enviado por Portugal ao Brasil.
Além disto, tornaram-se comuns festas religiosas dirigidas exclusivamente as crianças, onde os pequenos vestiam fantasias, dançavam e cantavam.

Crueldade e insensibilidade.
Entre os portugueses, várias brincadeiras eram estimuladas pelos pais como forma de tornarem seus filhos insensíveis aos maus tratos aos escravos.
Dentro deste contexto, muitas escravas prenhes passaram a ter seu filho sacrificado para que pudessem servir como amas de leite, sendo muitas vezes vendidas por um valor elevado sob esta qualificação.
Tendo piorado muito as condições de vida nas senzalas, ao mesmo tempo em que a mortalidade infantil se tornou ainda menor entre os brancos, ao inversos a mortalidade infantil entre os escravos tendeu a crescer a número astronômicos, atingindo um índice de quase 90%.
Como forma de resistência, as africanas procuravam abortar para não ver o filho nascer em um ambiente sofrido.
Os portugueses não ligavam para isto porque, a seu ver, as crianças passaram a ter valor quase nulo para o trabalho.
No século XVII, era mais barato comprar um escravo já adulto trazido da África, do que criar uma criança que futuramente pudesse servir ao trabalho, mentalidade que foi facilitada pela abundância de escravos importados.
Uma tendência intensificada no século XVIII, quando as crianças escravas que conseguiam sobreviver aos primeiros anos de vida passaram a ser cada vez mais usadas em minas.
Escravos africanos foram aproveitados desde os cinco anos de vida nos túneis mais estreitos e em trabalhos pesados de extração de metais, dificilmente sobrevivendo mais do que um ou dois anos.
Estas crianças eram separadas do convívio com os pais, assim como a formação de famílias de escravos era desestimulada, uma das razões responsável pelos abortos e o aumento das tentativas de fugas entre os adultos.

O contexto urbano no século XVIII.
Nas cidades, ao contrário da situação verificada nas minas e na zona rural, os pequenos proprietários procuraram estimular a procriação dos seus escravos, oferecendo condições melhores de vida.
As escravas eram obrigadas a proverem seu próprio sustento e de seus filhos, através da venda de quitutes ou frutas em tábuas de madeira que eram oferecidas por toda a cidade, embora muitas destas mulheres procurassem aumentar a renda por meio da prostituição.
O que deu origem as famosas baianas que vendem acarajé e outros alimentos no Brasil contemporâneo, a despeito desta última atividade ter se desvinculado da prostituição, porque estas quitandeiras usavam exatamente o mesmo estilo de roupa que estas baianas típicas usam hoje.
Estes pequenos proprietários, em geral ligados a atividades comerciais urbanas, constantemente copulavam com suas escravas em nome do lucro, procurando tornar a escrava prenhe para que a criança pudesse ser vendida com um bom lucro quando adulta.
A criança, apesar de ser filha deste indivíduo, não era considerada mais que uma mercadoria, algo que intensificou o número de crianças mulatas a perambularem pelas ruas.
Ocorre que estas escravas costumavam carregar os filhos pequenos nas costas enquanto trabalhavam e, quando estas crianças cresciam um pouco, eram deixadas a andar livremente pelas ruas, sozinhas.
Daí veio àquela noção popular fortemente enraizada entre os brasileiros que lugar de criança é na rua brincando.
De qualquer modo, estas mães escravas e seus filhos tinham mais liberdade e melhores condições de vida do que os escravos dos engenhos.
Estas escravas podiam andar sozinhas pela cidade e controlavam o dinheiro que recebiam, o qual, depois, deveria ser entregue ao seu dono.
Elas tinham a oportunidade de juntar dinheiro e acabavam muitas vezes comprando, após alguns anos, a própria liberdade e de seus filhos.

A reprodução do sistema escravista.
Uma característica interessante e, ao mesmo tempo, irônica, é que as escravas que compravam sua liberdade, quase sempre, quando prosperavam, acabavam se tornando proprietárias de outras escravas e escravos.
No Brasil existiu uma situação análoga, escravos alforriados eram proprietários de escravos.
Com o tempo, os netos destas escravas libertas pelas próprias mãos deram origem a uma categoria de mulatos pobres a se amontoarem nas cidades, vivendo sob condições materiais até mais precárias que os escravos.

Isto porque os escravos tinham ao menos um teto, comida e roupa garantida pelo senhor, ao passo que os mulatos nem isto tinham.
Estes descendentes de escravos terminaram dando origem, devido à pobreza que foi se intensificando através das gerações, a crianças abandonadas que passaram a viver nas ruas.
Os orfanatos dificilmente as aceitavam, estando reservados apenas aos mestiços de índios abandonados ou cujos pais haviam sido mortos pelos portugueses e aos filhos de brancos pobres.
Estas crianças de rua acabavam caindo na marginalidade, passando fome e sofrendo inúmeros abusos por parte adultos.
Quando cresciam, os meninos que conseguiam sobreviver não tinham outra opção a não ser tornarem-se mendigos ou bandidos, enquanto as meninas terminavam se prostituindo, apesar de terem existido algumas exceções.

A vida nos Quilombos.
As condições precárias das senzalas não permitiam saídas viáveis para fugir da vida sofrida.
Procurando escapar desta situação, muitos escravos fugiam para os quilombos, onde as condições de vida eram melhores, formando lá famílias bem constituídas, compostas por pai, mãe e filhos.
Crescendo estas crianças bem alimentadas e cercadas pelo afeto de seus pais, irmãos e outros parentes e amigos da família, a infância destes descendentes de africanos adquiria características próprias.
Em um quilombo típico, as pessoas trabalhavam em beneficio próprio e da coletividade, podendo constituir família e criar os filhos quase como se estivessem na África.
Entretanto, o modo de vida tipicamente africano era impossível de ser mantido, pois a aculturação fez nascer um cotidiano marcado por características portuguesas misturadas com as africanas.
As crianças dos quilombos terminavam mantendo a fé cristã misturada com ritos africanos, do mesmo modo que as crianças das senzalas, com a diferença de que questões ligadas à sobrevivência do grupo e a práticas africanas eram ensinadas pelos mais velhos com maior veemência.

Para saber mais sobre o assunto.
ALGRANTI, Leila Mezan. “Família e vida privada” In: NOVAIS, Fernando (dir.) & SOUZA, Laura de Mello e (org. do volume). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, volume 1, p.83-154.
DEL PRIORE, Mary. “O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império” In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p.84-106.
SCARANO, Julita. “Crianças esquecidas das Minas Gerais” In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p.107-136.

Texto:

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.




segunda-feira, 22 de novembro de 2010

História da infância e da educação no Brasil colônia: Parte 2 – O cotidiano entre os indígenas.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume nov., Série 22/11, 2010.


As primeiras crianças europeias que chegaram ao Brasil foram grumetes que, diante da perspectiva de uma vida melhor entre os nativos, fugiam quando embarcações que faziam escala ou estavam aportadas em meio a missões de mapeamento do território.
Isto porque, ao contrário do que se imagina, apesar do Brasil ter sido oficialmente descoberto em 1500, a primeira tentativa de colonização ocorreu somente em 1530, não sendo mais que uma tentativa, já que somente na segunda metade do século XVI é que esforços mais sérios de colonização foram levados a termo.
É interessante lembrar que durante quase todo o século XVI, o Brasil teve uma importância econômica reduzida.
Portugal estava mais interessado em aproveitar as riquezas da Índia, o Brasil era a terra do desterro, para onde eram enviados os criminosos, as prostitutas e os ciganos como forma de garantir a posse sobre uma terra cujo aproveitamento maior era servir de escala para as naus da Índia.
De qualquer modo, antes dos portugueses se fixarem no Brasil e sequer terem aqui chegado, os índios já estavam nesta terra.
Portanto, é importante conhecer o cotidiano das crianças indígenas, pois a forma como os nativos viviam, a afetividade, os hábitos e a visão de mundo iria influenciar o dia a dia dos portugueses que chegariam as novas terras.
Os costumes indígenas criariam, inclusive, novos hábitos em Portugal e na Europa, plantando as raízes do comportamento do brasileiro contemporâneo, tal como o banho diário, por exemplo, um hábito herdado dos índios e que se não se espalhou por toda a Europa, embora tenha se difundido nos países mediterrâneos.

Demografia.
As famílias indígenas, apesar de poligâmicas, eram mais bem articuladas que as europeias, ao passo que, sendo as doenças pouco comuns e a alimentação abundante, a taxa de natalidade era alta, mas a de mortalidade infantil baixa.
No entanto, entre os ameríndios, as mortes entre os adultos do sexo masculino eram elevadas, equilibrando a demografia.
As guerras tribais davam conta de manter o crescimento populacional controlado apesar do alto índice de nascimentos.
Neste sentido, o elevado número de mortes entre os adultos homens, mantinha a população em equilíbrio com a natureza e os recursos disponíveis.

Família e Afetividade.
A afetividade atual dos adultos com relação às crianças foi aprendida pelos europeus com os índios, a reboque, acabou modificando rapidamente o modo dos portugueses presentes no Brasil colonial de tratarem os seus filhos.
Embora estas mudanças tenham demorado um pouco mais para chegar à Europa, na verdade, poucos anos depois que um português chegava ao Brasil, ele tinha a sua mentalidade modificada através do convívio com os índios.
A afetividade para com os miúdos em Portugal só foi sendo modificada lentamente, ao longo do século XVII, por influência dos portugueses que retornavam do Brasil.
Entre os índios, a afetividade não excluía nenhum membro das numerosas famílias, mais do que isto, a noção de família incluía não só os pais e filhos, mas também uma inter-relação entre irmãos, esposas de um mesmo marido, primos, netos, avós, enfim toda uma gama emocional complexa, tal como a que temos hoje, não por acaso.
Muitas vezes, a rede de relações afetivas se estendia ainda além, englobando toda a tribo, algo inconcebível na Europa do período.

A função das festas.
Enquanto as festas religiosas em Portugal atendiam anseios de sociabilização que não existiam no ambiente comum, sendo cheias de formalismo; entre os índios, as festas e ritos de canibalismo possibilitavam o estreitamento de laços fortes que já existiam.
A função das festas não era atender o desejo de sociabilização que não existia normalmente, mas reforçar as relações afetivas já existentes e diluir qualquer desentendimento nascido do convívio diário intimo.
O rito do canibalismo era pratico por mulheres e crianças como forma de sociabilização, de estreitamento de laços entre mães e filhos, entre irmãos e entre esposas de um mesmo marido, algo que foi retratado na iconografia por um alemão que esteve no Brasil a serviço da Holanda.
Grosso modo, os ritos de canibalismo eram para os índios quase como hoje é para os brasileiros um churrasco de confraternização, com a diferença que consumir a carne do inimigo tinha um caráter também religioso, pois se acreditava que devorar sua carne era digerir também sua força, sua coragem e demais características.

O modo de lidar com as crianças.
Entre os índios, no século XVI, os pais tinham um zelo pelos filhos que raramente era observado em Portugal.
As mães carregavam sempre seus filhos junto a si para onde quer que fossem, isto mesmo quando iam realizar suas tarefas de coleta de frutas e raízes.
Algumas mães levaram simultaneamente filhos em cestas que ficavam nas costas e outros filhos no colo, mastigando os alimentos mais duros antes de servi-los aos mais novos, a expressão máxima do amor de uma mãe pelos seus rebentos.
Os pais não deixavam nunca faltar o que comer, providenciando caça e pesca, defendendo ainda suas esposas, filhos e demais parentes de qualquer ameaça que por ventura viesse a surgir, chegando a sacrificar a própria vida para salvar qualquer de seus filhos.
As crianças ameríndias, de um modo geral, não eram obrigadas a desempenhar qualquer tarefa, algumas ajudavam por vontade própria a mãe a coletar frutos ou cuidar dos irmãos menores, mas tinham ampla liberdade para passarem o dia todo brincando.
É interessante salientar que o ócio era muito apreciada também entre os adultos, o que garantia tempo para que os pais brincassem com seus filhos, reforçando os laços afetivos.
As crianças indígenas só passavam a ter tarefas especificas depois que entravam na adolescência, quando então atingiam a idade para serem iniciadas diante de toda a tribo e passavam a ser reconhecidas como adultos.
A passagem para universo adulto englobava a formação de novas famílias, cuja relação afetiva se estendia até a família de onde eram originários o marido e a mulher, criando laços também entre a família do esposo e da esposa, daí a complexa rede afetiva entre os indígenas.
Ao se tornarem adultos, parte do tempo dos indígenas era dedicado a jogos e brincadeiras, o que fez com que mesmo os índios adultos fossem vistos pelos religiosos europeus como grandes crianças dotadas de inocência.

A educação.
A educação entre os índios era um tanto informal, o método pedagógico, se é que podemos chamar assim, aproveitava as brincadeiras para ensinar questões práticas ligadas à sobrevivência do grupo.
As lendas contadas pelos mais velhos servia como forma de doutrinação moral, religiosa e explicação acerca dos fenômenos da natureza e do mundo em volta da tribo.
Apesar dos índios não terem uma história, isto porque constituíam uma sociedade que vivia somente no presente, tal como demonstra sua língua, onde o tempo verbal futuro e passado não existem, as lendas serviam ainda para lembrar o feito dos antepassados mais ilustres e honrar sua memória.
Ao contrário da situação vivida na Europa, não havia qualquer tipo de restrição social ao acesso a educação, até porque a sociedade indígena era igualitária.
Todos eram educados da mesma forma e segundo o mérito poderiam adquirir uma posição de destaque como guerreiros, sábios ou curandeiros.
Esta maneira prática de encarar o mundo, em certa medida facilitou o extermínio dos nativos e a penetração portuguesa, mas, ao mesmo tempo, junto com a influência africana que viria mais tarde, criou no Brasil uma sociedade formada por portugueses e mestiços que seria totalmente distinta da européia.

Para saber mais sobre o assunto.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. “Os guarani: índios do sul. Religião, resistência e adaptação” In: Estudos Avançados, vol. 4, n.º 10. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados, setembro/dezembro de 1990, p.53-90.
CUNHA, Manuela Carneiro (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
RAMOS, Fábio Pestana & MORAIS, Marcus Vinicius de. Eles formaram o Brasil. São Paulo: Contexto, 2010.

Texto:

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.




segunda-feira, 15 de novembro de 2010

História da infância e da educação no Brasil colônia: Parte 1 – O cenário europeu no século XVI.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume nov., Série 15/11, 2010.


A história da infância e da educação no Brasil, desde seus primórdios até os dias atuais, andou lado a lodo com o quadro das sensibilidades.
Neste sentido, ao estabelecer uma ponte entre a origem mais remota do modo de lidar com as crianças e o contexto presente, compondo uma visão panorâmica do passado, podemos entender melhor o que acontece hoje, permitindo construir um futuro sobre bases mais solidas.
O que não é novidade, já que a importância de entender a história se insere, justamente, em uma tentativa de compreender melhor o presente e a realidade contemporânea.
Nada mais é que uma tentativa de planejar melhor o futuro.
Assim, podemos nos espelhar nas experiências que deram certo no passado e evitar os mesmos erros já cometidos.
Especialmente para aqueles lidam diretamente com a educação e a infância, o exercício da profissão de educador exige entender a evolução da estrutura do ensino.
O que implica em estudar o contexto vivido em cada época e como foi sendo modificada a relação da sociedade o tratamento a infância.
Muitas das praticas em voga tem raízes em um passado que parece muito distante de nós, mas que está bem próximo, portanto, não surgiram de uma hora para outra.

Os nascimentos na Europa.
No século XVI, na Europa, os nascimentos fora do casamento eram raros, mas em Portugal era comum à concepção de anjinhos nos conventos.
As famílias ricas costumavam concentrar suas posses para pagar o dote de sua filha mais velha, encarcerando as outras filhas nos conventos.
Ao mesmo tempo, apenas o filho mais velho tinha direito a herdar o título e as terras da família, restando aos outros filhos homens tornarem-se guerreiros em busca de fortuna ou religiosos.
Como consequência, tornaram-se corriqueiros os casos entre freiras e padres, e a partir daí, os conventos passaram a ser vistos como os melhores locais para ir ter uma amante pela nobreza.
A mesma nobreza que depois não iria ver mal algum em ir amancebar-se com as indígenas no Brasil, afinal se o pudor não se opunha a copula com religiosas o que dizer com mulheres consideradas selvagens.
Ocorre que quando as freiras engravidavam, algo que se tornou muito comum já ao longo do século XV, ficavam escondidas internamente nos conventos durante a gravidez e concebiam não crianças mas sim anjinhos, ao menos na terminologia é claro.
Depois de darem a luz, as religiosas abandonavam o seu rebento nos orfanatos em uma roda que garantia o anonimato e voltavam a sua vida normal.
Era chamada roda dos expostos, que ficava voltada para rua, onde a criança era colocada, para que depois fosse girada, sendo tocado um sino para avisar que havia uma criança ali, sem que a identidade da mãe fosse revelada.
É interessante notar que estas rodas seriam também utilizadas no Brasil a partir do século XVII.

O destino dos órfãos em Portugal.
Os órfãos, quando meninos tinham como destino tornarem-se religiosos.
Alias, muitos deles ainda crianças foram enviados ao Brasil como parte da estratégia de conversão dos índios.
Acreditava-se que poderiam ajudar a converter as crianças nativas.
Já as meninas, eram classificadas como órfãs do Rei e enviadas ao Brasil e a Índia, quando atingiam a idade certa para casar-se com elementos da baixa nobreza.
De qualquer modo, o cotidiano nos orfanatos não era nada fácil.
A comida era racionada, a disciplina rígida, a mão de obra infantil era exaustivamente explorada e abusos sexuais eram comuns tanto nos orfanatos femininos como nos masculinos.
O lado positivo que levava as mães a abandonarem os filhos nos orfanatos é que, pelo menos, não iriam passar fome, teriam um lugar abrigado do frio e do sol para dormir, recebendo uma introdução as letras e o trabalho em troca de pequenos trabalhos que não eram considerados tão pesados como no mundo exterior.

A estrutura familiar europeia.
Em se tratando dos mais pobres, não havia nenhum tipo de controle de natalidade, como consequência as famílias era numerosas.
Isto não era visto como algo ruim.
O nascimento de um rebento era encarado como uma boca a mais para alimentar, porém representava braços muito bem vindos ao cultivo do campo.
Como as mulheres tinham muitos filhos, em geral morriam cedo, muitas vezes no parto.
Quando ficavam viúvos, os homens se casavam rapidamente de novo, não tendo dificuldade em encontrar uma nova esposa.
Na verdade a expectativa de vida rondava pouco mais que os 20 anos para as mulheres e para os homens 30 anos.
No entanto, sempre havia mais mulheres que homens, devido a um índice maior de nascimentos de meninas.
Exatamente devido à frequência de novos casamentos depois da morte da esposa, a estrutura familiar era um tanto frouxa, semelhante àquela registrada por sociólogos nos cortiços do século XX, talvez até pior.
A relação afetiva, quando havia, era estabelecida entre o pai e cada filho individualmente, ou, quando muito, entre a mãe e seus filhos naturais, praticamente inexistindo entre os outros membros da família.
Veio daí aquele velho conto de fadas da Cinderela que todo mundo conhece, a estória que narra a forma como a personagem central é maltratada pela madrasta depois da morte do pai.
Na verdade, era comum filhos de três casamentos serem criados simultaneamente, constituindo uma espécie de família aos pedaços, onde a madrasta não escondia a diferença que fazia entre seus rebentos e os de outras esposas.
A esposa atual, ainda vida, do patriarca da família, alimentava, por exemplo, melhor os seus filhos e utiliza excessivamente as outras crianças nas tarefas mais pesadas da casa e do campo.

A visão da infância em Portugal.
Fosse qual fosse o grau econômico da família, no século XVI, especificamente em Portugal, até atingirem certa idade as crianças eram tratadas como animaizinhos. Os pais evitavam adquirir qualquer afetividade pelo recém-nascido.
O que acontecia porque, em primeiro lugar, metade dos nascidos vivos morria antes de completar sete anos, enquanto a expectativa de vida dos sobreviventes rondava quatorze anos.
Assim, até atingirem esta idade, quando então o índice de mortalidade caía muito, os pais consideravam que não podiam se apegar as crianças, na sua concepção, mais cedo ou mais tarde iriam falecer e causar dor.
Para evitar a constante dor a rondar os pais de proles numerosas, as mentalidades criaram um mecanismo de defesa onde simplesmente a afetividade para com seus filhos era ignorada.
Além disto, justamente por serem as famílias numerosas e frequentes os nascimentos, este desapego para com a infância era facilitado.
Mesmo entre reis, algumas crônicas dão conta que os recém-nascido eram classificados como macho ou fêmea, tal como animais, ou quando muito tratados como pequenos adultos e não como crianças.
Este modo de encarar a afetividade foi desenvolvido ao longo da Idade Média, levou séculos para se estabelecer, mas já estava tão enraizado no imaginário do século XVI, que existem relatos dando conta que mães abandonavam seus filhos em caso de perigo em beneficio da salvação da sua própria vida.
Em certa ocasião, durante um naufrágio, no desespero do momento, uma senhora esqueceu seu filho de alguns meses no navio.
Quando o bate salva-vidas ia já longe, ela avistou o filho no colo de uma escrava que era sua ama.
O bote voltou e a senhora pediu o filho a ama, esta se recusou a dá-lo se ela também não fosse resgatada, ao que a mãe preferiu abandonar o filho à morte a resgatar a escrava, sem derramar uma única lágrima, tamanho o desapego à criança.

Grumetes: a exploração da mão de obra infantil.
A falta de afetividade para com os miúdos, como dizem os portugueses, principalmente entre os mais pobres, fez com que, depois do descobrimento do Brasil, dada a falta de adultos que se fazia sentir, as famílias procurassem aproveitar a mão de obra de seus filhos para lucrarem.
As famílias procuravam alistar seus filhos como grumetes, uma espécie de aprendiz de marinheiro, nos navios que iam para o Brasil e para a Índia, recebendo o equivalente a um ano de soldo e se livrando de uma boca para dar de comer.
Foram estas crianças as primeiras de origem europeia a chegarem no Brasil.
Em geral, dada à mencionada falta de adultos, foram crianças que tripularam as caravelas quinhentistas.
O cotidiano destes meninos era muito sofrido, apesar de terem entre sete e quatorze anos, eram exauridos ainda mais do que em terra, tendo uma dieta bastante restrita.
Para sobreviverem, estas crianças precisavam caçar os ratos a bordo, sofrendo constantemente maus tratos, sendo a elas confiadas às tarefas mais pesadas dos navios.
Como se não bastasse, os grumetes quase sempre eram violentados pelos adultos a tripularem as embarcações.
Esta tradição do emprego da mão de obra infantil nos navios passou depois para a marinha brasileira, tendo sido utilizadas crianças como bucha de canhão durante a guerra do Paraguai e, de certa, forma persistindo em alguns setores da sociedade ou regiões do Brasil.

A mentalidade entre os judeus e os artifícios da Coroa portuguesa.
Diferente do tratamento dispensado as crianças pelos portugueses e os europeus de um modo geral, no século XVI, os judeus tinham uma mentalidade diferente.
Não prescindindo de recursos econômico, sendo a maioria da comunidade formada por médicos e profissionais ligados a meios intelectuais mais elevados, a afetividade dos judeus para com suas crianças era quase como a que temos hoje.
Entretanto, a Coroa portuguesa adotou o rapto e embarque forçado de crianças judias nos seus navios como forma de controle sobre a população judaica em Portugal.
Na época havia um antagonismo tremendo entre cristãos e mouros, assim como entre cristãos e judeus.
Em praticamente todos os países da Europa, os judeus eram mantidos segregados em guetos e controlados de perto pelo Estado, sendo tolerados em Portugal apenas porque os reis necessitavam do seu capital financeiro, já que eram então os principais e mais ricos banqueiros.
Exatamente por serem apenas tolerados, além de raptarem, os portugueses chegaram ao extremo de abandonarem algumas centenas destas crianças em ilhas recém-descobertas na esperança de que se multiplicassem e viessem colonizá-las, garantindo a posse das terras.
As experiências terminaram, como seria de se esperar, em um completo desastre.
Basta imaginar o resultado do abandono de centenas de crianças sozinhas em ilhas desertas, é claro que não poderiam sobreviver.

A educação em Portugal no século XVI.
Não havia para as crianças qualquer possibilidade de ascensão social através da educação.
Pouco antes da chegada dos portugueses ao Brasil, o índice de analfabetismo era enorme entre a população, cerca de 90% da população não sabia sequer escrever o próprio nome.
A educação pública era algo recente e estava ainda sendo estabelecida.
As primeiras letras eram ensinadas em mosteiros que constituíam verdadeiros internatos destinados a nobreza e aqueles que se dispunham deste pequeninos a se tornarem padres.
Os poucos pobres que tinham acesso a uma educação rudimentar dependiam da caridade de algum padre letrado, já que nem todos eram letrados, o qual resolvia ensinar as crianças de sua paróquia julgadas por ele mais espertas.
Em qualquer caso a Bíblia servia sempre como a primeira cartilha, o primeiro contato com as letras.
As escolas leigas eram ainda muito recentes e tinham sido fruto da reforma protestante.
O chamado ginásio clássico surgiu na França somente por volta de 1537, quando um mestre escola holandês, que estudava na Universidade de Paris, ajudou o Estado a organizar um novo modelo educacional.
Ao passo que, pouco mais tarde, sob a égide das reformas Luteranas, praticamente em toda a Alemanha foi implantada a educação leiga.
No entanto, as escolas mantidas pelos Estados protestantes tinham como objetivo servir somente a burguesia e a nobreza e consolidar o protestantismo.
Em Portugal o ensino esteve concentrado quase exclusivamente nas mãos da igreja, principalmente dos jesuítas.
Mesmo as poucas escolas que o Estado mantinha eram obrigadas a ensinar a religião católica como parte da estratégia de combate a heresia protestante, concentrando-se no ensino do latim e dos clássicos gregos e romanos, além das escrituras e da matemática.
No que diz respeito especificamente à educação elementar, enquanto na segunda metade do século XVI boa parte da Europa implementava o ensino da leitura e escrita mesclado ao desenho, a pintura, a música, a dança e aos jogos; em Portugal, a Bíblia continuou a ser a única cartilha e meio de aprendizado das primeiras letras.
Assim, o quadro educacional português era composto por um atraso evidente.

As Universidades, a profissão docente e o atraso lusitano.
Em Portugal, Universidades havia apenas três: Coimbra, Lisboa e Porto.
Em todas elas, como no restante na Europa, haviam cursos centrados em três principais vias: Direito, Filosofia e Medicina.
Aqueles que se formavam em Direito eram aproveitados no funcionalismo público, os que faziam Filosofia seguiam, geralmente, a carreira religiosa, e os formados em Medicina atuavam obviamente como cirurgiões.
Um detalhe interessante é que a profissão de médico estava praticamente proibida para os cristãos, pois a fé ditava que lidar com sangue era impuro, daí a grande maioria dos cirurgiões serem judeus.
Outro detalhe interessante é que não existia um curso especifico destinado à formação de professores e que o magistério era exclusivamente masculino.
As mulheres estavam proibidas de ensinarem, de se tornarem mestre escola, tal como os professores eram então chamados.
As limitações não paravam por aí, pois, embora pudessem apreender os rudimentos das letras e matemática, por serem consideradas pela igreja como seres inferiores intelectual e moralmente, as mulheres não podiam aprofundar seus estudos.
Apenas os professores universitários recebiam uma formação especifica, mas os cargos em Universidades eram quase exclusivamente ocupados por membros do clero.
Exatamente porque em Portugal não houve uma reforma protestante, tendo ficado o ensino atrelado ao catolicismo, o país se condenou a um atraso científico tremendo frente às outras nações da Europa.
Todavia, o Infante D. Henrique, aquele mesmo tido como um dos principais estimuladores das navegações portuguesas, por isto mesmo chamado de “o navegador”, no século XV, procurou reformar o ensino da Universidade de Lisboa.
Ele introduziu disciplinas ligadas à matemática e a astronomia, mas a reforma pouco fez pela evolução do ensino em Portugal, contribuiu muito para o aprimoramento náutico, porém não tirou Portugal do atraso.
Para ter uma ideia deste atraso, enquanto boa parte da Europa formulava novas teorias científicas, concentrando-se no estudo da matemática e de uma nova disciplina, a física, os portugueses continuavam a se valerem dos antigos manuais aristotélicos.
Portugal era avançado no campo da construção naval, cartografia, astronomia e demais artes náuticas, no entanto, em outras áreas era imensamente atrasado.
Na área da medicina, por exemplo, a sangria era tida como a cura para todo e qualquer mau, quando na verdade fazer sangrar um doente não causava mais que a piora do seu quadro clinico.
Muitas vezes os doentes acabavam morrendo de tanto serem sangrados e não da doença que possuíam.
Neste sentido, as técnicas indígenas de cura empregadas no Brasil eram muito mais modernas e eficientes.
Na realidade, o cotidiano infantil não era nada fácil em Portugal pela altura em que o Brasil começou a ser povoado, o que influenciou o cotidiano infantil também em terras brasileiras, gerando uma qualidade baixa do ensino no inicio do período colonial.
A despeito do próprio sistema educacional informal prático pelos indígenas ter sido, antes da chegada do homem branco, melhor e de maior eficiência que o europeu.
Destarte, esta já é outra história que fica para as próximas semanas.

Para saber mais sobre o assunto.
BURGUIÉRE, André. “As mil e uma famílias da Europa” In: BURGUIÉRE et. Alli (direção). História da família - o choque das modernidades: Ásia, África, América, Europa. Lisboa: Terramar, 1998, volume 3, p15-82.
COATES, Timothy J. Degredados e Órfãs: colonização dirigida pela coroa no império português. 1550-1755. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.
EBY, Frederick. História da educação moderna: séc. XVI/séc. XX - teoria, organização e prática educacionais. Porto Alegre: Editora Globo, 1976.
RAMOS, Fábio Pestana. “A História Trágico-Marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI” In: DEL PRIORE, Mary (org.) A História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p.19-54.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2004.
RAMOS, Fábio Pestana. Por mares nunca dantes navegados. São Paulo: Contexto, 2009.

Texto:

Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.